Rui Peralta, Luanda
I - No dia 7 de Junho deste ano, a
residência do Embaixador britânico em Ancara, foi palco de um encontro com
oficiais superiores dos serviços de inteligência da NATO (representada pelos
USA, UK, França e Turquia), Arábia Saudita, Qatar e Jordânia (esta ultima
representada apenas pelo seu embaixador em Ancara). Os pontos em discussão
relacionavam-se com o avanço das forças governamentais sírias no terreno. Três
pontos devem ser realçados, nas conclusões deste encontro: 1) A moral das
forças rebeldes e formas de a elevar através da utilização da indústria
mediática ocidental e Árabe (ou seja vamos assistir a um desfilar
incomensurável de argumentos e factos fabricados pela máquina propagandística);
2) O reforço do suporte logístico e financeiro, sendo este ultima assumido pela
Arábia Saudita e pelo Qatar; 3) A necessidade de enquadrar os bandos da Al-Qaeda
na região (principalmente a Frente Al-Nusra) e formas de contornar a legislação
antiterrorista em vigor na maioria dos países da NATO, no sentido de conseguir
uma maior coordenação com a Al-Qaeda, no conflito sírio.
Quinze dias depois, a 22 de Junho, o
grupo formado pelos estados agressores, conhecido por Amigos da Síria, encontram-se
no Qatar. O presidente da França, François Hollande e o Secretário de Estado
John Kerry marcaram presença neste encontro. O grupo internacional de agressão
á Síria considerou a moral dos rebeldes, afectada pelas derrotas sucessivas no
terreno e a urgência do fornecimento de mais equipamento, armas e munições,
devendo o apoio ser canalizado para o Supremo Conselho Militar Sírio, o
organismo militar da Coligação Nacional Síria (CNS). Quanto á questão do
suporte financeiro, os estados membros dos Amigos da Síria decidiram reforçar
os meios de financiamento, aproveitando os recursos de fundações privadas,
baseadas nos Estados do Golfo.
Conforme podemos concluir, pela comparação
dos assuntos em discussão nos dois encontros, a reunião na residência do embaixador
britânico em Ancara marcou a agenda do encontro do Qatar: a propaganda, a
logística e financiamento e o enquadramento da Al-Qaeda nas acções militares. O
reforço financeiro, da responsabilidade da Arábia Saudita e do Qatar é
conseguido através da incorporação de capitais do sector privado, proveniente
das ditas cujas “fundações”. Quanto ao enquadramento da Al-Qaeda é conseguido
através da canalização do suporte logístico para o Supremo Conselho Militar
(SCM), que conta com representação da Al-Nusra (tornando-se assim mais
abrangente que o órgão politico, o CNS). O SCM torna-se, por sua vez, responsável
pela distribuição das armas e equipamentos pelas diversas forças no palco das
operações.
Enquanto isso o CNS apresentou o seu
novo líder, Ahmad al-Jarba, imposto pela Arábia Saudita. O novo líder do CNS
pertence á tribo al-Shammar, uma extensa tribo que se estende da Arábia Saudita
ao Iraque. Al-Jarba tem também relações de parentesco com a família real
saudita, através de uma das esposas do rei Abdullah. Com esta alteração nas
cúpulas do CNS reforça-se a componente de ligação e subordinação á Arábia
Saudita.
Após a nomeação de Al-Jarba, Ghassan
Hitto, o anterior responsável do CNS renunciou ao cargo (na realidade foi
demitido) e voltou para as suas negociatas privadas, nos USA, onde é
empresário, assumindo a sua nacionalidade preferida: a de norte-americano
(Ghassan Hitto tem dupla nacionalidade, síria e norte-americana). Hitto contava
com o apoio do Qatar e da Turquia, tendo sido um nome imposto pelos USA. O seu
mandato foi de curta duração (tinha assumido funções em Março deste ano) e não
resistiu às sucessivas derrotas militares que provocaram esta nova alteração de
forças no órgão político da oposição síria. Estas alterações no CNS significam
uma supremacia da influência saudita e um recuo do eixo Qatar-Turquia. Em
termos da composição partidária do CNS a Irmandade Muçulmana Síria, que era a
força preponderante no CNS, perdeu peso político na estrutura interna, em
função do novo eixo saudita, que privilegia outras organizações, surgidas
durante o conflito e que se inserem no perfil do novo eixo dominante.
