sexta-feira, 13 de setembro de 2013

A NOVA ALIANÇA DOS VELHOS INTERESSES

 

Rui Peralta, Luanda
 
I - A Nova Aliança para a Segurança Alimentar e Nutrição é uma associação entre o G8, governos africanos (Tanzânia, Gana, Etiópia, Moçambique, Costa do Marfim e Burkina Faso aos quais, em Junho deste ano, juntaram-se o Malawi, a Nigéria e o Benim) e empresas privadas (entre as quais se incluem a Monsanto, Syngenta, Cargill e Yara) que tem como objectivo combater a pobreza, apostando na modernização da agricultura. A meta é tirar da pobreza 50 milhões de pessoas, nos próximos 10 anos e lançar a agricultura africana nos braços do sector agroindustrial
 
Lançada em 2012 por Obama, a Nova Aliança, tenciona cumprir a sua finalidade apelando às cobaias africanas que definam as “politicas para melhorar as oportunidades de investimento” e “catalisar o investimento do sector privado na agricultura africana”. As políticas em questão concernem às sementes, pesticidas, fertilizantes, possessão das terras e dos recursos de água e a qualquer outro domínio em que as prácticas locais, em caso de “não reformarem-se”, possam obstaculizar o investimento potencial da agroindústria.
 
O Marco de Cooperação de Moçambique, elaborado com parceiros do sector privado, a troco do seu compromisso de investimento, é um bom exemplo que clarifica algumas questões essenciais para a compreensão do papel da Nova Aliança. Prevê o Marco de Cooperação outorgar um papel aos pequenos agricultores, cuja produção será subcontratada pela agroindústria. O principal deste acordo radica nos mecanismos de regulação. O governo de Moçambique promete “incentivos para o sector privado, especialmente para desenvolver e implementar os consumos domésticos e as políticas referentes às sementes” o que significa, conforme o documento expressa, “deixar de distribuir sementes gratuitas e não melhoradas”. A este factor adiciona-se o compromisso do governo moçambicano de reformar os direitos sobre a terra, para facilitar os investimentos e promover o livre-comércio.         
 
Por aqui se depreende que o objectivo real, aquele que está por detrás dos véus das palavras, é o de abrir as terras cultiváveis do continente africano (que o Banco Mundial descreve como a “ultima fronteira”) a uma ofensiva sem precedentes das multinacionais do agronegócio. Este é um modelo que pode ser representado como uma cara nova do “ajuste estrutural” continuando as condições impostas aos países em desenvolvimento nas décadas de 80 e 90: privatização e liberalização do comércio, a troco do apoio do Banco Mundial e do FMI.
 
Esta continuidade não tem nada de surpreendente. A Nova Aliança encarna a visão dominante do investimento estrangeiro para o desenvolvimento de África. Está intelectualmente relacionada com a Aliança para uma Revolução Verde em África (AGRA) dirigida por Kofi Annan e que encabeça uma campanha de aumento de produtividade, baseada numa nova estrutura de investimento privado que transforma os pequenos agricultores em subcontratados. E tudo isto está relacionado com a plataforma “Crescimento África” estabelecida com o objectivo de preparar os países africanos para as novas estruturas de investimento.
 
Não há nada de novo nesta Nova Aliança a não ser a forma descarada como se impõem novas regras que favorecem e minimizam o risco do investimento das multinacionais do agronegócio. O grande êxito desta nova proposta é o de ter passado despercebida. No seu lançamento, no ano passado em Itália, os USA apresentaram o projecto como um passo lógico, após a subida abrupta dos preços dos alimentos em 2007-2008, prometendo milhares de milhões de USD disponíveis para ajuda. Os seus parceiros do G-8 preparam em silêncio as estruturas que permitiriam que as suas companhias estivessem presentes (Ângela Merkel estabeleceu uma Associação de Alimentos da Alemanha, que reuniu todas as companhias alemãs do sector e fomentando um grande cartel do sector alimentar germânico) e lançaram-se no grande projecto de recolonização.
 
