José Manuel Pureza –
Diário de Notícias, opinião
O ódio contra a
esquerda tem uma nova moda: acusar a esquerda de odiar. Com intensidades
diferentes, instalou-se para os lados da direita uma barragem discursiva que
recrimina à esquerda a suposta responsabilidade de estar a crispar a vida
política portuguesa, de demonizar sem tolerância, de, no limite, obedecer a um
DNA de eliminação do outro diferente. Não me detenho em nenhum dos escritos
concretos que deram voz nos últimos dias a esta ofensiva para não gastar espaço
com minudências. E muito menos cuidarei da relação mal resolvida de alguns dos
seus autores com os fantasmas do seu passado. Quero ir ao que realmente
importa: os dois traços mais marcantes desta nova - e afinal tão velha -
retórica moral da direita.
O primeiro é o do
branqueamento da História. A direita tem história atrás de si, como a esquerda
a tem. Cada um aceita e honra as heranças que quer e faz as ruturas que faz.
Pelo meu lado, sei que quer a desumanidade das engenharias sociais de qualquer
natureza quer o cinismo da ausência de poder regulador que sanciona a exclusão
de quem não tem poder estão ambas no avesso de toda a emancipação. E sei, por
isso, que a esquerda não pode ser complacente nem com uma nem com outra. Ou não
será esquerda. Quanto à direita, essa que agora brande as espadas do humanismo
tolerante e liberal - com a maior e mais violenta das intolerâncias,
sublinhe-se - tem na sua genealogia recente desumanidades gigantescas, desde o
colonialismo à preservação guerreira de poderosos interesses económicos onde
quer que seja, passando pela desregulação produtora de miséria e de desespero
em massa. São heranças que não são disfarçáveis e que ou se aceitam ou se
repudiam.
Mas, para lá das
heranças alheias do passado, há os comportamentos próprios do presente. A
direita que critica, como virgem ofendida, a demonização de adversários
políticos individuais, pratica convictamente a demonização anónima de massas
humanas. Tirar-lhes o nome e o rosto - como aos funcionários públicos acusados
de serem o cancro da sociedade por não aceitarem ser despedidos, ou aos pais
acusados de, pela sua resistência à retirada de direitos, serem os carrascos do
mundo do trabalho dos filhos, ou aos beneficiários de políticas de combate à
pobreza, referidos como preguiçosos, vigaristas e párias da sociedade - é aliás
elemento maior dessa brutalidade. Brutalidade contra um é horror, brutalidade
contra muitos sem nome e sem rosto é "a difícil arte de governar".
Essa é a cínica perspetiva moral da direita.
O segundo traço
deste discurso moral da direita é o descaramento. No preciso momento em que a
direita carrega sem piedade sobre as vidas já quase impossíveis da esmagadora
maioria das pessoas, em que atira desapiedadamente para o desespero
trabalhadores, pequenos empresários e reformados sacrificando-os à salvação de
bancos com administrações irresponsáveis e ruinosas, em que empurra para a
emigração milhares de jovens altamente qualificados, em que envolve todas estas
suas escolhas de penalização dos mais frágeis no celofane da inevitabilidade e
da racionalidade gestionária, neste preciso momento, a direita vem reivindicar
a sua nobreza de sentimentos e a conveniência de reações suaves e fleumáticas.
Ao transformar as pessoas em objetos de experimentação de receitas ideológicas
de redenção social e económica - para mais, quando estas já provaram que
resultam justamente no contrário do que anunciam - exercendo sobre elas uma
violência imensa, só por suprema ironia a direita pode clamar por política de
salão como resposta.
Sou dos que, com
Mia Couto, acreditam que "contra factos só há argumentos". É essa
tenacidade de argumentar e de resistir aos factos que quer consumados que a
direita não perdoa. Chama-lhe arrogância. Eu chamo-lhe lucidez.
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