sábado, 14 de setembro de 2013

Brasil: DE DORES E RANCORES

 


A direita, ostensiva ou envergonhada, ataca os médicos cubanos. Os assanhados, do alto de seus bons planos particulares de saúde, tiveram a triste companhia de alguns médicos brasileiros estridentes. Mas a esquerda também comete seus pecadilhos.
 
Jacques Gruman* – Carta Maior
 
O mais duro é conviver com essa dor que não passa nunca (Adriano Amieiro, irmão da engenheira Patrícia Amieiro, que, em 2008, teve seu carro alvejado, caiu no Canal de Marapendi e o corpo desapareceu; PMs acusados do crime aguardam julgamento)

Parecia uma noite comum. Voltava de uma aula de dança de salão, quando uma dorzinha que vinha da barriga e se irradiava pelo tórax começou a incomodar. Vai ver que o almoço não caiu bem, pensei. A dor foi aumentando, até ficar insuportável. Fui para a emergência de uma clínica particular, onde uma jovenzinha mal me perguntou o que estava acontecendo e me deu um antiácido. Diagnóstico cínico, irresponsável. Claro que não adiantou nada. A peregrinação continuou, a dor virando quase uma entidade à parte, que sugava todas as energias. Depois de me internar num dos hospitais de ponta do Rio (nessas horas os cifrões vão p’ra Camarões) e de uma injeção fortíssima, um primeiro alívio. Exames acusaram crise aguda na vesícula. Horas mais tarde, entrei na faca, ou melhor, num aparelhinho futurista, que me fez quatro furinhos e arrancou fora a vesícula estragada. Paraíso. Em pouco mais de 24 horas, meu problema de saúde foi resolvido com técnicas modernas e atendimento competente. O custo, claro, não foi pequeno.

Dores fortes colocam a vida em estado de suspensão. O corpo se transforma, o sofrimento afoga qualquer tipo de iniciativa. Não me refiro apenas às dores físicas. As psíquicas são igualmente devastadoras. Ao se referir às investigações dos militantes que desapareceram durante a ditadura militar brasileira, a psicanalista Maria Rita Kehl, membro da Comissão Nacional da Verdade, comentou que “a morte é um evento tão inaceitável para qualquer um, e a morte violenta ainda mais, que precisamos velar o corpo morto para conseguir acreditar nela. Sem o corpo, fica-se com a sensação que a realidade da morte foi decidida não por quem causou o desaparecimento, mas pelos que desistiram de buscar o desaparecido. Por isso o luto dos familiares é uma ferida que nunca deixa de doer”. É a dor que a família do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, sumido há dois meses, certamente está sentindo. Ela e milhares de outras que tiveram seres queridos arrancados da convivência. Seus corpos jamais aparecerão e os criminosos permanecerão impunes.

Dor não menos intensa do que a das multidões anônimas do Brasil profundo, carentes dos serviços mais elementares. Dor de Maria do Nazaré Batista, que mora no interior do Piauí e precisou ir a duas cidades para ter o diagnóstico de um mal que a mantinha quase paralisada. Está há dois meses na lista de espera por uma cirurgia. Dois meses ! Talvez seja uma felizarda, outros esperarão anos, outros ainda morrerão neste calvário, que, até não faz muito, era completamente ignorado pelos meios de comunicação. Para os incontáveis municípios sem qualquer tipo de assistência médica ou odontológica, “a greve nos serviços de saúde dura bem uns quatro séculos”, ironizou com propriedade o colunista Marcelo Coelho, da Folha de S. Paulo.

Muita gente já opinou sobre o programa Mais Médicos, implementado com boa dose de improviso pelo governo federal. Não vou chover no molhado. O tema é controvertido, exige rigor informativo (e não raro técnico) para se formar opinião. Não é hora, no entanto, de ignorar certos aspectos flagrantes dos últimos acontecimentos. A neutralidade, neste caso, é má conselheira.

