Reeleição de Angela
Merkel pressagia continente que abandona solidariedade, assume face punitiva do
protestantismo e descamba para desigualdade e xenofobia
Roberto Sávio -
Tradução: Vinícius Gomes – Outras Palavras
As recentes
eleições alemãs borraram as fronteiras entre norte e sul da Europa. Ao longo
dos últimos três anos, todo o mundo parecia olhar apenas para a crise na
Grécia, seguida pela da Irlanda, de Portugal; pelo declínio da França, a
estagnação da Espanha e a falta de governabilidade na Itália. Poucos perceberam
que a Holanda (quinta economia da zona do euro) foi obrigada a admitir que em
2014 não conseguirá cumprir a meta de déficit fiscal abaixo de 3% do Produto
Interno Bruto (PIB) e já atingiu os 3,8%.
A Finlândia, outra
forte aliada no dogma de “austeridade” da Alemanha e sua firme imposição no sul
da Europa, admitiu que terá de violar outro princípio: aquele segundo o qual o
endividamento não pode ultrapassar 60% do PIB. Também a Áustria parece caminhar
em direção à desaceleração, sem falar da situação difícil dos países da Europa
Oriental e da Polônia. A Eslovênia figura na lista como o próximo país a ser
“resgatado”, depois do Chipre.
Em seu discurso no Dia do Príncipe, para as duas casas do
parlamento holandês, o rei William praticamente liquidou o conceito de Estado
de bem-estar social, ao dizer claramente que o sistema clássico da segunda
metade do século XX seria “insustentável”, e clamar por sua substituição pela
chamada “participação da sociedade”, em que as pessoas são responsáveis por seu
próprio futuro. O rei lia um discurso preparado pelo premiê liberal Mark Rutte,
que comanda o país com apoio dos sociais-democratas. […]
É exatamente a
mesma posição do candidato republicano Mitt Romney durante sua campanha contra
Barack Obama, nas últimas eleições dos EUA. Trata-se de um excelente exemplo de
como o modelo social europeu vem progressivamente minguando e se tornando cada
vez mais parecido com o norte-americano. E para ficar ainda mais semelhante,
logo depois do discurso do rei o governo holandês comprou, por 6 bilhões de
dólares, 37 caças F-35. A manutenção destes caças irá custar 300 milhões ao ano
– um custo que certamente deixará mais seguros os cidadãos holandeses ameaçados
de cortes em aposentadorias e benefícios sociais…
Ao vencer as
eleições, Angela Merkel já anunciou que irá manter a “austeridade” como base
dos relacionamentos da Alemanha na Europa. Em outras palavras, os países devem
continuar cortando custos sociais para equilibrar o orçamento. Merkel acredita
que a unidade europeia é importante: sabe bem que uma das razões para o sucesso
da Alemanha é que uma Europa fraca torna mais forte a economia alemã, via
exportações e taxas de juros. Mas Merkel não é uma líder da Europa, ela é líder
da Alemanha. Nunca tentou explicar aos seus cidadãos as razões fundamentais da
vantagem alemã.
O fato é que os
empréstimos às nações do sul da Europa destinaram-se, primeiramente, a pagar as
dívidas dos bancos daqueles países, sendo que alto percentual foi parar nos
bancos alemães, detentores de títulos da Grécia, Irlanda, Portugal e por aí vai
(além de a Alemanha injetar, em seus próprios bancos, 300 bilhões de dólares).