Participação das empresas privadas africanas? Não (excluindo as sul-africanas e as do Botswana), até porque as que existem fora destes países são africanas de fachada, sendo o seu capital estrangeiro. As empresas públicas africanas foram afastadas do processo (mas em abono da verdade elas não passam de armazéns dos respectivos Ministérios da Agricultura dos governos africanos e servem apenas para manter empregos, ou seja subsidiar, através da conta de salários, alguns milhares de funcionários públicos, garantindo um fundo eleitoral).
 
E os agricultores africanos participaram? Mamadou Cissokho, presidente da Confederação dos Agricultores da África Ocidental, numa carta dirigida á União Africana e ao G-8, quando do lançamento da Nova Aliança, manifesta a preocupação dos agricultores africanos: “Peço que expliquem como podem garantir a segurança e a soberania alimentar de Africa por meio do investimento internacional e á margem dos agricultores e produtores africanos e dos marcos políticos nacionais”. Todos os documentos políticos elaborados pelas associações de agricultores da África Oriental, Ocidental e Central revelam enormes discrepâncias entre o que os agricultores do continente querem e necessitam e o que propõe a Nova Aliança.   
 
Os 33 milhões de famílias agricultoras do continente (80% do total africano) têm o controlo, sob a forma de base produtiva, das terras, das sementes e da água. O que os preocupa é a garantia de que nenhum acordo, feito nas suas costas, impeça a reutilização das sementes e que os donos dos rebanhos não fiquem constrangidos por sistemas de títulos de propriedade de terras que os impeçam de aceder às terras comunais de pasto. A lógica da agricultura africana é oposta às visões preponderantes no Norte. A rotação de cultivos, que os agricultores europeus não praticam, faz parte dos sistemas agrícolas africanos, que necessitam ser diversificados, para sobreviver às condições ambientais. Muitos destes agricultores não utilizam produtos químicos e muitas das suas funções de trabalho consistem em sistemas de ajuda mutua e de colaboração reciproca.
 
Os agricultores africanos não são ingénuos. Reconhecem a necessidade do investimento estrangeiro e da industrialização. Mas não compreendem por que razão é que estas vantagens só podem ser adquiridas pelo investimento estrangeiro e pelo agronegócio e não por estruturas de investimento que os envolvam, sem ser como subordinados subcontratados. Estão perfeitamente conscientes, ao contrário dos seus dirigentes, das dificuldades de coexistência entre o modelo africano de agricultura familiar e a agricultura industrial e reconhecem as debilidades do seu modelo. Por isso não querem coexistir, pois serão asfixiados e cessarão a sua actividade. Pretendem assumir o controlo das alterações do modelo e são o elemento mais indicado para o fazer, na textura africana, devido ao seu conhecimento acumulado. 
 
Não é por coincidência, ou má educação, que a Nova Aliança não tenha consultado os agricultores africanos. São interesses antagónicos, que se encontram em competição pelas mesmas reservas de terras e de água. Competem também pelo mesmo papel primordial na formulação dos planos agrícolas nacionais, embora a voz dos agricultores africanos caia, normalmente, em ouvidos surdos e ressoe em cabeças ocas. Mas se os governos nacionais ignoram os agricultores e os camponeses africanos, tratando-os com ar enfastiado, a Nova Aliança não reage da mesma forma e não subestima o seu competidor directo.
 
Está em jogo muito dinheiro. O G-8 ascendeu a um estatuto de elevada importância assumindo a direcção do desenvolvimento agrícola através do CFS, Comité Mundial para a Segurança Alimentar. O CFS é um Fórum onde os agricultores dos países em desenvolvimento podem negociar em pé de igualdade com os governos de todo o mundo, incluindo com os dos seus países de origem. Mas o CFS elaborou recentemente novas linhas directrizes sobre os direitos á terra, no âmbito das propostas das multinacionais da agroindústria. Ficam, desta maneira, as corporações do agronegócio com a vida facilitada, assumindo-se como marcos de desenvolvimento, cilindrando o papel dos pequenos agricultores africanos na soberania alimentar e permitindo ao G-8 possuir o discurso de legitimação da Nova Aliança, arbitrando as politicas de segurança alimentar.       
 
