Se houvesse uma
escala para efeitos de denúncias internacionais, como há a Richter para os
terremotos, o caso Snowden estaria no topo. De certo modo, as revelações do
ex-espião norte-americano são mais impactantes do que as feitas tempos atrás
por Julian Assange, com o auxílio de Bradley Manning.
Flávio Aguiar –
Carta Maior
No fim de semana
passado, a Der Spiegel publicou uma entrevista com Eduard Snowden,
feita ainda em junho em Hong Kong por Jacob Appelbaum com a ajuda de Laura
Poitras. Na segunda-feira (8), foi a vez do The Guardian publicar
mais uma fatia da entrevista feita por Glenn Greenwald (com Poitras na câmera e
ajuda de Ewen MacAskill), também em junho e em Hong Kong antes de que as
denúncias viessem a público. A primeira fatia fora publicada em 09/06. Ambas as
fatias estão disponíveis no site do The Guardian; a entrevista da Spiegel
está disponível em alemão e em inglês nos sites da revista, além de extensa
análise de como opera a espionagem norte-americana em território alemão.
Juntando os dois segmentos do Guardian com o da Spiegel, é
possível agora obter um quadro mais completo da situação e das revelações,
conforme os itens abaixo descritos.
1) Existe uma rede praticamente única e fechada entre serviços de informação de
cinco países: os EUA, o Reino Unido, a Austrália, a Nova Zelândia e o Canadá. A
França aparentemente opera um sistema lateral, embora não desconectado daquele,
que Snowden chama de “Five Eye Partners”. O serviço secreto alemão, através do
Bundesnachrichtdienst (BND) é uma espécie de “irmão menor” do “Big Brother”
norte-americano.
2) Apesar das sucessivas negativas por parte do governo alemão e dos pedidos de
explicação da chanceler Angela Merkel ao presidente Barack Obama, é certamente
impossível que as operações de espionagem norte-americanas em toda a Europa (na
verdade em todo o mundo) e na Alemanha, em particular, fossem desconhecidas
pelas autoridades de Berlim. O SPD, os Verdes e a Linke estão cobrando
explicações. Mesmo o FDP, parceiro da CDU/CSU no governo, manifestou seu
desconforto com as revelações das entrevistas. 78% do público alemão também
exige explicações.
3) Frankfurt é um local estratégico para as comunicações e para a espionagem. É
nesta cidade – capital financeira da Europa – que os cabos de fibra ótica da
Ásia, do Oriente Médio e do antigo Leste europeu se conectam com os do
Ocidente. Ali operam a alemã Deutsche Telekom e a norte-americana Level 3, que
se jactam de filtrarem 1/3 das comunicaçòes mundiais de internet. É impossível
desenvolver a espionagem denunciada por Snowden sem a cooperação destas
empresas e de outras em Frankfurt, ou de agentes nela infiltrados, para dizer o
mínimo.
4) Uma grande parte das informações armazenadas pelo sistema de espionagem
(Snowden declara que o sistema tem capacidade para armazenar tudo o que capta
pelo menos por três dias, mas isto está sendo “aprimorado”) parte do que é
chamado de “metadata”. “Metada” é, em princípio, o conjunto de listas que todas
as companhias telefônicas devem entregar a seus governos, contendo as
informações sobre quem chamou quem e quando. Os “metadata” não contém o
conteúdo de uma conversação, mas assim mesmo, segundo Snowden e outros
pesquisadores da área, eles normalmente são o ponto de partida para detectar
quando uma investigação deve ser aprofundada. Diz Snowden e os outros
especialistas da área (entre eles o próprio Appelbaum) que as informações
“metadata” são suficientes para traçar quase que na totalidade o perfil de um
usuário. O sistema está sendo ampliado para a internet. A partir do manejo dos
“metadata” e das informações suplementares obtiodas e armazenadas, torna-se
fácil, por exemplo, “construir” um perfil de “inimigo” e colá-lo em quem quer
que seja.
5) Além das prováveis operações em Frankfurt, a NSA (National Security Agency)
certamente ainda opera um centro de espionagem na cidade de Bad Aibling, na
Baviera, em cooperação com o BND. Este centro – do tempo da Guerra Fria – será
desativado quando o Exército norte-americano concluir a construção de uma
unidade na cidade vizinha de Wiesbaden. Tudo desta futura unidade vem dos
Estados Unidos, dos tijolos às antenas parabólicas.
6) As entrevistas providenciam uma série de informações colaterais. Por
exemplo, Snowden confirma que a NSA e o serviço secreto israelense construíram
o vírus Stuxnet, usado para atacar o sistema de computação do programa nuclear
iraniano.
7) Uma pequena declaração de Snowden no vídeo divulgado pelo Guardian em 08/07
chama a atenção para um outro aspecto – à primeira vista um pequeno detalhe,
mas de fundamental importância. Greenwald pergunta como e por quê ele tomou a
decisão de se tornar um “whistleblower”. Ao lado dos problemas de consciência
levantados, ele declara que, como agente e analista de espionagem, ele tinha
acesso a “informações verdadeiras” (true information), “antes que elas fossem
transformadas em propaganda pela mídia”. Ou seja, uma parte do esforço da NSA
se concentra em formar a opinião pública, e para tanto a cooperação da mídia –
proposital ou não – é fundamental, como atesta o caso da guerra do Iraque.
8) Além da divulgação das informações, as entrevistas de Snowden permitem
algumas conclusões relevantes. De fato, a segurança e até a vida dele correm
perigo. Por isto, o asilo que ele busca – concedido previamente por três
países, Bolívia, Nicarágua e Venezuela – é fundamental. O Brasil deveria no
mínimo apoiar estas concessões de asilo, como fez Cuba, senão conceder ele
mesmo o asilo. Também deveria fazer parte da ação do governo brasileiro a busca
de uma alternativa viável para Snowden deixar Moscou, se for esta sua vontade,
em direção ao país em que deseje se asilar. A espionagem e o governo
norte-americanos vão caçá-lo por onde passe, e provavelmente com a ajuda
subserviente dos governos europeus, como ficou evidente no caso do avião
presidencial boliviano.
9) Henrique Capriles, líder da oposição venezuelana de direita, condenou a
adecisão do presidente Nicolás Maduro, concedendo o asilo. O gesto é um índice
da disposição das direitas do continente diante deste caso. Uma outra
consideração importante: parte da nossa mídia conservadora vem tratando Snowden
como um “delator”. É fato que a palavra é uma das traduções dicionarizadas para
“whistleblower”. Mas seria melhor tratá-lo como “denunciante”. “Delator” tem
uma conotação muito negativa no Brasil. Afinal “delator” em nossa história foi
Joaquim Silvério dos Reis, que “delatou” a conspiração mineira.
10) Last, but not least, perguntado sobre seu maior medo, Snowden respondeu que
era o temor de que, a partir de suas denúncias, nada acontecesse.
Fotos: The Guardian
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