domingo, 21 de julho de 2013

TEERÃO: DA MODERADA RADICALIDADE Á RADICAL MODERAÇÃO



Rui Peralta, Luanda

I - Hassan Rohani, o novo presidente iraniano, vencedor das eleições presidenciais é um “moderado”, o que na nomenclatura politica iraniana não representa um reformista, mas antes um conservador consensual, habituado às negociações inerentes á manutenção dos equilíbrios orgânicos da elite politica islâmica iraniana. Neste sentido Rohani é uma figura diametralmente oposta ao anterior presidente Ahmadinejad, considerado um “radical”, que contava, inicialmente (no segundo mandato as relações deterioram-se) com o apoio dos sectores conservadores da ala histórica do regime (os “principalistas”, erradamente considerados fundamentalistas, que rodeiam o líder máximo do país, o aiatola Ali Khamenei) e dos sectores populistas.

Ahmadinejad imprimiu uma política externa profundamente anti-imperialista, de cariz nacionalista e vagamente socializante, no plano interno. Aproximou o país ao eixo bolivariano (Venezuela, Bolívia, Equador), manteve boas relações com Cuba, com o Brasil e com a Argentina, ampliou os laços com a Rússia, reforçou as relações com a China, procurou um relacionamento mais profundo com o continente africano (que ainda não entendeu a vantagem potencial que reside no estabelecimento de relações de cooperação mais profundas com o Irão, o que também é devido ao estado de bajulação neocolonial que está estabelecido no continente) ensaiou pontes de relacionamento estável com a India e provocou a hostilidade do ocidente, que não viu com bons olhos a política nacionalista de Ahmadinejad e a sua priorização do projecto nuclear iraniano.

O alto índice de participação nas eleições, 72,7%, desmentiu a possibilidade avançada pelos serviços de informação ocidentais que apostavam numa abstenção numerosa por parte da classe média urbana. Pelo contrário, a classe média urbana iraniana parece ter-se contentado com a vitória eleitoral dos “moderados”, embora os radicais mantenham poder suficiente no Parlamento e os assuntos de defesa, segurança interna e de política externa, incluindo o programa nuclear estejam obrigados ao acordo de Khamenei.

II - Rohani, com 64 anos de idade, é um clérigo, um homem com formação em Teologia Islâmica e Direito  Islâmico, e um doutoramento em Direito na Universidade de Glasgow, na Escócia. Viveu vários anos na Europa e fala alemão, russo, inglês e francês. A sua carreira no Estado Iraniano, depois da Revolução Islâmica, esteve sempre ligada aos sectores da defesa e da segurança, assumindo durante a guerra com o Iraque, posições de alta responsabilidade nos serviços de inteligência iranianos. Em 1989 foi nomeado para o Conselho de Segurança Nacional e dez anos depois para o Conselho de Peritos, um organismo do Estado iraniano que reúne especialistas dos mais diversos ramos do saber e das actividades económicas.

Em finais de 1999 assume a liderança da equipa negociadora dos assuntos nucleares, cargo que ocupou até 2005, sendo afastado com a entrada em funções do presidente Ahmadinejad, que imprimiu uma nova dinâmica ao projecto nuclear e que acusou Rohani de manter uma linha demasiado cautelosa em relação á Europa e aos USA, o que segundo Ahmadinejad, era uma atitude que afectava o progresso do programa nuclear. Numa entrevista realizada em Março deste ano, na televisão pública iraniana, durante a campanha eleitoral, o entrevistador usou os mesmos argumentos de Ahmedinejad ao que Rohani reagiu intempestivamente chamando-o de “analfabeto” e afirmou ser falso que durante o seu mandato o programa nuclear avançasse de forma lenta, em função das relações diplomáticas, assumindo-se como o grande responsável pela implementação do programa e pelo seu desenvolvimento.

Na política externa, Rohani pretende normalizar as relações com os USA e a Europa, deterioradas durante a administração de Ahmadinejad. Mas na frente interna não se espera grandes alterações durante o mandato de Rohani, que durante a campanha defendeu que o governo deve interferir menos na vida dos cidadão, o que levou as classes médias urbanas, que pretendem libertar-se do controlo imposto pelos sectores religiosos, a prestarem-lhe o seu apoio. Por ser um hábil negociador e um homem de consensos é natural que a sociedade iraniana sofra uma maior abertura ao exterior e que o peso dos valores religiosos se esbatam e se diluam, levemente, durante a sua administração, mas os que esperam por grandes transformações ou por um projecto reformista, ver-se-ão desiludidos, porque Rohani nunca enveredará por uma via que o afaste do consenso e o empurre para o confronto aberto com os radicais.

