Em um mundo
civilizado, espera-se que a ciência seja usada para fazer avançar a sociedade,
não para criar um ranking de "raças". Por José Antonio Lima
José Antonio Lima
– Carta Capital, opinião
Tem causado
polêmica nas redes sociais o artigo publicado por Helio Schwartsman na Folha de
S.Paulo no sábado 10 e intitulado Demografia no Nobel. Não é para menos. Usando
uma forma de preconceito que recebe guarida no Brasil sob a capa do que se
configurou chamar de “politicamente incorreto”, Schwartsman deixa nas
entrelinhas que os judeus são superiores em termos de inteligência e os
muçulmanos, inferiores.
Schwarstman inicia
sua argumentação citando um tweet do biólogo evolucionista e ateu ativista
Richard Dawkins. “Todos os muçulmanos do mundo têm menos prêmios Nobel que o
Trinity College, Cambridge. Eles fizeram grandes coisas na Idade Média, no
entanto”. Para quem conhece Dawkins, não é uma surpresa. O britânico, que
geralmente gasta seu tempo tentando provar a burrice dos religiosos, tem se
destacado pelos ataques islamofóbicos nos últimos anos – em março, Dawkins
afirmou que o “islã é a maior força do mal” hoje no mundo.
Schwarstman não
cita o fato de Dawkins ser um conhecido preconceituoso, mas lamenta que o
cientista não avançou na “polêmica”. Este papel cabe, então, ao próprio
Schwartsman, que faz uma comparação entre a quantidade de prêmios Nobel
recebidos por muçulmanos (1,2% do total) e judeus (22%).
Sem entrar no
mérito de que o Nobel é um prêmio político e dificilmente poderia ser a última
palavra numa comparação sobre o conceito de inteligência, a tentativa de comparação
feita por Schwartsman é tosca em diversas esferas. Ser muçulmano é ser um
seguidor da religião cujo profeta é Maomé e o livro sagrado, o Corão. Não há
qualquer componente étnico em ser muçulmano. Com relação aos judeus, a situação
é diferente. A Encyclopaedia Judaica, fonte de Schwartsman, classifica como
judeu quem é filho de judeus ou tem ao menos três avós judeus. Em tese, o fato
de qualquer um poder ser muçulmano e de nem todos poderem ser judeus deveria
significar mais prêmios Nobel para muçulmanos. Tal suposição ignora, no
entanto, o contexto em que os judeus, como religião e povo, e os muçulmanos,
como religião, existem.
Na Idade Média
(citada por Dawkins), o islã viveu um período conhecido como Era de Ouro (do
século 8 ao 13). A ascensão do Califado Abássida trouxe prosperidade e
liberdade para a busca de conhecimento, tornando o mundo árabe-muçulmano o
centro intelectual do mundo, onde se desenvolveram ciências como a matemática,
a medicina, a física e a filosofia. Nos dias atuais (em que os prêmios Nobel
são distribuídos) a situação é outra. O mundo muçulmano é uma das regiões mais
atrasadas da Terra, graças à história de colonização e às persistentes divisões
políticas, religiosas, sectárias e étnicas de seus povos. O obscurantismo,
religioso inclusive, domina a região, e a busca por conhecimento é cerceada
pelos regimes autoritários da região.
Os judeus, por
outro lado, floresceram após o Holocausto na chamada “civilização
judaico-cristã ocidental” que se encontra em seu auge intelectual. Contribui
para esse auge o fato de a América do Norte, a Europa e Israel (não os
Territórios Palestinos Ocupados) serem democracias vibrantes, nas quais a busca
por conhecimento é incentivada e privilegiada.
Em seu texto,
Schwartsman não cita tais aspectos para tentar explicar a proeminência dos
judeus entre os recipientes do prêmio Nobel. O colunista cita, no entanto, a
pesquisa Natural
History of Ashkenazi Intelligence (em inglês), em que os cientistas Henry
Harpending e Gregory Cochran tentam explicar geneticamente a inteligência dos
judeus, em particular dos judeus asquenazes, cuja origem está na Europa
Central. Segundo Schwartsman, outras pesquisas do tipo não são realizadas no
meio acadêmico porque há um tabu provocado pela “esquerda” que, segundo o
colunista, não estaria satisfeita com direitos iguais, mas desejaria promover a
ideia de uma igualdade biológica.
De fato, há
polêmica a respeito do tema, mas ela não interdita o debate como faz crer
Schwartsman e nem existe por conta dos motivos expostos pelo colunista da Folha.
Na medicina, por
exemplo, há inúmeras pesquisas tentando explicar porque a incidência de câncer
de próstata é maior entre os negros ou porque os japoneses são mais propensos a
desenvolver câncer de estômago. Os pesquisadores envolvidos nelas têm plena liberdade
para realizar seus trabalhos, até porque podem ajudar a salvar vidas.
Tentativas de
explicar pela genética os traços da personalidade humana, especialmente os
“qualitativos”, como a inteligência citada por Schwartsman, de fato não
desfrutam da mesma liberdade. Por dois motivos, simples de entender. Em
primeiro lugar, porque estudos deste tipo serviram para justificar algumas das
maiores atrocidades já cometidas pela humanidade, como a escravidão e o
Holocausto. Nesses momentos, não faltaram cientistas prontos para corroborar as
teses de que os negros e os judeus eram inferiores e poderiam, então, ser
escravizados e exterminados, respectivamente.
Em segundo lugar,
porque não é preciso ser geneticista para entender que os fatores genéticos não
são determinantes, mas um componente do sucesso ou fracasso de uma pessoa.
Se houvesse a
possibilidade de clonar Pelé, por exemplo, quem garantiria que o Pelé 2.0, com
a mesma carga genética de Edson Arantes do Nascimento, seria tricampeão mundial
de futebol? É um tanto óbvio que a família de Pelé, bem como seus amigos de
infância, seus colegas jogadores e treinadores no Santos e na seleção
brasileira influenciaram o atleta que ele se tornou, bem como as experiências
que viveu. Com doenças, funciona da mesma forma. É conhecido o fato de os
japoneses terem uma predisposição genética a desenvolver câncer gástrico. O
fato de os imigrantes japoneses nos Estados Unidos terem menos tumores
gástricos que os japoneses do Japão e mais que a população norte-americana,
indica que fatores externos, como a dieta, influenciam o surgimento da doença.
De qualquer forma,
espera-se de um mundo civilizado que a ciência seja usada para resolver
problemas, e não para criar rankings de quais “raças” são melhores ou mais
inteligentes. No caso particular dos judeus, uma questão biológica
particularmente útil seriam as pesquisas
genéticas (ambas em inglês) feitas por Michael Hammer na
Universidade do Arizona, dos EUA, (no ano 2000) e por Almut Nebel na
Universidade Hebraica, de Israel (em 2001), mostrando que os judeus e árabes,
em especial os palestinos, são, em termos genéticos, essencialmente a mesma
população. Quem sabe, ao ter isso em mente, ficaria mais fácil para os líderes
israelenses colocarem fim à atroz ocupação imposta aos palestinos.
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