Fernanda Câncio –
Diário de Notícias, opinião
Passos não gosta da
Constituição. Tem todo o direito a não gostar e a tentar convencer-nos de que
tem razão. Só há um pequeno problema - a Constituição prevê que só há revisões
com dois terços do Parlamento, e ele não os tem. A Constituição prevê também
que enquanto não se muda a que existe, cumpre-se a que está em vigor. É para
isso que temos um Tribunal Constitucional: para cotejar a legislação produzida
com a Lei Fundamental. Parece que é aquilo a que se dá o nome de Estado de
direito, e não consta que Passos tivesse proposto aos eleitores acabar com ele.
Lembramo-nos,
claro, que em 2010 apresentou uma proposta de revisão constitucional - mas logo
a meteu na gaveta por o ter feito deslizar nas sondagens, renegando-a
terminantemente na campanha eleitoral (reveja-se por exemplo o frente a frente
com o então primeiro-ministro). Não a sufragou. Mas mal se apanhou no Governo,
empenhou-se em pô-la em prática. É à luz desse objetivo que se pode compreender
o diploma que o TC ontem chumbou - e que o Governo estava careca de saber
inconstitucional. A tal ponto, de resto, que o destacou do Orçamento do Estado
para 2014 e o aprovou a meio deste ano, para dar tempo ao Presidente de o
enviar ao TC e de ser conhecido o chumbo ainda antes de ser conhecida a proposta
de Orçamento - mais os famosos cortes da "reforma do Estado" que
deveriam ter sido comunicados à troika em fevereiro/março, foram sucessivamente
adiados e cuja revelação está agora prevista para depois das autárquicas (e
Passos está-se a lixar para as eleições, que faria se não).
Aliás, quem tivesse
dúvidas de que Passos contava com esta decisão do TC deixou de as ter no seu
discurso do Pontal, quando falou do "risco constitucional",
anunciando que o chumbo deste diploma corresponderia a "andar para trás".
Como quando no OE 2013 insistiu no corte dos subsídios que o TC chumbara (mas
permitindo--os, recorde-se), a estratégia calculada é fazer surtidas no
território do "inimigo", obrigando-o a reagir para depois denunciar o
ataque e dar largas à demonização/vitimização. Uma técnica que até as crianças
dominam. Bem pode, pois, o Governo torcer as mãos, alegar que os acórdãos do
malvado TC custam xis milhões (cartilha que os media repetem estultamente), e
Passos modular a bela voz em certificações de abnegação: foi ele quem declarou
guerra - e à Constituição, não aos juízes, que se limitam a tentar fazê-la
respeitar. Uma guerra desleal e ínvia, que se furtou ao campo aberto do
sufrágio para se disfarçar de necessidade, e que visa apresentar o Estado de
direito construído pela democracia como obstáculo no caminho da salvação. Está
à vista de todos - mas nesta não podemos pedir ajuda à ONU, e os prestimosos
observadores internacionais só cá vêm para melhor nos gasear.
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