Rui Peralta, Luanda
(ler a 1ª parte)
V - O Adalet ve
Kalkınma Partisi (AKP) é um partido de raízes islâmicas, embora visto pela
comunidade internacional, erradamente, como um partido islâmico. Segundo o
artigo 68 da Constituição turca, não são permitidas formações políticas com
referência ou designação religiosa, pelo que AKP, apesar das suas raízes
islâmicas, não comporta qualquer referência religiosa na sua denominação,
definindo-se como um partido conservador democrático, na mais estrita visão
ocidental.
Recep Tayyip
Erdoğan, o actual primeiro-ministro - condenado a 10 meses de prisão, em 1997,
por incitação á violência – gosta de identificar o AKP a um projecto de
“democracia islâmica”, de forma a permitir a comparação com o projecto
“democrata-cristão” dos partidos europeus, principalmente com o mais próximo
(em termos geopolíticos) a CDU da Alemanha. Esta comparação é de grande
utilidade para o AKP e permite normalizar a opção “democrata-islâmica”,
integrando-a no espaço político de uma Europa predominantemente cristã, o que
permite á Turquia uma maior penetração no mercado europeu, um espaço
intrinsecamente laico (mesmo ateu, quando larga a sua componente regional e
insere-se no mais vasto mercado global).
Este projecto
político turco, durante as duas primeiras legislaturas – a de 2002 que o AKP
ganhou com cerca de 34% dos votos e a de 2007, onde conquistou perto de 47% –
estabeleceu-se em quatro princípios fundamentais: reformismo político,
neoliberalismo económico, posicionamento politico no espaço do centro-direita e
uma política exterior proactiva. Na actual legislatura – a terceira, ganha com
uma substancial maioria de 49% - o AKP assume um quinto princípio fundamental
na sua praxis politica: a destruição do aparelho kemalista, eliminando qualquer
reminiscência politica do projecto kemalista na sociedade turca. E isso
significa, quer se queira ou não, um rude golpe para o laicismo turco, tão caro
às classes médias urbanas e aos sectores maioritários da burguesia nacional,
mas também a vastos sectores populares.
A transição
democrática turca foi iniciada e controlada pelos militares, sob três
condicionantes: um sistema tutelado, instituições políticas subservientes a
esse controlo e um processamento eleitoral devidamente controlado pelas
máquinas partidárias concordantes com estes princípios de sociedade democrática
“controlada”. Mas este é o cerne do projecto kemalista, um projecto
nacionalista de cariz cegamente desenvolvimentista, gerador de instituições
políticas frágeis e de uma oligarquia institucional assente no enfraquecimento
da soberania popular e na exacerbação da “soberania nacional” desrespeitador,
por isso, dos equilíbrios necessários às dinâmicas do desenvolvimento.
Não é por isso de
admirar que no cenário dos actuais protestos, surja a facilitada, manipulada e
manipuladora explicação das contradições entre laicismo e islamismo (reais, mas
não cruciais) e as referencias á influencia kemalista e destruição das suas
reminiscências (oposição / governo, como se as contradições parlamentares se
resumissem a essas duas forças, ignorando por completo os diversos sectores da
esquerda turca e da extrema-direita, suficiente forte e enraizada na sociedade
turca ao ponto de ter representação parlamentar, até aos sectores
independentistas e autónomos curdos).
Um ponto de acordo
entre as diversas tendências que formam os protestos populares é a figura de
Erdogan, que por sua vez, ao contrário do presidente Gul, do
vice-primeiro-ministro Bulent Arinç e dos sectores moderados do AKP, nada fez
para atenuar esta situação, ao acusar os manifestantes de que os protestos são
“ideológicos” e organizados por “grupos extremistas” e deixando sempre no ar a
“mão dos serviços secretos sírios” ou dos “terroristas curdos, financiados e
organizados pelos sírios”. Os
protestos turcos evidenciaram dois elementos políticos em crise: a liderança de
Erdogan e a ausência de um projecto politico oposicionista. Mas também
comprovaram que o actual movimento de protesto não pode gerar qualquer
alternativa politica, por uma razão muito simples: não está nos seus
horizontes. É um protesto que inclui vários níveis e grupos de interesses,
demasiado heterogéneo e simultaneamente vago nos seus propósitos, cujo único
ponto de consenso é a saída de Erdogan e o término das medidas legislativas que
afectam a liberdade individual e o laicismo na sociedade turca.