É evidente que os
USA aprovam a supremacia saudita no interior do CNS, primeiro porque as
lideranças anteriores revelaram-se ineficazes, não conseguindo um compromisso
politico no terreno e perdendo influência para os novos grupos oposicionistas,
surgidos no desenrolar dos conflitos e segundo, pela completa descoordenação no
relacionamento com o braço militar. Foram muitas e públicas, as divergências
com o ELS, o Exercito Livre da Síria e o CNS nunca conseguiu o respeito dos
comandantes militares.
II - Mas também do lado governamental houve
remodelações. O partido BAAS substituiu toda a liderança (excepto Assad,
claro), que fora eleita em 2005. Deram lugar a uma nova geração de dirigentes,
muitos deles provenientes dos meios diplomáticos. O presidente do parlamento,
Jihad al-Laham e o primeiro-ministro, Wael al-Halqi, também foram substituídos.
Assad, numa entrevista a um órgão do
partido, explicou que os dirigentes foram removidos porque cometeram erros, no
exercício das suas funções. Falou Bashir al-Assad: “Quando um dirigente não corrige
os erros, tem de ser responsabilizado.” Pelos vistos Assad não cometeu erros,
pois não foi substituído, pelo menos no cargo de secretário-geral do BAAS (A
actual constituição síria separa a parra da uva, pelo que o presidente não
necessita de estar ligado a uma máquina partidária, ou ser secretário-geral de
uma organização politica).
Com
esta remodelação Assad esforça-se por transmitir uma mensagem á população que
se agita com a inflação, o agravamento dos problemas sociais e com o longo
termo da instabilidade politica e militar. Apesar de uma parte substancial dos sírios,
no actual conflito, se posicionarem do lado do governo (a atitude da oposição
armada, os massacres levados a cabo pelos bandos armados e o sentimento de que
o país está a ser vitima de uma agressão. Empurram a população para os braços
do governo) isto não impede que as suas reivindicações tenham sido colocadas de
lado. Por isso Assad faz passar esta mensagem, dizendo que o Partido BAAS e o
governo estão atentos aos problemas que afectam o país e a população mais
carenciada.
Mas há outra mensagem que Assad está a
fazer passar e essa não é para os sírios. A mensagem é simples: O presidente
sírio continua a exercer as suas funções, o partido BAAS continua no governo,
com uma dinâmica própria e a solução síria passa pelo diálogo politico com
Assad, o governo e o Partido BAAS. A conclusão da mensagem é simples: á medida
que o tempo passa, o diálogo torna-se inevitável, mesmo para as potências
agressoras e para os seus peões sírios no tabuleiro.
A relativa tranquilidade revelada por
Assad é essencialmente devida ao facto de o conflito ter ultrapassado as
fronteiras da Síria e estar em processo de incubação numa série de países
vizinhos, arrastando a região para um imenso turbilhão politico. Turquia, Gaza,
Líbano, Egipto e Iraque sofrem os impactos geopolíticos do conflito sírio. A
questão curda assume novos contornos, não apenas na Síria, mas também na
Turquia e no Iraque. A agitação social toma conta da Turquia e do Egipto e
mesmo nos Estados do Golfo, apesar da repressão, as ruas tornaram-se focos de
contestação. O Egipto mergulha na instabilidade e o Líbano vê-se engolido pela
guerra no país vizinho. Na Palestina, enquanto a Cisjordânia tenta evitar as
vagas provocadas pelo conflito sírio, a Faixa de Gaza é agitada por ventos e
tempestades provenientes da Síria, para além dos ventos que sopram do Egipto e
que são redemoinhos provocados pela tempestade síria e que recaem, também eles,
sobre a população de Gaza.
