... morrem de fome!
Orlando Castro –
William Tonet – Folha 8, edição 10 de agosto de 2013
Chama-se Rosa Mayunga,
mas deveria chamar- se “Mãe Angola” ou, apenas, Angola. A propósito do
Campeonato Mundial de Hóquei em Patins, que terá lugar no nosso país com um
custo global estimado (provavelmente peca por defeito) de 130 milhões de dólares,
arrasa o regime angolano, sem esquecer os neocolonizadores para quem as
riquezas são mais importantes do que as pessoas. Desde logo nós morremos mas o
petróleo e os diamantes, entre outros, ficam cá. Num documento notável, endereçado
às autoridades nacionais e internacionais, de modo a que ninguém possa ignorar
a denúncia, põe a nu a megalomania de um regime de luxuriantes devaneios à
custa do erário público, mostrando o outro lado do país onde morrem milhares de
angolanos, em especial crianças, à fome e por doenças, “consequência da
negligência governamental e da corrupção”.
Angola tem 50% da
população com menos de 15 anos na sua maioria mulheres e lidera o ranking da
violação dos direitos humanos. Isso não impede que se gastem 130 milhões de
dólares num campeonato de hóquei em patins. É certo que o presidente da nona
Comissão dos Direitos Humanos, Petições, Reclamações e Sugestões dos Cidadãos na
Assembleia Nacional, Higino Carneiro, ou será que já é ex, ao ter sido nomeado
governador do Kuando Kubango, afirmou que o Executivo respeita os conceitos da
dignidade humana e de justiça social previstos na Constituição. Também disse,
recorde-se, que o país continua a promover e defender os direitos e liberdades
fundamentais do homem e lembrou que a Constituição estabelece, de forma clara,
o respeito pelos direitos humanos e princípios fundamentais para uma
convivência em sociedade. Mas como é que isso é compaginável com uma realidade
em que as nossas crianças são geradas com fome, nascem com fome e morrem pouco
depois com fome?
Rosa Mayunga,
afirma que “o Governo que não previne situações que perigam a vida dos seus
cidadãos, patrocina e organiza eventos, que desperdiçam avultadas verbas, como foi
com o CAN e agora com o hóquei em patins”, e acrescenta que “o mundo caminha
galopantemente numa trincheira sem saída, por causa de algumas minorias no
mundo, que por ambição desmedida, usam certos poderes, e que com eles, têm
vindo a destruir a Humanidade”. “Mãe
Angola” esclarece, e nunca é demais fazê-lo, que “os Povos de Angola são
detentores de um dos países hoje considerados mais ricos do mundo, em recursos
minerais, biodiversidade natural e humanos”, explicando que, “apesar destes
recursos todos, quem tem usufruído são os países ocidentais e europeus, que
outrora colonizadores e que hoje estão como neocolonizadores, mantendo os
nossos povos na miséria, porque corrompem os governos, para a satisfação dos
seus negócios”. “Os angolanos mal se refizeram da violência duma guerra
genocida que durou mais de 30 anos e que foi patrocinada pelos mesmos países
outrora colonizadores, que vendiam as armas com que se matou e mutilou milhares
de angolanos. Mal conseguimos a Paz, já estamos a ser assediados com eventos
que estão a enriquecer terceiros e a empobrecer ainda mais os nossos povos. E o
mundo em silêncio a explorar os recursos de todos os angolanos, poucos ou quase
nenhum governo europeu e ocidental se insurge contra a corrupção que limita o
desenvolvimento em Angola, até parece que são todos cúmplices, para com o
sofrimento imposto aos angolanos”, diz com uma coragem inaudita a “Mãe Angola”. Também ela
compreende a valia do desporto, embora este esteja muito distante do
emblemático desígnio de “alma sã em corpo são”. Mas, de facto, realizar um campeonato
do Mundo quando, ali ao lado, existe fome, o índice de mortes materno-infantis
é elevadíssimo e onde há ainda milhares de crianças sem acesso à escola ou aos mais
elementares meios de dignidade humana, é – no mínimo – um crime que deveria
levar os seus responsáveis ao Tribunal Penal Internacional por crimes contra a
humanidade.