É evidente que o investimento estrangeiro tem um papel importante e fundamental no desenvolvimento agrícola em África. Mas para que o seu papel seja construtivo é necessário estabelecer regras especificas de investimento, normas transparentes e directrizes básicas. O panorama nacional a nível continental é, neste sentido, desolador. Nem regras adequadas, nem normas transparentes e muito menos directrizes básicas. É por isso que as terras africanas são a “última fronteira” para as grandes corporações globais.
 
Em caso algum as companhias deveriam participar nos processos políticos reguladores. Deveria ter sido estabelecido um plano geral, indicador das linhas mestras, a nível continental, sob a direcção da União Africana e que envolvesse directamente as Confederações de Agricultores e as Uniões Camponesas de todo o continente. Mas nada disto aconteceu. Pelo contrário, a Nova Aliança penetra fundo nas veias abertas do continente e as elites africanas aplaudem, sorridentes e deslumbradas a vinda dos recolonizadores.
 
II - A ofensiva contra África, não é apenas no sector determinante da agricultura e no controlo da soberania alimentar. A ofensiva é também lançada a nível militar. Desde que os USA, em 2008, criaram o AFRICOM - o comando unificado para as operações militares do Ocidente no continente africano - as guerras multiplicaram-se. Costa do Marfim, Líbia e Mali, são exemplos concretos deste cenário de guerra. Mas também a Somália e o Congo Democrático, conhecem a continuidade das suas guerras e novas amplitudes de conflito e a desestabilização atinge proporções de alta e média amplitude na Nigéria, no Quénia e em todo o Norte de África.
 
Estas agressões do Ocidente ao continente africano têm como pano de fundo a profunda crise cronica que se instalou nas economias ocidentais e a necessidade intrínseca do Ocidente em controlar as matérias-primas e em estabelecer novos fluxos logísticos (não só de matérias-primas e de recursos naturais, mas também de capitais) que permitam a redução dos custos de exploração. A crise instalada no Ocidente desde os anos 70 levou ao abandono das políticas macroeconómicas keynesianas e á adopção de políticas liberais, durante os anos 80, época em que se assistiu ao primeiro processo de renovação das elites após a II guerra Mundial.
 
O continente africano, nessas décadas, estava mergulhado numa profunda crise económica, política e social. As elites africanas, numa tentativa de sobrevivência, iniciam o seu processo de renovação (a estrutura incipiente da grande maioria dos mercados africanos no período pós-colonial impedia o funcionamento dos mecanismos de renovação das elites, sendo este realizado através de processos políticos consubstanciados em longos períodos de instabilidade politica e caracterizado por um sucedâneos de golpes de estado militares) e adoptam as políticas de liberalização. Estas políticas foram formuladas nos famosos Programas de Ajuste Estrutural que debilitaram ainda mais os sempre débeis Estados africanos do período pós-colonial e extinguiram os parcos serviços sociais existentes.            
 
As matérias-primas a baixos custos de aquisição tornam-se cada vez mais essenciais para as economias ocidentais e para as economias emergentes com altos índices de crescimento económico. No subsolo africano encontram-se, intactas, importantes reservas de petróleo, gás, metais ordinários, metais raros, uranio, etc.. Cerca de 40% das matérias-primas minerais mundiais encontram-se no subsolo africana, para alem das importantes reservas aquíferas. O continente africano adquire, uma vez mais na Historia uma importância fundamental nos mecanismos concorrenciais, não como actor, mas como figurante. As elites africanas são, agora, parceiros notáveis que comem á mesa dos seus sócios, ao pequeno-almoço, mas que almoçam e jantam na cozinha, continuando a dormir no estábulo (agora com palha e feno de melhor qualidade e pintado de fresco). 
 
A intervenção directa da NATO no continente africano irá incrementar-se nos próximos anos. A AFRICOM intensifica a sua implementação com um número impressionante de programas de cooperação militar, sob a forma de treino, formação técnica e exercícios conjuntos, envolvendo mais de 35 Estados africanos.
 
A Nova Aliança é apenas mais um projecto de complementaridade na política de recolonização lançada pelo ocidente no continente africano, uma estrutura visível de um imenso icebergue, no qual a AFRICOM é um componente fundamental da estrutura. Destroçar a soberania nacional, apropriar-se dos recursos naturais, implementar as forças militares no terreno e incorporar os cipaios, descentralizar o sector financeiro inserindo e colocando quadros fieis e leais aos seus interesses nas respectivas instituições, tomar posições chave nos aparelhos de Estado e asfixiar quaisquer medidas que representem um reforço da soberania popular, eliminando assim a eventualidade do surgimento de um bloco de “Estados canalhas” que constituam um foco de resistência aos interesses Ocidentais, são, já, o panorama geral do palco de operações em que foi constituído o continente africano.   
 
