A incrível
entrevista em que ministro do STF exibiu, além de grosseria, desconhecimento
extremo. E o que ele precisa aprender sobre a Bolívia
Antonio Barbosa
Filho – Outras Palavras
Certamente abalado
pela aula magna de Direito pronunciada pelo ministro Celso de Mello na sessão
do dia 18 de setembro, onde todos os seus patéticos argumentos vociferados na
semana anterior foram reduzidos a pó, o ministro Gilmar Mendes cometeu mais um
erro crasso em fala à imprensa. Ao deixar o plenário, o emérito jurista de Mato
Grosso afirmou aos jornalistas, segundo se lê no Portal UOL:
“Daqui a pouco nós conspurcamos o tribunal, corrompemos o tribunal,
transformamos ele (sic) num tribunal de Caracas, de La Paz, num tribunal
bolivariano”.
Tentando ser
irônico e cometendo um ato de hostilidade a seus colegas magistrados de dois
países com os quais o Brasil mantém excelentes relações em todos os setores,
Gilmar revelou também profunda ignorância em Geografia e sobre o Judiciário
dessas nações vizinhas.
Não há tribunais em
La Paz! Os quatro tribunais superiores do Estado Plurinacional de Bolívia (nome
oficial do país) localizam-se e funcionam na histórica cidade de Sucre. E
Sucre, para surpresa do eminente, mas desatento, aluno de Celso de Mello é a
Capital da Bolívia, como determina o artigo 6, item I. da Constituição Política
do Estado, elaborada por uma Assembléia Constituinte livremente eleita em 2006,
e depois submetida a Referendo popular, em 25 de janeiro de 2009. O povo
boliviano aprovou a Constituição por 61,43% e o dispositivo mencionado afirma:
“Sucre es capital de Bolívia” – dispenso-me de traduzir.
Se não sabe nem
qual é a capital do país a que se refere, muito menos saberá o ilustre
derrotado que o sistema judicial boliviano foi estruturado com a assessoria da
União Europeia, que destinou 450 mil euros para um programa de colaboração com
duração de 18 meses, nos quais magistrados espanhóis trabalharam com juristas
bolivianos.
A especialista Ana
Esther Sanchez, da Audiência Internacional da Espanha explicou que o trabalho
visava o estabelecimento de um sistema judicial “com parâmetros totalmente
diferente dos anteriores”, mas em conformidade com as normas e padrões
internacionais de direitos humanos, transparência das instituições, acesso das
pessoas à Justiça e independência judicial, previstos na Constituição de 2009.
Para ilustração do
concessor de habeas-corpus a banqueiros condenados, acrescento que são quatro
os órgãos integrantes da cúpula do “órgão judicial” – na Bolívia de Evo Morales
aboliu-se a expressão “Poder”, havendo os “orgãos” judicial, executivo e
legislativo. Isso porque a nova Constituição radicalizou ao definir que o poder
“reside do Povo”, quando as anteriores diziam que o poder “emana do Povo”. O
“orgão judicial”, portanto, é formado pelo Tribunal Supremo de Justiça, o
Tribunal Constitucional Plurinacional, o Conselho da Magistratura, e o Tribunal
Agro-Ambiental. Todos instalados e funcionando na capital do país, que é Sucre.
O Tribunal Supremo
de Justiça, equivalente ao colegiado que tolera Gilmar Mendes, tem nove membros
efetivos e nove suplentes, eleitos pelo povo, em cada um dos nove Departamentos
(no Brasil seriam os Estados) que conformam a nação. As Assembleias
Legislativas Departamentais selecionam seis nomes em duas listas, uma só de
homens, outra só de mulheres. Os candidatos precisam ter mais de 30 anos de
idade, e no mínimo oito como juízes, advogados ou professores de Direito. Há
espaço para indígenas, desde que tenham exercido funções judiciárias em suas
comunidades originárias. O órgão eleitoral faz a campanha, divulgando
igualmente os méritos de todos os candidatos; esses, se fizerem campanha
pessoal, tornam-se imediatamente inabilitados à disputa. Feita a votação
popular, na qual cada cidadão vota duas vezes, uma em um homem, outra em nome
da lista feminina, torna-se membro do Tribunal o mais votado de ambas. Se for
homem, a mulher mais votada na outra lista torna-se a suplente, e vice-versa.