Neste país que vai
realizar o campeonato mundial, a esmagadora maioria dos angolanos continua a
não ter água potável em casa, luz, alimentos nutritivos e saúde, embora tenha
uma taxa de analfabetismo elevada e índices de mortes materno-infantil pior que
outros países de África. Como muito bem diz Rosa Mayunga, “este
campeonato é visto por todos os angolanos e cidadãos de bem no mundo, como um
patrocínio ao terceiro genocídio contra a Humanidade, imposto aos povos de
Angola, porque entendemos que uma instituição que promove o desporto para o bem-estar,
deve também promover a consciência humana e solidária”. Os países
participantes, cujas comitivas serão alojadas em hotéis dos mais luxuosos do
mundo, sabem que no nosso país existem 85.5% de miseráveis. Sabem mas calam-se.
Pelos vistos nunca ouviram falar de Martin Luther King que, atento ao sofrimento
do seu Povo, disse: “o que mais me preocupa não é o grito dos violentos, nem
dos corruptos, nem dos desonestos, nem dos sem carácter, nem dos sem moral. O
que mais me preocupa é o silêncio dos bons”. Bons? Onde estarão eles? Quando
será que os angolanos em particular, mas os africanos em geral, vão denunciar
que o Ocidente e a Europa nos impingem tudo que é contra a vida, como
agrotóxicos, alimentos geneticamente modificados, mosquiteiros impregnados com
insecticida, prostituição de menores, assassinatos, tráfico humano,
escravatura, comércio de drogas, comércio de armas de guerras, experiências em
seres humanos, que querem construir fábricas de armas de guerra, que patrocinam
guerrilhas, que exploram os nossos recursos sem controlo, nem respeito pelo
ambiente, que manipulam os estados corrompendo-os, que apoiam os ditadores
porque com eles é mais fácil negociar? Quando será que os angolanos em
particular, mas os africanos em geral, vão denunciar esses ditos países desenvolvidos
que também marginalizam e discriminam os africanos que lá vivem e limitam a sua
entrada deixando-os morrer no alto mar, como acontece em Espanha e em Marrocos?
É certo que o
Ocidente e a Europa falam de direitos humanos e de democracia. No entanto
estão-se literalmente nas tintas para os povos que, em África, morrem devido à
desmedida ambição dos governos ditatoriais que ajudaram a chegar ao poder e que
lá se mantêm com o seu apoio e cumplicidade. Porque muitos, cada vez mais,
fogem sem pensar, é preciso que alguns pensem sem fugir, mesmo quando lhes
encostam uma pistola à cabeça, mesmo quando são obrigados e pensar com a
barriga... vazia. Infelizmente os povos de África, e os de Angola não são
excepção, pediram ajuda ao leão para os livrar dos cães. Quando se aperceberem
(alguns já se aperceberam), o leão derrotou o cão e está a comê-los a eles. O
leão, como mais uma vez se confirma, não terá necessariamente de ter
nacionalidade norte-americana ou europeia. Aliás, os homens do Tio Sam são
especialistas em criar leões onde mais lhes convém. Em certa medida Osama bin
Laden, tal como Saddam Hussein, como Muammar Kadafi, foram leões “made in USA”.
Ao contrário do que pensam os ilustres operacionais da NATO, do FBI da CIA ou de
qualquer coisa desse tipo, ninguém tem neste planeta (pelo menos neste) autoridade
e poder ilimitados. Os maus da fita, segundo os realizadores da NATO, poderão
não ter a mesma capacidade bélica do que os EUA e seus aliados. Vão ser,
continuam a ser, humilhados, sobretudo pelo número dos mortos que o único erro
que cometeram foi terem nascido. São as leis da razão? Não. São as leis dos
instintos. Instintos que vão muito além das leis da sobrevivência. Entram
claramente (tal como entrou Bin Laden ou Muammar Kadhafi) na lei da selva em que
o mais forte é, durante algum tempo, mas nunca durante todo o tempo, o grande
vencedor. Seja como for, e como exemplo, o Mundo Árabe só está do lado dos
países da NATO por questões estratégicas, por opções instintivas. Bem ou mal,
em matéria de razão, os árabes estão com os seus... e esses não são os
ocidentais. Pelo menos desde a Guerra dos Seis Dias, a aprendizagem dos árabes
tem sido notável. Aceitam o que os donos do mundo definem como inimigos,
enforcam até os seus pares com a corda fornecida pelo Ocidente, mas, na melhor
oportunidade, vão enforcar americanos e europeus com a corda enviada de Nova
Iorque, Paris ou Londres.
