Rui Peralta, Luanda
I - A Nova Aliança
para a Segurança Alimentar e Nutrição é uma associação entre o G8, governos
africanos (Tanzânia, Gana, Etiópia, Moçambique, Costa do Marfim e Burkina Faso
aos quais, em Junho deste ano, juntaram-se o Malawi, a Nigéria e o Benim) e
empresas privadas (entre as quais se incluem a Monsanto, Syngenta, Cargill e
Yara) que tem como objectivo combater a pobreza, apostando na modernização da agricultura.
A meta é tirar da pobreza 50 milhões de pessoas, nos próximos 10 anos e lançar
a agricultura africana nos braços do sector agroindustrial
Lançada em 2012 por
Obama, a Nova Aliança, tenciona cumprir a sua finalidade apelando às cobaias
africanas que definam as “politicas para melhorar as oportunidades de investimento”
e “catalisar o investimento do sector privado na agricultura africana”. As políticas
em questão concernem às sementes, pesticidas, fertilizantes, possessão das
terras e dos recursos de água e a qualquer outro domínio em que as prácticas
locais, em caso de “não reformarem-se”, possam obstaculizar o investimento
potencial da agroindústria.
O Marco de
Cooperação de Moçambique, elaborado com parceiros do sector privado, a troco do
seu compromisso de investimento, é um bom exemplo que clarifica algumas
questões essenciais para a compreensão do papel da Nova Aliança. Prevê o Marco
de Cooperação outorgar um papel aos pequenos agricultores, cuja produção será
subcontratada pela agroindústria. O principal deste acordo radica nos
mecanismos de regulação. O governo de Moçambique promete “incentivos para o
sector privado, especialmente para desenvolver e implementar os consumos
domésticos e as políticas referentes às sementes” o que significa, conforme o
documento expressa, “deixar de distribuir sementes gratuitas e não melhoradas”.
A este factor adiciona-se o compromisso do governo moçambicano de reformar os
direitos sobre a terra, para facilitar os investimentos e promover o
livre-comércio.
Por aqui se
depreende que o objectivo real, aquele que está por detrás dos véus das
palavras, é o de abrir as terras cultiváveis do continente africano (que o
Banco Mundial descreve como a “ultima fronteira”) a uma ofensiva sem
precedentes das multinacionais do agronegócio. Este é um modelo que pode ser
representado como uma cara nova do “ajuste estrutural” continuando as condições
impostas aos países em desenvolvimento nas décadas de 80 e 90: privatização e
liberalização do comércio, a troco do apoio do Banco Mundial e do FMI.
Esta continuidade
não tem nada de surpreendente. A Nova Aliança encarna a visão dominante do
investimento estrangeiro para o desenvolvimento de África. Está
intelectualmente relacionada com a Aliança para uma Revolução Verde em África
(AGRA) dirigida por Kofi Annan e que encabeça uma campanha de aumento de
produtividade, baseada numa nova estrutura de investimento privado que
transforma os pequenos agricultores em subcontratados. E tudo isto está
relacionado com a plataforma “Crescimento África” estabelecida com o objectivo
de preparar os países africanos para as novas estruturas de investimento.
Não há nada de novo
nesta Nova Aliança a não ser a forma descarada como se impõem novas regras que
favorecem e minimizam o risco do investimento das multinacionais do
agronegócio. O grande êxito desta nova proposta é o de ter passado
despercebida. No seu lançamento, no ano passado em Itália, os USA apresentaram
o projecto como um passo lógico, após a subida abrupta dos preços dos alimentos
em 2007-2008, prometendo milhares de milhões de USD disponíveis para ajuda. Os
seus parceiros do G-8 preparam em silêncio as estruturas que permitiriam que as
suas companhias estivessem presentes (Ângela Merkel estabeleceu uma Associação
de Alimentos da Alemanha, que reuniu todas as companhias alemãs do sector e
fomentando um grande cartel do sector alimentar germânico) e lançaram-se no
grande projecto de recolonização.
Participação das
empresas privadas africanas? Não (excluindo as sul-africanas e as do Botswana),
até porque as que existem fora destes países são africanas de fachada, sendo o
seu capital estrangeiro. As empresas públicas africanas foram afastadas do
processo (mas em abono da verdade elas não passam de armazéns dos respectivos Ministérios
da Agricultura dos governos africanos e servem apenas para manter empregos, ou
seja subsidiar, através da conta de salários, alguns milhares de funcionários
públicos, garantindo um fundo eleitoral).