VI - O golpe
militar de 1980 pôs um fim a décadas de violência que opunha grupos armados da
esquerda revolucionária e da extrema-direita nacionalista (cujo grupo principal
era os Lobos Cinzentos, com fortes ligações aos serviços secretos turcos e
cujas milícias eram usadas pelos militares no “combate ao terrorismo”). Os
conflitos armados provocaram o desgaste do sistema institucional implementado
pela Constituição de 1961, criando uma situação de vazio de poder que gerou a
intervenção militar (de matriz kemalista).
A ordem politica
que emerge do golpe de 1980 tem três vectores fundamentais: Foi uma ordem
política de pacificação; Aumentou os instrumentos coercivos do Estado e em nome
da paz institucionalizou a violência, durante a vigência da ditadura; A
repressão atingiu os sectores kemalistas tradicionais devido ao seu
posicionamento estatista (as elites kemalistas mais tradicionais defendiam uma
politica económica fortemente marcada pelo peso do sector publico,
contrariamente aos interesses das novas elites kemalistas, que defendiam a
liberalização económica, para fazer frente á crise petrolífera) e a sua
oposição, apesar de membros da NATO, ao eixo anglo-saxão - que na época exercia
uma enorme influencia na geopolítica euroasiática – evidenciada na ocupação do
Norte do Chipre e na confrontação militar com a Grécia, representante dos
interesses britânicos na região.
Em 1982, quando os
militares entregam o poder aos sectores políticos civis, a elite politica
kemalista, renovada e expurgada, revela-se incapaz de responder ao
enfrentamento constante do Partido dos Trabalhadores Curdos (PKK) e ao
alastramento das guerrilhas curdas e demonstra a mais absoluta incompetência ao
ser incapaz de parar a espiral de endividamento e a corrupção, que minou a
sociedade e a economia turca. Estes insucessos dos kemalistas levaram aos
descontentamento de uma classe média emergente, no interior do país, de origem
rural, que lutava pelo seu espaço no mercado, tentando quebrar a hegemonia dos
cosmopolitas laicos de Ancara, cujas classes médias eram liberais e
ocidentalizadas.
As forças políticas
islâmicas (na época ainda não existia o AKP e a força politica de raiz islâmica
predominante era o Partido Rafeh) canalizaram esses protestos e começaram a
criar uma força conservadora, evidenciada pelas eleições regionais, onde o seu
peso eleitoral era ampliado pelo funcionamento do sistema eleitoral. O avanço
dos conservadores levou á reorganização das suas forças políticas e dos
mecanismos de representação, tendo sido criado o AKP, que chegou ao poder em
2002.
O AKP, no primeiro
mandato, organizou a economia, atenuou os problemas com os curdos (embora
através de paliativos que só serviram para adiar a questão e que originariam
novos problemas e novas revoltas curdas) e adocicaram a boca das elites
ocidentalizadas, dos sectores laicos da classe média e das camadas populares
urbanas, continuando a negociar a integração europeia (processo que foi iniciado
pelas sucessivas governações kemalistas, apos 1982).
Foi este o início
do fim das elites kemalistas, incapazes de se renovarem e completamente
ultrapassadas pelas dinâmicas que as suas políticas geraram durante décadas (um
cenário idêntico ao mexicano, com o PRI).
VII - O Imperio
Otomano, em ruinas, era um cenário de violência e sofrimento, que presenciou o
genocídio arménio, as migrações forçadas de comunidades islâmicas nos Balcãs e
a destruição de povos não islâmicos. A Republica de 1923 rompeu com esse
passado e criou uma nova identidade e uma renovada narrativa histórica. Baseada
numa visão nacionalista, a Republica de 1923, impulsionadora da Revolução
Industrial na Turquia, criou uma nova classe média, moldada á imagem e aos
valores das classes médias ocidentais.