O nosso caso é
paradigmático de que somos um país rico mas não um rico país. O presidente diz
que Angola está a crescer em todos os domínios. E se ele o diz… Ou seja, está a
crescer de tal ordem que, provavelmente, a percentagem de angolanos na miséria está
a crescer. A Ocidente e a Europa confirmam. Portugal, protectorado angolana,
não só confirma como subscreve. Recorde-se que, por exemplo, no dia 10 de Março
de 2009, PS, PSD, CDS-PP e PCP elogiaram os esforços de José Eduardo dos Santos na
consolidação (ou crescimento) da democracia (que se calhar até gostariam de ver
transplantada para Portugal), e congratularam-se com o aprofundamento das
relações entre Portugal e Angola. As relações, também crescente em todos os domínios,
são mais e quase exclusivamente entre Portugal e o MPLA, entre Portugal e
família dona de Angola (clã Eduardo dos Santos). Mas isso
é, obviamente, irrelevante desde que ajude a atestar os bolsos dos políticos e
gestores portugueses e a manter a vaca comum com muito leite em todas as tetas.
Democracia angolana deve ser aquela coisa – crescente em todos os domínios - a
propósito da qual Ana Gomes, então membro da missão de observação eleitoral da
União Europeia nas segundas eleições multipartidárias, disse: “São legítimas as
dúvidas que foram levantadas por partidos políticos e organizações da sociedade
civil sobre a votação em Luanda”; “Posso apenas dizer que a desorganização foi
bem organizada”; “À última da hora, foram credenciados 500 observadores por
organizações que se sabe serem muito próximas do MPLA”; “Parece que alguém não
quis que as eleições fossem observadas por pessoas independentes”; “As eleições
em Luanda decorreram sem a presença de cadernos eleitorais nas assembleias de
voto e isso não pode ser apenas desorganização...”
Percebe-se que os
países ocidentais e europeus queiram voltar a ser, e são-no cada vez mais,
donos crescentes em todos os domínios africanos. Quanto ao resto, quanto aos
angolanos, enquanto a Sonangol, MPLA, José Eduardo dos Santos e os seus
comparsas espalhados pelo mundo deixarem, os homens erectos (que são cada vez
menos) continuarão a dizer que no ranking da corrupção divulgado pela Transparência
Internacional, Angola está na posição 158ª tal como… a Guiné-Bissau, que em
Angola, mais de 68% da população vive em pobreza extrema e a taxa estimada de
analfabetismo é de 58%, que em Angola, a dependência sócio-económica a favores,
privilégios e bens é o método utilizado pelo MPLA para amordaçar os angolanos, que
o silêncio de muitos, ou omissão, deve-se à coação e às ameaças do partido que
está no poder desde 1975, que a corrupção política e económica é, hoje como
ontem, utilizada contra todos os que querem ser livres, que o acesso à boa
educação, aos condomínios, ao capital accionista dos bancos e das seguradoras,
aos grandes negócios, às licitações dos blocos petrolíferos, está limitado a um
grupo muito restrito de famílias ligadas ao regime no poder. Fica, contudo, a certeza
dada por José Eduardo dos Santos: Angola está a crescer em todos os domínios, sendo
o Campeonato do Mundo de Hóquei em Patins um pequeno exemplo. Crescimento que é
mensurável pelo que está à vista mas, igualmente, pelo que está nos
subterrâneos das negociatas, internas e externas.
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