E os agricultores
africanos participaram? Mamadou Cissokho, presidente da Confederação dos
Agricultores da África Ocidental, numa carta dirigida á União Africana e ao
G-8, quando do lançamento da Nova Aliança, manifesta a preocupação dos
agricultores africanos: “Peço que expliquem como podem garantir a segurança e a
soberania alimentar de Africa por meio do investimento internacional e á margem
dos agricultores e produtores africanos e dos marcos políticos nacionais”. Todos
os documentos políticos elaborados pelas associações de agricultores da África
Oriental, Ocidental e Central revelam enormes discrepâncias entre o que os agricultores
do continente querem e necessitam e o que propõe a Nova Aliança.
Os 33 milhões de
famílias agricultoras do continente (80% do total africano) têm o controlo, sob
a forma de base produtiva, das terras, das sementes e da água. O que os preocupa
é a garantia de que nenhum acordo, feito nas suas costas, impeça a reutilização
das sementes e que os donos dos rebanhos não fiquem constrangidos por sistemas
de títulos de propriedade de terras que os impeçam de aceder às terras comunais
de pasto. A lógica da agricultura africana é oposta às visões preponderantes no
Norte. A rotação de cultivos, que os agricultores europeus não praticam, faz
parte dos sistemas agrícolas africanos, que necessitam ser diversificados, para
sobreviver às condições ambientais. Muitos destes agricultores não utilizam
produtos químicos e muitas das suas funções de trabalho consistem em sistemas
de ajuda mutua e de colaboração reciproca.
Os agricultores
africanos não são ingénuos. Reconhecem a necessidade do investimento estrangeiro
e da industrialização. Mas não compreendem por que razão é que estas vantagens
só podem ser adquiridas pelo investimento estrangeiro e pelo agronegócio e não
por estruturas de investimento que os envolvam, sem ser como subordinados
subcontratados. Estão perfeitamente conscientes, ao contrário dos seus
dirigentes, das dificuldades de coexistência entre o modelo africano de
agricultura familiar e a agricultura industrial e reconhecem as debilidades do
seu modelo. Por isso não querem coexistir, pois serão asfixiados e cessarão a
sua actividade. Pretendem assumir o controlo das alterações do modelo e são o
elemento mais indicado para o fazer, na textura africana, devido ao seu
conhecimento acumulado.
Não é por
coincidência, ou má educação, que a Nova Aliança não tenha consultado os
agricultores africanos. São interesses antagónicos, que se encontram em
competição pelas mesmas reservas de terras e de água. Competem também pelo
mesmo papel primordial na formulação dos planos agrícolas nacionais, embora a voz
dos agricultores africanos caia, normalmente, em ouvidos surdos e ressoe em
cabeças ocas. Mas se os governos nacionais ignoram os agricultores e os
camponeses africanos, tratando-os com ar enfastiado, a Nova Aliança não reage
da mesma forma e não subestima o seu competidor directo.
Está em jogo muito
dinheiro. O G-8 ascendeu a um estatuto de elevada importância assumindo a
direcção do desenvolvimento agrícola através do CFS, Comité Mundial para a
Segurança Alimentar. O CFS é um Fórum onde os agricultores dos países em
desenvolvimento podem negociar em pé de igualdade com os governos de todo o
mundo, incluindo com os dos seus países de origem. Mas o CFS elaborou
recentemente novas linhas directrizes sobre os direitos á terra, no âmbito das
propostas das multinacionais da agroindústria. Ficam, desta maneira, as
corporações do agronegócio com a vida facilitada, assumindo-se como marcos de
desenvolvimento, cilindrando o papel dos pequenos agricultores africanos na
soberania alimentar e permitindo ao G-8 possuir o discurso de legitimação da
Nova Aliança, arbitrando as politicas de segurança alimentar.
É evidente que o
investimento estrangeiro tem um papel importante e fundamental no
desenvolvimento agrícola em África. Mas para que o seu papel seja construtivo é
necessário estabelecer regras especificas de investimento, normas transparentes
e directrizes básicas. O panorama nacional a nível continental é, neste sentido,
desolador. Nem regras adequadas, nem normas transparentes e muito menos
directrizes básicas. É por isso que as terras africanas são a “última fronteira”
para as grandes corporações globais.