No Egipto, o golpe de estado militar
foi uma tentativa de reajustamento da geopolítica da região. Foi um efeito visível
dos “movimentos tectónicos” que afectam o Médio Oriente, a Eurásia e África. No
continente africano, estas “fricções das placas”, agravarão as ingerências em
toda a plataforma continental, aumentando a amplitude do leque da crise, que
ultrapassará as actuais regiões onde se encontra instalado, do Atlântico ao
Indico, na África Ocidental e Oriental, caminhando a passos largos para sul. Mas
enquanto no Médio Oriente e na Eurásia (ou seja na plataforma da Asia
Ocidental) estas dinâmicas têm nos respectivos estados actores fundamentais em
todo o processo, na plataforma africana a dinâmica desenvolve-se num processo
contrário. A posição da U.A. em suspender o Egipto é disso (mais) um exemplo.
Ao afastarem-se dos
núcleos processuais de tensões (mesmo daqueles que surgem a Norte da plataforma
continental e que constituem a articulação das dinâmicas com a plataforma da Ásia Ocidental), os estados africanos mergulham o continente nas dinâmicas
incontroláveis das transformações em curso, não como actores, mesmo que
secundários, no processo (como acontece na plataforma da Ásia Ocidental) mas
como meros figurantes, sem qualquer decisão soberana, ou de partilha, sobre os
acontecimentos.
III - A intenção da Rússia
em aproximar-se da Junta Militar egípcia, revelou-se um movimento surpreendente,
para os incautos. Esta intenção não diz respeito ao Egipto, mas á Síria e surge
em consequência da aceitação, por parte de Israel e dos USA, de uma força de
capacetes azuis russos nos Montes Golã, em substituição das forças austríacas,
que decidiram regressar ao seu país. As correntes transversais da política da
região foram bem apreendidas por Moscovo. O Kremlin não perdeu tempo e falou
com a junta militar egípcia, logo após o golpe.
Sergey Lavrov o
ministro das relações exterior da Federação Russa afirmou: “Queremos que seja
assegurada a estabilidade no Egipto e em toda a região (…) O Egipto é o país
chave na região. O desenvolvimento dos acontecimentos na região e no mundo
islâmico dependerão da situação no Egipto.” As palavras de Sergey Lavrov são “realpolitik”
na sua melhor expressão. Lavrov, com estas palavras, deu a conhecer aos novos
dirigentes no Egipto e aos estados da região (Arabia Saudita, Qatar, Turquia e
Israel, em particular), assim como à “comunidade internacional” no seu conjunto,
que a Rússia não se sente contrariada com o desenvolvimento da situação no
Egipto, nem com as suas repercussões para a estabilidade regional.
Desta forma Lavrov
baralhou as cartas, partiu o baralho e distribuiu o jogo e quando saiu do
Cairo, dirigiu-se a Telavive, onde reuniu-se com Tzipi Livni, a encantadora
ministra da Justiça de Israel. No final da reunião a encantadora ministra
afirmou que Israel não se irá opor aos capacetes azuis russos nos Montes Golã,
desde que detenha a transferência dos misseis S-300 para a Síria. Questionado,
Lavrov, confirmou o assentimento israelita, não mencionou os S-300, mas
reafirmou as intenções do Kremlin em enviar mil e cem soldados, sob a égide da
ONU, para os Montes Golã, em substituição dos trezentos e oitentas soldados austríacos
da Força de Observação e Desconexão da ONU nos Montes Golã. Mil e cem soldados,
como Putin afirmou no passado mês, em Moscovo, o que surpreendeu os
negociadores da ONU e os comandantes da Missão, por serem quase o quadruplo das
forças austríacas anteriores, o que provoca alterações no comando da Força.
Estamos, assim, perante um
desenvolvimento sincronizado de amplos acontecimentos, que revelam um novo
modelo de alinhamentos e realinhamentos regionais, em torno da questão Síria e
que envolvem Israel, Rússia e USA, como protagonistas, subordinando a um papel
secundário a Turquia e o Qatar (sendo a Turquia transformada em ponto logístico
e o Qatar em fonte de financiamento), aumentando a amplitude do leque até ao
Egipto, que adquire agora um papel-chave no teatro das operações.
Ao longe Teerão acompanha as
movimentações, permanecendo como actor de reserva, embora principal, mas
discreto. Também ali existiram alterações, com a vitória dos “moderados”.
