José Manuel Pureza – Diário de Notícias, opinião
Tivesse a coisa
acontecido no Irão, na Coreia do Norte ou noutro qualquer dos países incluídos
por Bush no Eixo do Mal e não teria havido estadista ou candidato a tal, do
lado de cá do mundo, que não tivesse saído a público com indignação fervorosa
em defesa das liberdades, dos direitos humanos e do Estado de direito. Mas não.
Foi nos Estados Unidos da América e os alvos foram dois whistleblowers - a tradução
"denunciantes" peca talvez por permitir leituras morais depreciativas
- que trouxeram a público justamente atentados graves contra as liberdades
perpetrados pelas autoridades civis e militares de Washington. E o indignado
discurso de defesa dos direitos cedeu num instante à retórica da defesa do
interesse nacional americano e da luta contra o terrorismo. (Onde é que nós já
ouvimos isto?) Os casos de Bradley Manning - que denunciou publicamente
práticas de tortura na guerra contra o Iraque ou as hipocrisias diplomáticas
que dominam a política internacional - e de Edward Snowden - que revelou a
vigilância ilegal a que o Governo americano sujeita a privacidade de qualquer
cidadão naquele país - mostram como o interesse nacional e os direitos humanos
são tidos como bons ou maus consoante a nacionalidade dos seus titulares. O
certo é que Manning foi privado de direitos básicos que lhe assistiam, a
começar pelo de ser julgado com celeridade. Foi sujeito a um tratamento cruel e
desumano, primeiro no Koweit e depois na penitenciária de Quantico onde ficou
em regime de isolamento total durante 11 meses numa cela exígua, obrigado a
dormir nu e a estar deitado no chão durante horas seguidas. Tudo porque Manning
rompeu o segredo de Estado e revelou documentos classificados contendo provas
de tortura e de violação do direito internacional pelas tropas norte-americanas
no Iraque e telegramas diplomáticos que exibem a corrupção, a pressão ilegítima
ou a hipocrisia que povoam as relações internacionais. E não, não deu esse
material à Al-Qaeda, mas sim ao Washington Post e ao The New York Times. A
hesitação destes deu espaço para o surgimento do WikiLeaks.Edward Snowden, por
seu lado, teve de pedir asilo político à Rússia porque pôs à luz do dia o
gigantesco programa de escutas ilegais da National Security Agency, que violam
a privacidade de quem quer que seja na expectativa de que algures venha a ser
detetado um terrorista.A vigilância do Grande Irmão é hoje uma indústria em
alta. O orçamento norte-americano para espionagem é da ordem dos 80 mil milhões
de dólares, dos quais 56 mil são para contratos com empresas privadas. Cerca de
1300 estruturas públicas e 1950 entidades privadas trabalham nos Estados Unidos
em programas de contraterrorismo, espionagem e segurança nacional, originando a
publicação de 50 mil relatórios por ano. E sabe-se que todo o poder gera mais
poder para si próprio: neste caso, difundindo um clima de medo de uma ameaça
nunca identificada e apostando no segredo como dogma. Mas a pergunta é: 50 mil
relatórios anuais de vigilância interna ilegal evitaram as bombas na maratona
de Boston? A violação do primado da liberdade serve para alguma outra coisa que
não a da fragilização da liberdade?A informação aberta é uma dor de cabeça para
os poderes que violam a dignidade e a lei. Por isso, postos diante da revelação
dos seus desmandos, tratam de inverter papéis e condenar o mensageiro por ser
portador da mensagem que eles não querem ver conhecida. A condenação de Manning
a 136 anos de prisão e a perseguição internacional a Snowden mostram que o
fantasma de Joseph McCarthy tem hoje muito mais força na Casa Branca do que o
espírito de Martin Luther King. E isso é uma péssima notícia.
Sem comentários:
Enviar um comentário