quarta-feira, 14 de agosto de 2013

NO CHILE, OS LADOS OPOSTOS SE REENCONTRAM

 


Há um aspecto peculiar na eleição presidencial marcada para novembro entre a socialista Michelle Bachelet e a conservadora Evelyn Matthei: as duas se conhecem desde a infância, foram extremamente próximas e cada uma viveu um lado da tragédia que foi a ditadura de Augusto Pinochet. Por Eric Nepomuceno, de Buenos Aires
 
Eric Nepomuceno – Carta Maior
 
Buenos Aires - Nas eleições presidenciais chilenas de novembro deste ano haverá, pela primeira vez, duas mulheres candidatas. Uma é a socialista Michelle Bachelet, que presidiu o Chile entre 2006 e 2010 e se apresenta por uma aliança de centro-esquerda. A outra é Evelyn Matthei, que se apresenta pela aliança de direita do atual presidente, Sebastián Piñera. Ela não esconde de ninguém que, mais que uma candidata conservadora, é a candidata pinochetista. Há que se reconhecer uma certa ousadia nessa declaração: afinal, nem Piñera, que foi admirador de Pinochet, se define hoje como pinochetista.

Há um aspecto peculiar nesse confronto: as duas se conhecem desde a infância, foram extremamente próximas e cada uma viveu um lado da tragédia que foi a ditadura de Augusto Pinochet.

O pai de Michelle, Alberto Bachelet, foi brigadeiro da Força Aérea do Chile. O pai de Evelyn, Fernando Matthei, também.

O pai de Michelle Bachelet foi fiel a Salvador Allende. Depois do golpe de 11 de setembro de 1973 acabou preso e torturado. Morreu em março de 1974, depois de uma sessão de tortura.

O pai de Evelyn Matthei, depois do golpe de 11 de setembro de 1973, aliou-se a Pinochet. Em março daquele nefasto 1974 dirigia Academia de Guerra Aérea. Foi nos porões dessa Academia que morreu Alberto Bachelet. Acabou integrando uma das Juntas Militares encabeçadas por Pinochet ao longo da sua longa ditadura selvagem.

O brigadeiro Fernando Matthei diz que não participou do horror. A viúva do brigadeiro Alberto Bachelet diz acreditar nele. Michele Bachelet, que ao lado da mãe reconheceu o corpo do pai no dia 12 de março de 1974, não diz nada.

Em 1958, o capitão Fernando Matthei tinha 32 anos e três filhos: Fernando, de 6 anos, Evelyn, de 4, e Robert, de um. Era um dos 60 oficiais que viviam praticamente isolados da população civil da cidade de Antofagasta.

Naquele ano chegou à vila o também capitão Alberto Bachelet, que tinha 34 anos e dois filhos: Alberto, de 11, e Michelle, de 6. Os dois se tornaram amigos inseparáveis. As meninas também.

Alberto era bonachão e extrovertido, Fernando era mais calado e retraído. Os dois falavam de esporte, literatura e música clássica. Continuaram amigos pela vida afora. Em 1967, por exemplo, quando Matthei construiu uma casa em Santiago, Alberto Bachelet apareceu com três árvores, que plantaram juntos.

As árvores e a casa continuam lá. É onde hoje mora Evelyn Matthei.

Na juventude, Michelle e Evelyn tomaram rumos diferentes. A filha de Matthei estudava numa escola alemã, privada, graças a uma bolsa. A de Bachelet, numa escola pública.

Nas eleições de 1970, os dois amigos também tomaram rumos diferentes. Bachelet votou em Salvador Allende. Matthei, no conservador ex-presidente Jorge Alessandri.

Apesar da divergência, a amizade se manteve intocada. Em 1971 Matthei foi mandado para a Inglaterra, e Bachelet foi trabalhar no governo.

No dia 11 de setembro de 1973 Matthei continuava em Londres. Não participou do golpe de Estado encabeçado por Augusto Pinochet. Bachelet trabalhava no Ministério da Defesa, em Santiago. Por se negar a apoiar o golpe, foi preso naquela mesma manhã. No começo de março de 1974 foi levado para os calabouços da Academia de Guerra Aérea. Na manhã do dia 12, aos 51 anos, sofreu uma parada cardíaca depois de uma sessão de tortura.

Seu amigo da vida toda, o brigadeiro Fernando Matthei, era o diretor da Academia. Na verdade, seis meses depois do golpe e da carnificina desatada no país por Pinochet a Academia tinha perdido suas funções de centro educativo e de treinamento militar, e se transformado num campo de prisioneiros. Lá estavam militares que se negaram a apoiar Pinochet.

O brigadeiro Fernando Matthei já não tinha controle de nada. Quase não aparecia por lá. Sabia que Bachelet estava nos porões. Não foi visitá-lo nunca, ‘mais por prudência que por falta de coragem’, disse anos depois.

Nos dias seguintes à morte de Bachelet, sua viúva, Angela Jeria, foi presa com a filha Michele. Ficaram um ano no campo de concentração Villa Grimaldi. De lá foram para o exílio. Só voltaram ao Chile em 1979, com o aval de Matthei, que naquela altura era membro da Junta Militar.

Nessa volta, Michele concluiu seu curso de medicina. Começou, em meados dos anos 80, a militar clandestinamente no Partido Socialista. Sua amiga Evelyn tinha terminado o curso de engenharia, e trabalhava com um exitoso empresário que ganhava rios de dinheiro graças às suas boas ligações com a ditadura, um jovem chamado Sebastián Piñera.

As duas já não se viam nem se falavam. Só tornaram a se encontrar na campanha eleitoral de 1990, quando Evelyn Matthei se elegeu deputada pelo partido Renovação Nacional, de direita.

O resto da história, todo mundo sabe. Sempre discreta, Michelle Bachelet foi nomeada ministra de Saúde, depois de Defesa, e acabou se elegendo presidente da República em 2006.

Quando as duas se reencontraram em 1990, conta Evelyn Matthei, falaram de direitos humanos.

Deve ter sido uma estranha conversa entre a filha de um membro de uma das Juntas Militares de Pinochet e a filha de um militar morto na tortura por ter-se negado a apoiar a ditadura de Pinochet.

Agora, tornam a participar da vida chilena. Uma será eleita presidente. A outra ficará no caminho.
 

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