Merkel é uma líder
que, ao contrário de seus antecessores, não se sente responsável, por razões
pessoais e históricas, pelos pecados passados da Alemanha. Ela não tem problema
algum em projetar uma imagem controversa de seu país. Não vê problemas em
manter relações difíceis com outros líderes europeus. Tem sido acusada de usar
como modelo a Suíça (mais Zurique que Genebra): um país que só quer saber de
comerciar e, basicamente, evita envolver-se na solução dos problemas
internacionais, a não ser que afetem a estabilidade nacional. Merkel não
definiu posição alguma da Alemanha sobre assuntos globais, além do
reconhecimento genérico de que os Estados Unidos são o país responsável pela
ordem mundial. Ela aceitou a posição de Obama nas questões da Líbia, do Egito e
da Síria, mas não comprometeu a Alemanha a tomar nenhuma medida concreta. Na
prática, a Alemanha está completamente ausente de qualquer debate global, de
meio ambiente a desarmamento; de governança e governabilidade ao papel das
Nações Unidas.
Na Europa, ela
considera que os alemães – que teriam pago seus impostos e trabalhado duro,
enquanto Grécia, Irlanda e Portugal gastavam dinheiro alegremente – estavam
comprometidos, sob o comando do antigo chanceler Gerhard Schröder, com um
processo doloroso e não solicitado de redução do bem-estar social. O modelo
social alemão, acredita, tem sido um sucesso. Discursando em Meschede, na
Renânia do Norte-Vestfália, em 2011, ela afirmou claramente: “Não podemos ser
solidários e aceitar que países endividados continuem como estão. A Alemanha
vai ajudar, mas apenas se os outros se esforçarem e demostrarem esforços. É
importante que em países como Grécia, Espanha e Portugal as pessoas não possam
aposentar-se antes que na Alemanha – que todos se esforcem mais ou menos
igualmente. Isso é importante… Não podemos ter uma moeda comum se alguns têm
muito tempo de férias e outros, pouco. Isso não vai funcionar no longo prazo.”
E em 2012, quando a ideia de emitir eurobônus (títulos garantidos por todos os
países da zona do euro para sustentar as finanças dos países europeus mais
fracos) foi posta de lado, ela declarou enfaticamente: “Enquanto eu viver, não
haverá eurobônus.” Disse ainda: “Programas de assistência devem estar sempre
sujeitos a condições bem estritas”.
Assim sendo, o
modelo social da Alemanha deve tornar-se o modelo social europeu. Parece fácil
do ponto de vista de Berlim, mas, para países em recessão, manter os cortes de
serviços públicos causa sérios custos sociais, como já admitiu até mesmo o
Fundo Monetário Internacional (FMI). Esses custos são vistos como desperdício e
esbanjamento na Alemanha, onde o valor protestante da punição dos pecados
desempenha forte, embora não declarada justificativa psicológica diante de
notícias sobre o sofrimento dos cidadãos na Grécia e outros países no sul da
Europa.
Merkel tem posição
bem definida sobre a Europa, sempre sugerida, ainda que não expressa
claramente. Ela favorece fortemente maior integração. Mas não procura fazê-lo
delegando poderes às instituições européias, e sim por meio de mais e mais
acordos entre a Alemanha e outros Estados. Tem resistido a ampliar os poderes
do Banco Central Europeu (ECB) e diluído seu programa de controle do sistema
bancário. Mas não tem nenhum problema em, por exemplo, fechar um acordo
bilateral com a Espanha para aceitar profissionais qualificados como imigrantes
(no ano passado a Alemanha bateu o recorde de um milhão de imigrantes), como
forma de ajudar no emprego dos jovens. E tem feito várias declarações sugerindo
que “é hora de retomar algumas funções de Bruxelas de volta aos Estados
nacionais”.
Na verdade, isso
torna Angela Merkel muito mais próxima do primeiro-ministro britânico David
Cameron do que a maioria das pessoas imagina. Quando eles se conheceram, em
junho de 2012, ambos assumiram exatamente as mesmas posições em relação ao
orçamento europeu, deixando o presidente francês François Hollande
completamente isolado. E foi Hollande quem teve de ir à luta junto a Cameron pela
visão europeia, com Merkel basicamente assistindo. Cameron vê a Europa apenas
como um mercado comum. A visão de Merkel não está distante disso. Ela olha para
um conjunto de relações entre Estados europeus, com Bruxelas coordenado
políticas comuns, mas com a condição de que os países se alinhem ao modelo
social alemão.
