Robert Fisk
escreve: Ocidente ensina muçulmanos a desprezar democracia; intelectuais e
ativistas que apoiaram militares não escaparão da vergonha moral
Robert Fisk, The Independent -
Outras Palavras - Tradução Cauê Seignemartin Ameni
O cristal egípcio
rompeu-se. A “unidade” do Egito – aquela cola patriótica e essencial que
manteve o país unido desde a derrubada da monarquia, em 1952 e o governo de
Nasser – derreteu em meio aos massacres, tiroteios e fúria, ontem no ataque
brutal à Irmandade Muçulmana. Uma centena de mortos – 200, 300 “mártires” [o
número de vítimas continua subindo: 638, na quinta-feira à noite, segundo o New
York Times] - não faz diferença o resultado: para milhões de egípcios, o
caminho da democracia tem sido dilacerado entre balas e brutalidade. Os
muçulmanos que buscam um Estado baseado em sua religião poderão confiar nas
urnas novamente?
Em 1992, na
Argélia; no Cairo em 2013 – e quem sabe o que acontecerá na Tunísia nas
próximas semanas? – os muçulmanos que conquistaram o poder, de forma justa e
democrática através do voto, foram em seguida derrubados do poder. E quem pode
esquecer o bloqueio brutal sobre Gaza quando os palestinos votaram – mais uma
vez democraticamente – para o Hamas? Não importa quantos erros a Irmandade
Muçulmana tenha cometido no Egito – nem quão promiscuas ou estúpidas fossem
suas leis – o presidente democraticamente eleito Mohamed Morsi foi derrubado
pelo Exército. Foi um golpe de Estado, e John McCain estava certo ao usar essa
palavra.
A Irmandade, é
claro, deveria há muito tempo ter reprimido seu amor próprio e tentando
manter-se dentro da casca de pseudo-democracia permitida pelo Exército no
Egito. Não porque fosse justo ou aceitável, mas para não ser obrigada a
retornar à clandestinidade, prisões à meia-noite, torturas e martírio. Este tem
sido o papel histórico da Irmandade – com períodos de colaboração vergonhosa
com ocupações britânicas e ditaduras militares no Egito. O retorno à escuridão
sugere dois resultados: que a Irmandade será extinta em meio à violência; ou
vai ter sucesso, em algum momento distante, na criação de uma autocracia
islâmica.
Os sábios da mídia
fizeram seu trabalho venenoso antes de o primeiro cadáver ser sepultado. “O
Egito pode evitar uma guerra-civil”?, perguntavam. Será que os “terroristas” da
Irmandade Muçulmana pode ser dizimada pelo exército? E aqueles que se manifestavam antes
da queda de Morsi? Tony Blair foi apenas um dos que falou sobre a importância
de evitar o iminente “caos”, ao conceder o seu apoio ao general Abdul-Fattah
al-Sisi. Cada incidente violento no Sinai, cada arma empunhada pelas mãos da
Irmandade Muçulmana vai ser usada para convencer o mundo de que a organização –
que na verdade é um movimento islâmico muito mal armado, e muito bem organizado
– era o braço direito da al-Qaeda.
A história pode
enxergar de outro modo. Será certamente difícil explicar como milhares – talvez
milhões – de liberais egípcios bem-formados continuaram a dar suporte
incondicional ao general, que passou boa parte do tempo após a queda do ditador
Mubarak justificando os teste de virgindade do Exército entre as manifestantes do
sexo feminino na Praça Tahrir. Al-sisi estará sobre pressão nos próximos dias;
ele que sempre foi supostamente simpatizante da Irmandade, embora a origem
dessa ideia possa ser o fato de sua esposa sempre ter usado o véu para encobriu
o corpo todo, deixando apenas os olhos aparentes. Muitos intelectuais da classe
média que deram seu apoio ao exercito, terão que espremer suas consciências em
uma garrafa para acomodar o futuro.
Poderia Mohamed
el-Baradei, Prêmio Nobel e especialista nuclear, a mais famosa personalidade –
aos olhos ocidentais, não egípcios – no “governo interino — ter permanecido no
poder? Claro que não. Ele teve que ir, pois ele nunca desejou tal resultado,
quando apostou seu poder político e concordou em sustentar a escolha de ministros
feita pelo Exército, depois do golpe no mês passado. Mas o círculo de
escritores e artistas que insistem em afirmar o golpe de Estado como uma
continuidade da revolução de 2011, terá que usar – depois do banho de sangue e
da renúncia de el-Baradei – alguma linguística bem angustiada, para escapar da
culpa moral.
Preparem-se, é
claro, para as habituais perguntas-jargões. Será que isso significa o fim do
Islã político? No momento, certamente; a Irmandade Muçulmana não terá
disposição para tentar outras experiências na democracia – uma recusa que é o
perigo imediato no Egito. Pois, sem liberdade, há violência. Será que o Egito
se transformará em outra Síria? Improvável. O Egito não é um Estado sectário –
nunca foi, mesmo com 10% dos seus habitantes cristãos –, nem inerentemente
violento. Nunca experimentou a selvageria das revoltas argelinas contra os
franceses, ou as insurgências sírias, libanesas e palestinas contra os
britânicos e franceses. Mas muitos fantasmas estarão curvarão suas cabeças
envergonhados, hoje. Entre eles, Saad Zaghloul, o grande advogado
revolucionário do levante de 1919. E o general Muhammed Neguib, cujas
exigências revolucionarias de 1952 são tão similares às exigências dos que se
reuniram na praça Tahrir, em 2011.
Mas sim, algo
morreu hoje no Egito. Não a revolução, porque em todo o mundo árabe conserva-se
íntegra — embora ensanguentada — a noção de que os países pertencem aos povos,
não a seus governantes. A inocência morrem, é claro, tal como acontece após
cada revolução. O que expirou hoje foi a ideia de que o Egito era a mãe eterna
da nação árabe, o ideal nacionalista, a pureza da história segundo a qual o
Egito considerava todo o seu povo como seus filhos. Porque as vítimas da
Irmandade – assim como a polícia e os partidários do governo – são também
filhas do Egito. E ninguém disse isso. Eles haviam se tornado os “terroristas”,
o novo inimigo do povo. Esta é a nova herança do Egito.
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