Assim, o Tribunal terá sempre 50% de homens e 50% de mulheres, entre os 18
titulares e suplentes.
Os membros desta
Corte Superior têm seis anos de mandato e não podem ser reeleitos – uma idéia
que muitos no Brasil talvez gostassem de incluir numa eventual Reforma do
Judiciário, tão propalada quanto postergada. Também poderia cogitar-se de que
na Bolívia o presidente da Corte Suprema não participa da linha sucessória do
presidente da República (lá, presidente do Estado), diferentemente do Brasil.
Talvez isso permitisse que o chefe do Judiciário esteja menos envolvido nas
questões políticas…
Outra diferença
fundamental com as instituições brasileiras é a existência da “jurisdição
indígena originária camponesa”, que consiste no respeito às práticas
judiciárias de cada um dos povos originários da Bolívia – um país que congrega
34 nações diferentes. Tudo com base no artigo primeiro da Constituição, segundo
o qual “a Bolívia se funda na pluralidade e no pluralismo político, econômico, jurídico,
cultural e linguístico, dentro do processo de integração do país”. Assim, há
uma Justiça indígena-comunitária, nos moldes históricos, já que tais
comunidades são preexistentes ao próprio Estado. E tanto esta Justiça, como a
ordinária gozam de igual hierarquia. Para dirimir os naturais conflitos de
competência, em casos concretos, existe o Tribunal Constitucional
Plurinacional, que harmoniza também as decisões das comunidades que conflitem
com as jurisdições agrária e agro-ambiental.
Parece complicado,
e é. Mas a Bolívia é um país que passa por um processo de “refundação”,
tentando descolonizar-se interna e externamente. Suas instituições têm a
complexidade de um país com vários idiomas e uma História de privação de
direitos e ausência total de cidadania para as grandes maiorias. Todos
reconhecem, inclusive o governo de Evo Morales, que há um longo caminho a
percorrer até que todas as novas instituições funcionem sem atritos e prestando
os serviços que a população apenas começa a receber.
Juízes eleitos: A
Argentina, que tem muito mais tradição institucional, também está trabalhando
numa reforma judicial, que prevê a eleição direta de juízes, e de membros do
Conselho da Magistratura, inclusive indicados pelos partidos políticos.
Recentemente, a brasileira Gabriela Knaul, relatora especial das Nações Unidas
e sediada em Genebra, criticou este ponto que os argentinos estão discutindo:
“A eleição partidária dos membros do Conselho da Magistratura é contrária ao
Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e relativos à independência
judicial”.
A observadora
deveria observar, digamos, os Estados Unidos, onde apenas cinco dos 50 Estados
conferem ao governador ou ao órgão legislativo a competência para indicarem
membros de suas cortes; em todos os demais Estados há alguma forma de eleição.
Em sete deles, os candidatos precisam ter vinculação partidária; em 14, não
podem ter tal vínculo; em 16, os juízes são nomeados, mas depois obrigados a se
submeterem ao voto popular se quiserem cumprir mais de um mandato, embora sem
adversários: o eleitor diz apenas “sim” ou “não” à continuidade no cargo. Enfim,
cada Estado dos EUA pode estabelecer suas próprias normas e isso difere até de
acordo com o momento histórico em que cada unidade aderiu ao Estado central.
Sobre a Bolívia, já
vimos que Gilmar Mendes (erroneamente chamado de Gilmar Dantas pelo notório cronista
político Ricardo Noblat, por razões que prefiro ignorar), não sabe nada, nem o
nome da sua capital. Já sobre a Venezuela, teríamos que ocupar outro espaço.
Basta assinalar que quem critica o sistema judicial bolivariano daquele
país-irmão é o ex-juiz Eladio Aponte. Ele diz que o governo Chávez e, agora, o
do presidente Nicolás Maduro, controlam o Judiciário. Eladio Aponte foi
destituído de seu cargo e saiu da Venezuela porque descobriu-se que havia dado
um documento de identidade governamental, usado apenas por autoridades, a um
tal Walid Makled, narcotraficante que foi preso na Colômbia em 2010 e depois
extraditado para a Venezuela. Makled é, inclusive procurado pela polícia dos
Estados Unidos. Como se vê, o crítico da justiça bolivariana não tem as melhores
credenciais. E parece que na Venezuela a Justiça funciona até contra banqueiros.
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