Em caso algum as
companhias deveriam participar nos processos políticos reguladores. Deveria ter
sido estabelecido um plano geral, indicador das linhas mestras, a nível
continental, sob a direcção da União Africana e que envolvesse directamente as
Confederações de Agricultores e as Uniões Camponesas de todo o continente. Mas
nada disto aconteceu. Pelo contrário, a Nova Aliança penetra fundo nas veias abertas
do continente e as elites africanas aplaudem, sorridentes e deslumbradas a
vinda dos recolonizadores.
II - A ofensiva
contra África, não é apenas no sector determinante da agricultura e no controlo
da soberania alimentar. A ofensiva é também lançada a nível militar. Desde que
os USA, em 2008, criaram o AFRICOM - o comando unificado para as operações
militares do Ocidente no continente africano - as guerras multiplicaram-se. Costa
do Marfim, Líbia e Mali, são exemplos concretos deste cenário de guerra. Mas
também a Somália e o Congo Democrático, conhecem a continuidade das suas
guerras e novas amplitudes de conflito e a desestabilização atinge proporções
de alta e média amplitude na Nigéria, no Quénia e em todo o Norte de África.
Estas agressões do Ocidente
ao continente africano têm como pano de fundo a profunda crise cronica que se
instalou nas economias ocidentais e a necessidade intrínseca do Ocidente em
controlar as matérias-primas e em estabelecer novos fluxos logísticos (não só
de matérias-primas e de recursos naturais, mas também de capitais) que permitam
a redução dos custos de exploração. A crise instalada no Ocidente desde os anos
70 levou ao abandono das políticas macroeconómicas keynesianas e á adopção de
políticas liberais, durante os anos 80, época em que se assistiu ao primeiro
processo de renovação das elites após a II guerra Mundial.
O continente
africano, nessas décadas, estava mergulhado numa profunda crise económica, política
e social. As elites africanas, numa tentativa de sobrevivência, iniciam o seu
processo de renovação (a estrutura incipiente da grande maioria dos mercados
africanos no período pós-colonial impedia o funcionamento dos mecanismos de
renovação das elites, sendo este realizado através de processos políticos consubstanciados
em longos períodos de instabilidade politica e caracterizado por um sucedâneos
de golpes de estado militares) e adoptam as políticas de liberalização. Estas políticas
foram formuladas nos famosos Programas de Ajuste Estrutural que debilitaram ainda
mais os sempre débeis Estados africanos do período pós-colonial e extinguiram
os parcos serviços sociais existentes.
As matérias-primas
a baixos custos de aquisição tornam-se cada vez mais essenciais para as
economias ocidentais e para as economias emergentes com altos índices de
crescimento económico. No subsolo africano encontram-se, intactas, importantes
reservas de petróleo, gás, metais ordinários, metais raros, uranio, etc.. Cerca
de 40% das matérias-primas minerais mundiais encontram-se no subsolo africana,
para alem das importantes reservas aquíferas. O continente africano adquire,
uma vez mais na Historia uma importância fundamental nos mecanismos
concorrenciais, não como actor, mas como figurante. As elites africanas são,
agora, parceiros notáveis que comem á mesa dos seus sócios, ao pequeno-almoço,
mas que almoçam e jantam na cozinha, continuando a dormir no estábulo (agora
com palha e feno de melhor qualidade e pintado de fresco).
A intervenção
directa da NATO no continente africano irá incrementar-se nos próximos anos. A
AFRICOM intensifica a sua implementação com um número impressionante de
programas de cooperação militar, sob a forma de treino, formação técnica e
exercícios conjuntos, envolvendo mais de 35 Estados africanos.
A Nova Aliança é
apenas mais um projecto de complementaridade na política de recolonização
lançada pelo ocidente no continente africano, uma estrutura visível de um
imenso icebergue, no qual a AFRICOM é um componente fundamental da estrutura.