O culto da
personalidade a Mustafa Kemal Atatturk, o seu principal dirigente, forjou a
unidade nacional necessária para o estabelecimento das políticas
desenvolvimentistas. Nascidas as elites kemalistas, a Republica torneou a II
Guerra Mundial e foi um Estado-Frente durante a Guerra Fria, desenvolvendo um
modelo burocrático-militar, fortemente integrador, que assegurou um sistema
político hibrido, pintado por eleições que colocavam políticos no poder e pouco
mais. Curdos, comunidades islâmicas e não islâmicas, foram assimiladas através
de políticas de desapropriação e “progroms” coordenados pelo Estado.
Garantida a unidade
nacional, implementada a visão kemalista, avançando a industrialização, a
Republica atingira os seus primeiros objectivos e razões da sua existência. A
segunda fase revelou-se muita mais complexa e transporta consigo uma elite cada
vez mais difícil de se renovar e sem líder, desde a morte de Atatturk. Na
frente externa o Ocidente vê na Turquia um forte e importante aliado, em
desenvolvimento acelerado e um policia regional de grande operacionalidade.
Todo este resumido
quadro histórico joga em torno de uma sociedade que sempre se regeu por um
regime hibrido que oscilava entre a abertura e o autoritarismo, até ao presente.
Tal como até ao presente a figura de Estado-Frente ao serviço da NATO, nunca
foi alterada. Esses factores são marcantes nas políticas interna e externa
turcas. São evidentes no populismo autoritário e paternalista de Erdogan e na
forma como reagiu aos últimos protestos e foram evidenciados durante a questão
iraquiana e na actual crise síria, que transformou a Turquia num intermediário
logístico, com todos os riscos que isso acarreta em termos de segurança interna
e de agravamento dos conflitos permanentes com os curdos e com outras
comunidades e grupos étnicos e religiosos.
E todos estes
factores foram sendo adicionados aos protestos, á medida que o tempo passou. Do
autoritarismo, á questão social (que arrastou os sindicatos), juntaram-se as
questões do género, da homossexualidade, o conflito sírio, as reivindicações
turcas e das comunidades minoritárias, estabelecendo-se plataformas de
interesses, que pela sua dispersão nunca poderão constituir uma força
organizada, mas que poderão ser cargas de impulsão no decorrer do presente e no
futuro próximo.
VIII - A Praça
Taksim tem um significado para os trabalhadores turcos. Em 1977, no Primeiro de
Maio, meio milhão de manifestantes dirigem-se para a praça. É o segundo ano em
que esta data pôde ser celebrada na Turquia, depois de 50 anos de proibição. No
ano anterior, 200 mil manifestantes tinham-se concentrado nesta praça, para
realizarem um comício. Aquele ano de 1976 foi um ano de luta operária, que
conheceu uma imensa vaga de greves. O sindicato dos metalúrgicos tinha ocupado
mais de 120 fábricas e as greves do sector duraram onze meses, envolvendo
centenas de milhares de trabalhadores, que contaram com o apoio dos estudantes,
através das grandes greves estudantis universitárias de 1976.
No dia 1 de Maio de
1977, quando meio milhão de trabalhadores marcham em direcção á praça Taksim a
polícia disparou e os confrontos iniciaram-se, tombando 40 trabalhadores mortos
e um número incerto de feridos. Estes acontecimentos sangrentos, ocorridos na
praça, levaram a que fosse naquele lugar, até ao golpe militar de 1980, ano em
que foram novamente proibidas, que as concentrações sindicais fossem
realizadas.
Os números do golpe
militar de 1980 foram negros. 600 mil detidos e torturados, 50 mil exilaram-se
no Ocidente (Alemanha, Suécia e França), 700 sentenças de mortes (48 por
enforcamento), 200 casos comprovados de morte por tortura e mais de 20 mil
associações políticas, sindicais, socioprofissionais, culturais, proibidas pelo
regime militar. Os golpistas contaram com o apoio da CIA e de uma rede da CIA
que naqueles anos estava activa em toda a Europa, Eurásia e América do Sul: a
Gládio, uma rede formada pela NATO, com organizações de extrema-direita,
sectores militares e suportada pela CIA, com o objectivo de combater a
“infiltração comunista” (e que chegou a tentar um golpe de estado em Itália, o
que gerou um enorme escândalo, na época e obrigou ao cancelamento das operações
da rede na Europa ocidental).