Para começar, sou absolutamente solidário à tentativa de se levar um mínimo de assistência médica a 701 municípios para onde nenhum médico brasileiro quis ir. Usar critérios ideológicos, provincianos ou corporativos para criticar esta medida é desconhecer a tragédia dos desassistidos. Como bem disse o doutor Drauzio Varella, “localidades sem eles precisam tê-los, mesmo que não estejam bem preparados. É melhor um médico com formação medíocre, mas boa vontade, do que não ter nenhum ou contar com um daqueles que mal olha na cara dos pacientes”. Repercute, na área da saúde, o que disse o Betinho: “Quem tem fome, tem pressa”. Não faz o menor sentido esperar soluções estruturais para a situação calamitosa da saúde pública, que podem demorar décadas, para, só então, atender os que sofrem, muitas vezes, de doenças já erradicadas com relativa facilidade. Em quantos condomínios da Barra da Tijuca ainda se morre de diarreia?
 
A direita, ostensiva ou envergonhada, ataca os médicos cubanos. Os assanhados, do alto de seus bons planos particulares de saúde, tiveram a triste companhia de alguns médicos brasileiros estridentes, que armaram até corredor polonês para chamar os colegas cubanos de escravos. Para as viúvas da Guerra Fria, basta vir da ilha caribenha para ter a marca de Caim. Os indignados de fancaria “exigem” que os profissionais estrangeiros façam um exame de revalidação do diploma. Claro que o ideal seria que esses que chegam comprovassem a sua competência. A pergunta que faço, montado nas observações do doutor Drauzio, é a seguinte: se não temos uma lei que obrigue os médicos brasileiros a prestar exames que comprovem seu preparo, a exemplo do que exige a OAB, por que se deve dar um tratamento distinto aos estrangeiros ? Estamos, sejamos claros, em situação de calamidade pública.
 
A esquerda também comete seus pecadilhos. Especialmente a esquerda oficialista. Assediado pelas ruas desde junho e com uma eleição pela frente em 2014, o governo federal correu para dar uma resposta imediatista, sem sinalizar que pretende discutir em profundidade o desastre da saúde pública no Brasil. Continuarão sucateados os hospitais públicos ? Os médicos e demais profissionais da saúde que lá trabalham, não raro com grande abnegação, permanecerão sem condições mínimas para dar um atendimento decente á população ? A formação de novos médicos ficará enquadrada no padrão que se observou nos dois governos Lula, ou seja, 77% dos cursos foram abertos em instituições privadas ? São cursos caros, com altas taxas de evasão. Pode-se esperar que deles saiam médicos dispostos a se embrenhar em lugarejos remotos para exercer a profissão ? Por outro lado, se o programa Mais Médicos não for complementado por um plano estratégico sério, o que é para ser encarado como provisório se transfigurará em solução mágica para a saúde no Brasil. Continuamos carentes de investimentos e métodos administrativos honestos e modernos. Continuamos reféns de períodos eleitorais, de interesses mesquinhos, da falta de uma política de Estado (e não de governo) para a saúde pública. Gostaria de ver os setores progressistas mergulharem neste caldo grosso e fermentado.

Quem se irrita com a concentração de médicos nas regiões mais desenvolvidas do país está se iludindo. Vivemos ou não numa sociedade de classes ? Por que exigir dos médicos uma solidariedade com as camadas populares e não fazer o mesmo com engenheiros, arquitetos, advogados, e tantos outros, igualmente instalados nas cidades que oferecem condições adequadas de trabalho e mercado lucrativo ? Luta de classes é ou não é pra valer ?

Em meio à desolação, muitos dos que sofrem das várias e humanas dores acabam apelando para o sobrenatural. Promessas, simpatias, fé. Nessa área, minha avó materna era craque. Tinha uma simpatia infalível para curar mau-olhado. Colocava um pouco de sal num saquinho de pano, amarrava, fechava os olhos e circulava o saquinho em torno da cabeça do paciente, pronunciando palavras secretas. Depois, jogava o saquinho no fogo. Pronto. Estava derrotado o olho grande. Quem dera fosse tão fácil ...
 
(*) Engenheiro químico, é militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro.
 

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