É o Renascimento. Não de África (essa terá de ser parida nas trincheiras firmes da resistência) mas do colono e do apartheid. De pele escura e com sócio branco. Com o China International Fund como pano de fundo (não vá o branco baixar o valor das comissões).
 
III - A militarização do continente é um facto. O curioso é que essa militarização assenta sob o discurso da abertura ao investimento e do comércio livre. Só que o Ocidente já nada tem a oferecer a África. A crise crónica impede as chorudas ofertas de outrora. Isto foi visível na última visita de Obama ao continente. Quando o presidente chinês visitou o continente, veio com os bolsos recheados e as mãos cheias. Obama apresentou-se com os bolsos rotos e de mãos a abanar.
 
O volume de comércio entre África e a China, nos últimos dez anos multiplicou-se por 20. A ajuda chinesa reflecte-se no desenvolvimento das infraestruturas, o que leva os países africanos que estabelecem relações com a China, a defenderem-se melhor das imposições do FMI e do Banco Mundial e os projectos de infraestruturas dos Chineses em África têm provocado alterações importantes com reflexos positivos nas economias africanas. Mas os processos de transformação do continente não podem ficar por aqui. As políticas de desenvolvimento têm de ter reflexos profundos na sociedade e reduzir o fosso entre ricos e pobres. Não se trata apenas de uma questão de criar classe média, seja isso o que for, mas sim de ampliar a cidadania.
 
O continente africano necessita de um índice que estabeleça a correlação entre o Produto Interno Bruto e o Índice de Desenvolvimento Humano. Só desta forma poderemos analisar efectivamente as nossas políticas de desenvolvimento e efectuar as necessárias correcções. A filosofia desenvolvimentista das actuais elites africanas pós-coloniais é o principal obstáculo às transformações políticas, económicas e sociais que a batalha do desenvolvimento enfrenta.
 
O discurso do nacionalismo político e económico é contraproducente e não passa de um chamar de atenção ao dono, quando o osso é pequeno. Não é o discurso nacionalista que vai levar o cidadão africano a reapropriar-se dos recursos, mas sim a extensão da soberania popular. Não são as obscuras intenções do “resgate dos valores tradicionais” que vão nivelar as condições de vida, mas sim a absorção de novos valores, criados pela dinâmica do desenvolvimento.
 
È necessário completar a descolonização económica para colocar as economias africanas inseridas na economia-mundo, não como uma “periferia periférica”, mas sim como um elemento activo das novas dinâmicas económicas globais. Esta é uma obra colossal e será, sem qualquer dúvida uma batalha épica, mas só será conseguida com a continuidade do processo iniciado pela descolonização politica e o continente enveredar por uma efectiva descolonização cultural, liberta das peias neocolonialistas dos discursos fascistoides e xenófobos da “negritude” e da “autenticidade” e suas variantes contemporâneos do “afro-capitalismo” e do “Renascimento Africano”.
 
O desenvolvimento não é apenas o crescimento numérico que expressa o Produto Interno Bruto, nem são apenas as novas cidades, as torres altíssimas que desafiam os céus, ou meia dúzia de fábricas e fabriquetas, nacionais e estrangeiras, viradas para o exterior ou para o insipido e subsidiado mercado interno. É também qualidade de vida, politicas urbanísticas sérias e a ocupação racional do espaço ambiental.
 
O desenvolvimento é, antes do mais, uma ruptura. Uma ruptura com o sistema que reduziu o continente africano á condição de periferia. E é um compromisso. Um compromisso do presente para com o Futuro.
 
Fontes
Hassan, Mohamed; Lalieu, Grégoire; Collon, Michel La stratégie du chaos Investig`Action/Couleur Livres, Paris, 2012.
Campbell, Horace Global NATO and the Catastrophic Failure in Libya Syracuse University Press, 2013
 

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