Balneário Público
À sombra, no
exterior, estavam 35 graus centígrados. Temperatura ambiente. Verão. Calor.
Lisboa. Portugal. Em alguns dias, bastantes, os 38 graus são a medida certa
deste verão. E até mais, a rondar os 40 graus. Imaginem uma paragem de
autocarros onde uma dezena de passageiros aguarda o transporte. Uma árvore
oferece sombra (mal) a essas pessoas. A quinze metros ou pouco mais um
autocarro está imobilizado, a fazer tempo para cumprir horário. Parado ao sol.
O motorista refugiou-se no outro lado do passeio, na sombra onde moram os 38
graus. Minutos passados entra, senta-se nos comandos e arranca, a ferver. Em
brasa. Anda aqueles quinze metros até à paragem e abre a porta para que os
passageiros entrem. Abriu a porta e os 38 graus até ficaram abanados com os
mais de 45 que vieram lá de dentro. Os passageiros fizeram caretas áquela
lufada de ar tão quente. Entraram. “E o ar condicionado?” Perguntaram ao
motorista. “Está avariado.” Respondeu ele, iniciando a marcha rumo ao destino.
Talvez o inferno, já que o transporte era mais que um forno. Mulheres diziam
com voz esganiçada que naquela carreira era sempre a “mesma história e o ar
condicionado estava sempre avariado”. “Olhe que não”, disse o velhote do lugar
ao lado. Ainda um dia destes passei pelo mesmo numa outra carreira.” O nariz da
mulher de negro arrebitou. “Pois é. Isso só acontece ou acontece mais é nas
carreiras dos bairros sociais. Para as avenidas finas há sempre ar
condicionado.” Esclareceu ela com toda a certeza do mundo. Do autocarro ninguém
saía e cada vez entravam mais pessoas. Mais calor de corpos a juntar ao forno
que o autocarro já era por ter estado minutos demais parado ao sol. As janelas
infimas, inadequadas para climas do sul da Europa, não davam sequer para entrar
um pouco de ar “fresco” – a 38 graus mas melhor que os muito mais de 40 que
estava dentro do autocarro. Os berros de protesto pelo calor cresciam. “Os
filhos da puta querem economizar combustivel e dizem que o ar condicionado está
avariado.” Ouviu-se. “Pois é. Nas oficinas até há ordens para desligar os fios
para os motoristas não terem tentações.” Ouviu-se. “São uns grandes cabrões”.
Quem? Os motoristas? Os das oficinas da Carris? Não. Os do governo. “Os
gistores” (gestores), como foi dito. “Bandidos. Chulos.” Mistura explosiva de
revolta contida, de desconforto, com muito suor e odores intensos e
desagradáveis misturados por entre palavras e impropérios que visavam os “de lá
de cima”. Nem Cavaco escapou. Nem Passos Coelho escapou. Nem as mães, nem os
pais. Mas “os filhos da puta dos gistores” é que foram os grandes bombos da
festa. Que “até lhes metia o ar condicionado pelo cu acima, se os sacasse lá no
bairro.” Disse o que chamavam de Nelocas. Desdentado mas determinado. Melhor
foi o momento do humor. A mulher de preto, cheia de certezas avançou com a
sabedoria na ponta da língua e afirmou que “todos aqueles cabrões e vacarronas
lá de cima, gistores e ministros e os que roubam à farta as nossas côdeas, são
nossos amigos.” Espanto na cara do Nelocas e de todos. “Oh mulher”, ia a dizer
uma morenaça avantajada toda banhada em suor, “vai lavar essa boca…” A de preto
interrompeu: “São nossos amigos. Pois é, pois é. Porque pagamos o transporte e
temos sauna de borla”, e ria, e ria. E começaram todos a rir e a dizer que
haviam de dar de castigo aquela sauna aos tais “lá de cima” quando viesse “a
próxima revolução do 25 de abril…” Mas vai acontecer uma nova revolução do 25
de abril? Como é que aquela gente sabe estas coisas? Serão miragens por causa
do intenso calor dentro do inferno dos autocarros da Carris? Pode ser. Quase
tudo passa com uma chuveirada no balneário público. Limpinho.
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