III - Rohani contou com o apoio dos ex-presidentes Akbar Hashemi Rafsanyani e Mohammed Katami e com a declinação, a seu favor, quatro dias antes do acto eleitoral, do candidato Mohammed Reza Aref. Os “moderados” jogaram tudo na primeira volta das eleições, evitando o cenário da segunda volta, utilizando um discurso que mobilizou a descontente classe média das cidades, que sentia-se ameaçada pelas reformas de Ahmadinejad (o único presidente iraniano que apesar de ser um “radical” encetou um sério programa de reformas sociais, que beneficiaram as camadas rurais mais necessitadas da sociedade iraniana, embora causassem a desconfiança e o temor das camadas médias das urbes).

Do lado dos “radicais”, representados por três candidatos – o alcaide de Teerão, Mohammed Baker Qabilaf, Ali Alili, chefe da equipa de negociações do programa nuclear e Ali Akbar Velayaties, próximo a Ahmadinejad – as divisões eram mais intensas e os consensos muito mais difíceis de obter, devido á maior amplitude de interesses reflectida neste sector, que abrange desde os conservadores religiosos, aos nacionalistas progressistas, passando por uma vasta gama de tendências populistas.

A Republica Islâmica do Irão é um sistema complexo de relações e de dinâmicas de Poder. Não existe um centro de Poder definido. O Conselho Supremo, os pasdarans, o Conselho de Peritos, o Conselho de Segurança Nacional, são instâncias do poder executivo, com uma larga autonomia institucional, mas interrelacionadas de uma forma mais operacional do que hierárquica, ou minimamente hierarquizadas no seu relacionamento. Enquanto o Poder Legislativo e o Poder Judicial contêm centros únicos (o Parlamento Islâmico e o Tribunal Supremo) o Poder Executivo é composto por uma miríade de instituições que poderão ser mais ou menos preponderantes e que criam uma encruzilhada de jogos de Poder, na qual o Presidente da Republica é apenas mais um actor, que pode desempenhar diferentes papéis, mas com competências próprias e especificas ao seu cargo de alto magistrado e responsável máximo do executivo.   

O actual Líder Supremo o aiatola Khamenei, inicialmente viu com bons olhos a eleição do presidente Ahmadinejad, um “radical” que aparentemente favorecia os interesses dos conservadores religiosos (os principalistas), que se reúnem em tono do Líder Supremo. Mas a agenda própria de Ahmadinejad, no exercício da Presidência da Republica, criou fissuras nas relações com o Líder Supremo. Os últimos dois anos foram de difícil relacionamento entre ambas as instituições e apenas as manifestações e o descontentamento das classes médias urbanas, as manteve em diálogo mínimo e concertado.

Os “radicais” da linha de Ahmadinejad (nacionalistas progressistas) tinham uma agenda diferente dos “radicais” próximos ao Líder Supremo, mas este nunca teve força suficiente para desautorizar Ahmadinejad, ou de destitui-lo (o que seria possível apenas através do parlamento). Por sua vez o Presidente da Republica (que não é Comandante em Chefe, ou seja não detém autoridade militar, pois os militares estão sujeitos a obediência ao Parlamento, que é quem declara a guerra e as medidas de emergência) adquiriu uma forte preponderância no Conselho de Segurança Nacional (logo nos serviços de inteligência) enquanto o Líder Supremo e a sua corrente política dominavam o Conselho de Peritos. Não é por isso de descartar a hipótese (plausível se atendermos ás dinâmicas e relacionamentos internos e orgânicos do Estado) que o aiatola Jamani tenha obtido uma vitória politica com a eleição de Rohani, apesar das suas divergências e diferentes interesses.