Destroçar a soberania nacional, apropriar-se dos recursos naturais, implementar
as forças militares no terreno e incorporar os cipaios, descentralizar o sector
financeiro inserindo e colocando quadros fieis e leais aos seus interesses nas
respectivas instituições, tomar posições chave nos aparelhos de Estado e
asfixiar quaisquer medidas que representem um reforço da soberania popular,
eliminando assim a eventualidade do surgimento de um bloco de “Estados canalhas”
que constituam um foco de resistência aos interesses Ocidentais, são, já, o
panorama geral do palco de operações em que foi constituído o continente
africano.
É o Renascimento.
Não de África (essa terá de ser parida nas trincheiras firmes da resistência)
mas do colono e do apartheid. De pele escura e com sócio branco. Com o China
International Fund como pano de fundo (não vá o branco baixar o valor das
comissões).
III - A
militarização do continente é um facto. O curioso é que essa militarização
assenta sob o discurso da abertura ao investimento e do comércio livre. Só que
o Ocidente já nada tem a oferecer a África. A crise crónica impede as chorudas
ofertas de outrora. Isto foi visível na última visita de Obama ao continente.
Quando o presidente chinês visitou o continente, veio com os bolsos recheados e
as mãos cheias. Obama apresentou-se com os bolsos rotos e de mãos a abanar.
O volume de
comércio entre África e a China, nos últimos dez anos multiplicou-se por 20. A
ajuda chinesa reflecte-se no desenvolvimento das infraestruturas, o que leva os
países africanos que estabelecem relações com a China, a defenderem-se melhor
das imposições do FMI e do Banco Mundial e os projectos de infraestruturas dos
Chineses em África têm provocado alterações importantes com reflexos positivos
nas economias africanas. Mas os processos de transformação do continente não
podem ficar por aqui. As políticas de desenvolvimento têm de ter reflexos
profundos na sociedade e reduzir o fosso entre ricos e pobres. Não se trata
apenas de uma questão de criar classe média, seja isso o que for, mas sim de
ampliar a cidadania.
O continente
africano necessita de um índice que estabeleça a correlação entre o Produto
Interno Bruto e o Índice de Desenvolvimento Humano. Só desta forma poderemos
analisar efectivamente as nossas políticas de desenvolvimento e efectuar as
necessárias correcções. A filosofia desenvolvimentista das actuais elites
africanas pós-coloniais é o principal obstáculo às transformações políticas,
económicas e sociais que a batalha do desenvolvimento enfrenta.
O discurso do nacionalismo
político e económico é contraproducente e não passa de um chamar de atenção ao
dono, quando o osso é pequeno. Não é o discurso nacionalista que vai levar o
cidadão africano a reapropriar-se dos recursos, mas sim a extensão da soberania
popular. Não são as obscuras intenções do “resgate dos valores tradicionais”
que vão nivelar as condições de vida, mas sim a absorção de novos valores,
criados pela dinâmica do desenvolvimento.
È necessário
completar a descolonização económica para colocar as economias africanas
inseridas na economia-mundo, não como uma “periferia periférica”, mas sim como
um elemento activo das novas dinâmicas económicas globais. Esta é uma obra
colossal e será, sem qualquer dúvida uma batalha épica, mas só será conseguida
com a continuidade do processo iniciado pela descolonização politica e o
continente enveredar por uma efectiva descolonização cultural, liberta das
peias neocolonialistas dos discursos fascistoides e xenófobos da “negritude” e
da “autenticidade” e suas variantes contemporâneos do “afro-capitalismo” e do “Renascimento
Africano”.
O desenvolvimento
não é apenas o crescimento numérico que expressa o Produto Interno Bruto, nem
são apenas as novas cidades, as torres altíssimas que desafiam os céus, ou meia
dúzia de fábricas e fabriquetas, nacionais e estrangeiras, viradas para o
exterior ou para o insipido e subsidiado mercado interno. É também qualidade de
vida, politicas urbanísticas sérias e a ocupação racional do espaço ambiental.
O desenvolvimento
é, antes do mais, uma ruptura. Uma ruptura com o sistema que reduziu o
continente africano á condição de periferia. E é um compromisso. Um compromisso
do presente para com o Futuro.
Fontes
Hassan, Mohamed;
Lalieu, Grégoire; Collon, Michel La stratégie du chaos Investig`Action/Couleur
Livres, Paris, 2012.
Campbell, Horace Global NATO and
the Catastrophic Failure in Libya Syracuse University Press, 2013
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