Tenho a estranha
sensação de ter perdido algum episódio da novela em que se transformou a actual
crise política. Se bem me lembro, tudo isto começou com uma grave crise no
Governo da direita, mortalmente atingido pelo falhanço que o próprio Vítor
Gaspar reconheceu e pela demissão de Paulo Portas (entretanto revogada a troco
de uma proposta de remodelação); agora, três semanas depois, parece que depende
do PS, que está na oposição, não só o superar da crise governativa (!) mas
também o sucesso do Governo PSD/CDS na execução do Memorando (que sete vezes
alterou), no regresso aos mercados (apesar da espiral recessiva) e no evitar de
um segundo resgate. Há aqui qualquer coisa que não bate certo!
A verdade é que a
intervenção do Presidente envolveu um salto lógico insanável: misturou a crise
política gerada no interior do Governo de coligação PSD/CDS (sobre a qual nada
decidiu, a não ser pré-anunciando eleições antecipadas em 2014) com o acordo a
celebrar entre os partidos do Governo e o Partido Socialista. O primeiro efeito
desta mistura explosiva, para além de prolongar a indefinição quanto à situação
do Governo (colocado em "plenitude de disfunções"), foi escamotear
totalmente as responsabilidades do Governo pelas consequências do seu falhanço
e da crise política que provocou: aquilo que era uma crise causada pelo
escandaloso desentendimento entre os dois partidos da coligação pareceu
tornar-se, sem que se tivesse percebido porquê, numa crise de desentendimento
entre os três partidos signatários do Memorando original, a qual só podia ser
resolvida com a participação "patriótica e responsável" do Partido
Socialista - sob pena, claro está, do fogo do inferno.
A confusão
instalada pelo Presidente gerou, além do mais, uma situação política absurda:
enquanto, no raciocínio do Presidente, a inexistência de acordo poderia
implicar o fim do Governo e dar lugar a outras enigmáticas "soluções
jurídico-constitucionais", a aceitação do acordo pelo PS (incluindo sobre
o calendário das eleições antecipadas) implicaria, garantidamente, salvar o
Governo da direita por mais um ano, proporcionando-lhe até o reforço da sua
base de apoio parlamentar, designadamente na frente orçamental. Do ponto de
vista político, o fruto visível de um acordo seria, portanto, a fotografia da
cerimónia de tomada de posse do Governo da direita remodelado. Nem vale a pena
perder tempo a explicar o manifesto absurdo desta ideia.
Assim, além dos
três pilares que têm sido identificados no acordo pretendido pelo Presidente
(calendário de eleições legislativas antecipadas, a partir de Junho de 2014;
medidas de execução do Memorando até ao fim do Programa e compromissos
orçamentais e de governabilidade para o período "pós-troika"), há também
um quarto pilar de que ninguém quer falar mas que está lá: a solução da crise
governativa através do acordo implícito do PS à salvação e manutenção do
Governo da direita (com um mandato encurtado). É por isso que a equação
política proposta pelo Presidente, tal como foi apresentada - envolvendo, na
prática, a viabilização do actual Governo e uma adesão do PS às medidas de
austeridade negociadas com a ‘troika' à sua revelia - implicaria neutralizar o
PS como partido de oposição. E um PS neutralizado como oposição seria um PS neutralizado
como alternativa.
*Pedro Silva
Pereira, Jurista
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