IV - A cobertura mediática foi reveladora da ignorância do Ocidente no que diz respeito á política iraniana. Nenhuma das analises dos “experts” - as habituais figuras especializadas em tudo, desde do gato da Joana que ficou preso na árvore até aos mais complexos problemas do macrocosmos e da economia, passando pelas trivialidades da política - fazedores de opinião (opinionemeiqueres), que fazem fila á porta dos estúdios para fazerem ouvir os seus mal esclarecidos e pouco esclarecedores comentários, ou fazem sentir o peso (insustentavelmente leve, como a aerodinâmica do hipopótamo) da torta palavra, escrita em linhas direitas, previu o triunfo dos “moderados”, limitando-se a repetir o discurso de Washington que se afogava em lágrimas por o seu candidato, o ex-presidente Rafsanjani, ter visto vetada a sua candidatura, pelo Conselho Supremo da Revolução Islâmica, liderado pelo Líder Supremo, o aiatola Khamenei.

O veto á candidatura de Rafsanjani foi interpretado no ocidente como um “gesto de desespero” do Líder Supremo, que entrou em “pânico com a força dos reformadores”. A campanha mediática que foi desencadeada durante os protestos das classes médias de Teerão acabou por tornar-se numa intensa campanha propagandística e com relação ao Irão, o ocidente não consegue ir além de slogans e de histórias da aleijadinha, ou de argumentos próprios dos dramas de faca e alguidar, que põem as velhinhas a chorar pedras da calçada. E com estas eleições passou-se o mesmo. Acabou por ser divertido ver, ouvir e ler, a surpresa manifesta dos papagaios e catatuas da indústria mediática, perante a vitória eleitoral de Rohani.

Afinal, o Irão, ainda tinha um bocadinho de democracia, diziam os risos, amarelos pelo desconcerto com que as análises do ocidente enganam os seus próprios manipuladores…

V - Nas eleições iranianas de 14 de Junho, os oito anos da presidência de Ahmadinejad - caracterizados por uma política externa independente, dissonante com o Ocidente e de uma política interna baseada nas aspirações camponesas e apostando fortemente no projecto nuclear, transformado em questão vital para a soberania - foram julgados. Foi fatal a Ahmadinejad uma economia problemática. A vida quotidiana do Irão é afectada por questões básicas, como o deficiente abastecimento alimentar e a falta de medicamentos. O presidente iraniano foi demonizado pelas classes médias urbanas, assustadas com o seu discurso socializante e com a sua perspectiva externa contrária aos desígnios ocidentais.

Ahmadinejad via nas classes médias aquilo que realmente são: uma massa disforme e confusa de funcionários, profissionais liberais e pequenos empresários, caracterizados pela relação de propriedade. Este cluster social julga que a solução para o drama económico iraniano consiste numa mera abertura do mercado ao Ocidente. As classes médias urbanas iranianas (iguais ás de todo o mundo, com os mesmos tiques, as mesmas crenças e as mesmas mitologias alienantes), fortemente aculturadas e com um gosto especial pelo Ocidente, abominavam a figura do presidente iraniano, considerando-o um campónio, um ditador e um retrógrado, na melhor das hipóteses, havendo ainda os sectores mais desesperados, á beira da falência, que o consideravam um perigoso comunista. 
  
As aspirações nacionalistas de Ahmadinejad soçobraram perante a fraqueza da economia iraniana, que naturalmente tornou-se um dos dois temas centrais do cenário eleitoral. O outro tema estava escondido por debaixo do projecto nuclear iraniano e chama-se relações com o Ocidente. Com a política de Ahmadinejad essas relações tornaram-se ainda mais conflituosas e a classe média teme as consequências desse conflito (o que a deixa num papel de relevo no bluff externo criado pelo Ocidente). Desde a revolução Islâmica que o Ocidente olha para o Irão como um inimigo permanentemente diabolizado, um nicho de terroristas e um centro de clérigos fanáticos e fundamentalistas.

A insistência do Irão em ter uma via de desenvolvimento assente na soberania dos recursos entra em contradição com os actuais ditames da presente ordem internacional. O Irão é temido e por isso é atacado, mas o receio que o Irão inspira ao Ocidente é devido á incompreensão ocidental, que não consegue entender as dinâmicas internas do país e a arquitectura institucional estabelecida pela Revolução Islâmica. Os argumentos que o Ocidente esgrime na sua cruzada contra o Irão, são o sinal evidente desta incompreensão da realidade iraniana e constituem um bloqueio cultural, que não resiste a uma análise mais séria e profunda, mesmo que efectuada dentro dos parâmetros predominantes da actual lógica do Ocidente. 
  