IV - Após a reunião dos Amigos da Síria, a
22 de Junho no Qatar, John Kerry, o Secretário de Estado, foi de visita, no dia
25 do mesmo mês, á Arábia Saudita, onde iniciou um périplo regional, com o
objectivo de discutir a questão síria. O golpe militar no Egipto já estava
avançado, nesses dias finais de Junho, embora decorresse em “camara lenta.” As
conversações de Kerry com o rei Abdulah, da Arábia Saudita, abordaram o Egipto
e a 2 de Julho a Arábia Saudita foi o primeiro país a felicitar as novas
autoridades egípcias e a queda do governo da Irmandade Muçulmana.
Poucos dias depois foi anunciado um
pacote de ajuda ao Egipto, de 8 mil milhões de USD, pela Arábia Saudita e pelos
Emiratos Árabes Unidos., enquanto os USA anunciavam que iam proceder á entrega
dos F-16 aos militares egípcios, deixando confusos os que acreditaram na pose
de Obama, quando afirmou, um dia antes, que os USA iriam suspender a ajuda
militar ao Egipto. O senador republicano McCain (um grande amigo da IM, no
Egipto e na Síria) entrou em desespero, quando viu que afinal Obama não cumpriu
com a sua palavra e transformou-se momentaneamente num esquerdista a falar
contra a “ingerência dos USA” e relembrando as lições apreendidas pelos USA,
quando noutros tempos apoiaram os golpes militares que instalaram as “ditaduras
militares na América Latina” o que em alguns meios conservadores dos
republicanos deve ter levantado suspeitas sobre se o velho senador McCain não
será um espião cubano, infiltrado no Senado e nas fileiras republicanas.
Também o Presidente Sírio foi um dos
primeiros (depois da Arábia Saudita e dos Emiratos Árabes Unidos) a saudar a
Junta militar egípcia. E fê-lo com um sorriso nos lábios…
V - Por fim, no imenso role de surpresas e
mudanças de atitude que marcaram os meses de Junho e Julho, em torno do conflito
sírio e das suas repercussões na região, a mensagem do Ramadão, do Rei Saudita
e do Príncipe Herdeiro. Reza assim: “O Reino da Arábia Saudita não permitirá
que a religião seja explorada por extremistas, que apenas trabalham em prol dos
seus interesses e que danam a reputação do Islão (…). O Reino da Arábia Saudita
continuará, com a ajuda de Deus, sendo a defensora do Islão (…) manteremos a
nossa atitude centrista e moderada.”
São agulhas para a IM, no Egipto, na Síria
e no Sudão do Norte e para o Qatar e a Turquia, ao mesmo tempo que estendem um
tapete a Assad, que considerou a mensagem saudita de “agradável”, afirmando
ainda que “partilha da perspectiva saudita”. A Síria vê com agrado o novo
alinhamento de posições entre russos e norte-americanos, assim como uma
eventual alteração nas posições sauditas e israelitas. As consequências da
regionalização do conflito são potencialmente criadoras de um ambiente de
negociações que poderão conduzir a uma solução politica. Os sírios apostam,
também, no novo protagonismo do Egipto, situação eventualmente causadora de
agitações “pós-primaveris” no Norte de Africa, por um lado e causadora de
fricções nos estados do Golfo, que serão obviamente transpostas para o interior
da oposição a Assad, aliviando a situação militar síria.
Subalternizada, mas como reserva para
um eventual insucesso, para além de responsável pelos trabalhos sujos (o que
condiz com o baixo nível intelectual das novas elites europeias), fica a U.E.,
habilmente secundarizada por Moscovo, que aproveitou a obsessão da
administração Obama em chegar a um acordo com o Kremlin, sobre a questão síria
e as alterações geopolíticas na região. Perifericamente subalternizada, ou
melhor, submissa e recolonizada, mantem-se a plataforma continental africana a
sul do Sahara, balão de ensaio para uma velha, mas sempre renovada, geografia
política, criadora e recriadora de novas cartografias.
É o custo do deslumbramento…e da
desertificação do espírito Visto daqui (em pleno cacimbo) Damasco, lá longe,
resplandece.
Fontes
Bhadrakumar, M. K. http://www.atimes.com/atimes/Middle_East/MID-02-120713.html
Jerusalem Post,
July, 14, 2013
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