Assim, nos próximos
quatro anos não haverá grandes mudanças, ainda que um Partido Social Democrata
(SPD) muito enfraquecido faça uma coalizão com Merkel. A propósito, o SPD
debilitou-se precisamente por causa das reformas austeras de Schröder, e desde
então não conseguiu se recompor. Fora alguns sinais progressistas emitidos
durante a recente campanha eleitoral, as diferenças nas questões sociais entre
o SPD e a União Democrática Cristã (CDU), de Merkel, foram mínimas. Em Dortmund
(580 mil habitantes), um em cada quatro cidadãos está próximo da linha de
pobreza e vive de subsídios. Nacionalmente, 6 milhões de alemães recebem alguma
forma de ajuda estatal e 2,5 milhões com menos de 18 anos vivem na pobreza, de
acordo com Massimo Nava, do Il Corriere della Sera. Enquanto isso, as
frustrações na antiga Alemanha Oriental, que permanece mais deprimida que o
resto do país, não se refletem em comparecimento às urnas, mas em abstenção. Os
alemães olham para além de suas fronteiras e, temendo o pior, preferem manter o
status quo.
Examinemos mais de
perto uma era de Europa pós-Merkel. A partir do sul, a política de austeridade
irá se propagar por toda a Europa. É possível que os cortes na seguridade social
produzam alguns resultados, em termos macroeconômicos e orçamentários. A
Grã-Bretanha é um bom exemplo. Cameron vem desmontando o famoso Sistema
Nacional de Saúde do país, exemplo para toda a Europa depois da II Guerra
Mundial. Ele vem cortando o orçamento da educação e o que mais seja possível, e
também está privatizando cada vez mais. O setor financeiro corresponde hoje a
10% do PIB britânico e 2.436 banqueiros receberam mais de 1 milhão de euros em
2011, de acordo com as autoridades do Banco Europeu. O Partido Conservador
obtém mais de 59% de seu financiamento na City, o centro financeiro de Londres.
Em nível orçamentário parece haver uma melhoria à vista, mas, ao mesmo tempo,
segundo previsões da London School of Economics para 2025, o país irá voltar
aos tempos da Rainha Vitória, em termos de desigualdade social.
Essa tendência vai
espalhar-se por toda a Europa – em diferentes velocidades, mas na mesma
direção. Isso está derrubando a esquerda tradicional, que entrou na onda do
liberalismo e globalização – ao invés de se colocar lado a lado com as vítimas.
Estas, ou deixaram a política de lado ou se juntaram a partidos de protesto
(geralmente xenófobos e de extrema direita), que estão surgindo em todos os
lugares – desde o Partido Alternativo na Alemanha, que vem avançando, até seus
semelhantes na Grã-Bretanha, Holanda, Noruega, Dinamarca, Hungria etc.
De certa forma,
Merkel vem atacando e erodindo constantemente o SPD. Ele é agora um partido
debilitado, que vai perder ainda mais força e credibilidade se aderir à premiê
no governo. Em toda a Europa, os partidos tradicionais de esquerda estão em
crise: as últimas eleições da Noruega, onde até mesmo o partido mais radical de
extrema direita foi proporcionalmente melhor que os sociais-democratas, deveriam
abrir os olhos de todo mundo.
O caso agora é
muito sério: ao destruir os valores de justiça social e solidariedade, que eram
o espírito de unidade real da Europa, Angela Merkel está, na verdade, também
destruindo os valores em que o Cristianismo se baseia (ouça-se o Papa
Francisco!). Quando ela deixar o cargo, muito provavelmente vai existir uma
Europa bem diferente – muito radicalizada, onde possivelmente as pessoas
excluídas vão retornar à política. A longo prazo, será que isso realmente
corresponde aos interesses do CDU?
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