As condenações a que o país é sujeito por parte da U.E. dos USA e da ONU, que se reflectem na política de sanções impostas aos iranianos, baseiam-se em pressupostos errados e em premissas que nunca foram comprovadas. Apesar dos USA, logo depois dos resultados eleitorais serem conhecidos, afirmaram-se prontos para negociar com o Irão o seu programa nuclear, demonstrando algum optimismo e deixando no ar uma vaga hipótese de abrandar as sanções, é pouco provável que isso venha a acontecer de imediato.

Israel, pela voz do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, afirmou que a pressão sobre o Irão não deve ser abandonada. Netanyahu, conhecedor da realidade institucional iraniana, referiu que o Líder Supremo é quem determina o programa nuclear e não o presidente, pelo que a pressão deve continuar, até para “auxiliar o processo reformista”. E arrematou com a habitual ameaça: “Se o Irão insistir em avançar com o programa de armamento nuclear o resultado final deve ser claro. De uma forma ou de outra o programa tem de ser parado.”

As sanções aplicadas ao Irão visam a asfixia económica do país, de forma a criar focos de instabilidade, o que foi conseguido com as classes médias dos principais centro urbanos, mais sensíveis á pressão e às relações comerciais com o Ocidente. David Cohen, Subsecretário de Estado para o Terrorismo, declarou á al-Arabiya, que as sanções afectaram a capacidade do Irão e dos seus serviços de inteligência em manterem os elevados níveis de suporte ao Hezbollah e ao Hamas, para além de prejudicarem os apoios iranianos á Síria.

O Irão é, assim, sancionado pela possibilidade incerta de num determinado momento do presente ou de um futuro próximo produzir armas nucleares, o que nunca foi comprovado e que o Irão refuta, argumentando que o seu projecto de desenvolvimento nuclear é para fins energéticos e não para fins militares. Duas questões essenciais devem ser colocadas, na actual e decadente ordem internacional: a da decisão soberana e o da legitimação dos tratados internacionais. Vamos supor – porque nada indica que essa seja a intenção – que o Irão utilizará o projecto nuclear com fins militares, para além das óbvias finalidades civis. É uma decisão soberana e legítima. Algumas vozes angelicais perguntam de imediato: “Então e os tratados internacionais de Não Proliferação Nuclear?” Esses, meus angelicais e etéreos seres, valem o que valem. E valem o que valem porque são assentes numa lógica de domínio e não na legitimidade da decisão soberana.

Os actuais tratados favorecem o clube dos que já possuem as armas nucleares, um restrito clube de cavalheirescos cavaleiros e garbosos cavalos, que impede a entrada aos jovens pretendentes. Os privilegiados outorgam-se de um direito quase divino e consideram-se os eleitos, os únicos que podem manter os arsenais nucleares, porque com eles estão “em boas mãos”. Como este clube de privilegiados, de eleitos que possuem as virtudes cedidas pela divindade do bom senso e da razão pura, é o mesmo que tem assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, fica constituído o monopólio das armas nucleares. Tudo o que está para além das suas decisões é proliferação nuclear.

Só teme a proliferação nuclear os que pretendem manter a sua hegemonia. É legítima a vontade soberana que provenha de um Estado que opte pela utilização dos arsenais nucleares, pois esta é uma opção de defesa perante as pretensões hegemónicas do bloco dominante. Os tratados internacionais só são legítimos, quando assentam em pressupostos e procedimentos de igualdade de tratamento e de respeito mútuo, pois só assim a fonte da legitimidade, que provém da soberania dos signatários, poderá impor a implementação do acordo.

Neste contexto a Republica Islâmica do Irão joga um papel fundamental na desarticulação dos discursos e da praxis da homogeneização na política internacional. O maior legado de Ahmadinejad foi a aproximação efectuada entre a América Latina, o mundo árabe, África e o mundo persa, no contexto da cooperação sul-sul, numa lógica de combate á hegemonia e assente na construção de um padrão critico nas relações internacionais. Se Rohani vai reconhecer este facto e continuar nesta senda, ou não, é, por enquanto, uma incógnita. Depende das cedências que fizer aos interesses que o elegeram e aos interesses que o rodeiam: ou cede á radical moderação da classe média e das elites económicas (que o elegeram), ou á moderada radicalidade das elites surgidas após a Revolução de 1979 (que é a sua origem).

Quanto às aspirações populares terão de ficar na fila de espera. São ardilosos, os trilhos do Profeta…
  
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