Mas mesmo durante a
ditadura militar a praça Taksim, foi palco de todas as manifestações de
protesto clandestinas, semiclandestinas, possíveis contra o regime militar.
Foi, portanto, uma escolha errada de Erdogan, que passando por cima da
importância da praça na Historia recente do país, que ele conhece perfeitamente,
veio propor o que mais não é do que uma operação imobiliária, que criará
enormes lucros às empresas escolhidas, com certeza todas elas financiadoras das
campanhas do AKP (esta é uma situação normal e transversal a todos os “regimes
democráticos” da Eurásia, Europa, Africa, América, Ásia, é um fenómeno global,
próprio da decadência a que a actual ordem politica mundial chegou).
IX - Os recentes
protestos que eclodiram na Turquia resultam da confluência de descontentamentos
com diversas origens, mas expressam um denominador comum: a rejeição de um
projecto que nega a soberania popular, de um projecto autoritário e que
despreza as liberdades individuais e os direitos sociais, que rejeita o
envolvimento tuco nos assuntos internos da Síria e o papel de polícia de choque
que a Turquia desempenha na região, em paralelo com Israel.
A Síria assume
nestas manifestações um papel não central, mas omnipresente. Quando a 11 de
Maio o governo turco acusou os sírios de serem responsáveis pelos atentados em
Reyhanli, ninguém acreditou nisso. Quando a polícia turca desmantelou uma rede
da al-Nusra na cidade de Adana, que produzia armas químicas e não conseguiu
prender os seus militantes, todos sorriram discretamente, com o envolvimento
dos serviços secretos turcos e com o engano dos polícias.
Quando no final de
Abril a Associação de Paz da Turquia e o Conselho Mundial da Paz, promoveram um
acto publico contra a intervenção turca na Síria, em Antakya, largos milhares
de pessoas, de todos os sectores da sociedade turca, participaram. Por sua vez
os habitantes das aldeias da província de Hatay manifestam-se semanalmente pela
paz e contra as movimentações de terroristas que atravessam a fronteira e que
provocaram o colapso da economia local, em virtude do encerramento da fronteira.
Portanto os protestos na praça Taksim são um prolongamento destes protestos
contra a intervenção e o envolvimento turco no conflito sírio, ao qual foram
adicionados as outras questões de fundo.
As movimentações de
massas crescem e assumem uma dinâmica de crescimento considerável e o governo
manifesta a sua incapacidade em lidar com essa dinâmica. Os protestos não estão
sujeitos a qualquer orientação politica e tem sido evidente que desde o Partido
Comunista Turco ao partido líder da oposição parlamentar, o Partido Popular
Republicano, as máquinas partidárias foram surpreendidas e têm sido arrastadas
pelo processo e o mesmo aconteceu às estruturas sindicais.
Sultões e “pashas” ensombraram o passado e o
presente da Turquia. Mas têm cada vez menos lugar no futuro. Por muitas praças
Taksim que derrubem, para apagar a memória do povo…
Fontes
Margolis, Eric Turkey’s Riots
Threaten a Decade of Progress http://www.lewrockwell.com/margolis
Gálvez, Héctor
Erdoğan y "la mujer de rojo" http://rebelion.org
Öksem, Kerem http://www.jadaliyya.com/pages/index/12088/contours-of-a-new-republic-and-signals-from-the-pa
Rendón, Rafael
Castaño http://www.kaosenlared.net/america-latina/item/60071-turqu%C3%ADa-razones-de-una-revuelta.html
Öksem, Kerem Angry
Nation: Turkey since 1989. Zed Books, London 2011
Ler a 1ª parte: TURQUIA:
OS EURO-SULTÕES E OS “PASHAS” DO OCIDENTE (I)
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