Pedro Marques Lopes
– Diário de Notícias, opinião
Rui Machete não
disse inverdades, não cometeu incorrecções factuais, não teve afirmações menos
felizes. Rui Machete mentiu. Pôs aquela cara de enfatuado e aquele ar de quem
pensa estar acima da ignorante plebe, e mentiu com quantos dentes tem na boca.
Aldrabou os angolanos, aldrabou os portugueses, aldrabou toda a gente quando
disse conhecer pormenores de assuntos em segredo de justiça. Mentiu
descaradamente e sem hesitações quando afirmou ter pedido informações ao
Ministério Público. Mentiu chamando mentirosa à procuradora-geral. Também
podíamos pôr a hipótese de ser Joana Marques Vidal quem mentiu. Mas,
convenhamos, entre a procuradora e um senhor que se esqueceu de referir que
tinha sido accionista de uma organização a que pertencia, e até aos órgãos
sociais, e que lhe pagava em notas ou em seguros de vida, talvez me incline a
pensar que o mentiroso nesta história é o Dr. Machete. Ou então Machete disse a
verdade.
Com o interesse
nacional em vista, resolveu insinuar que violava o princípio da separação de
poderes. No fundo, para sossegar um país estrangeiro ou parte da sua elite
política e económica, que segundo o ministro é do interesse nacional acalmar,
decidiu dar a entender que mandava às malvas um dos mais sagrados pilares do
Estado de Direito - um dos decisivos para separar uma autocracia de uma
democracia. O Dr. Machete pensou e perguntou-se: "Devo sugerir que no meu
país não temos de facto um Estado de Direito, devo dar a entender que um membro
do poder executivo talvez possa interferir num processo judicial ?"
"Posso andar a dizer que peço informações sobre processos em segredo de
justiça e depois revelá-los publicamente?" Claro que sim, deve ter sido a
resposta da consciência do Dr. Machete, cheio de fervor nacionalista. Tendo
possivelmente em mente as palavras do primeiro-ministro acerca da Constituição,
deve ter pensado: "Quantos empregos, afinal, deu o princípio da separação
de poderes aos portugueses?" "Em que é que a não violação do crime de
segredo de justiça contribui para o decréscimo do défice?" Convém
salientar, o Dr. Machete disse, no fundo, ser cúmplice num eventual crime de
violação do segredo de justiça, que colaboraria activamente numa possível
interferência do poder executivo no judicial, e, indirectamente, acusou o
Ministério Público de colaborar nessas malfeitorias. Não foi em vão, aliás, que
a procuradora foi tão célere a desdizer o ex-colaborador simultâneo de vários
bancos e de outras empresas. Um verdadeiro homem dos setenta instrumentos.
A dúvida, em
resumo, é: pode um Governo ter um ministro que mente sobre o limite dos seus
poderes, que mente sobre a acção do Ministério Público, que mente aos
portugueses e aos nossos mais relevantes parceiros diplomáticos? Ou pode um
Governo ter um ministro que diz interferir no poder judicial e que afirma
praticar crimes de violação do segredo de justiça?
Já sabemos que
mentir despudoradamente não faz ninguém sair deste governo. Por exemplo, o
co-primeiro-ministro Portas veio dizer no dia 3 de Outubro que já não havia
mais medidas de austeridade. No domingo, através da TSF, ficámos a saber que se
decidiu tirar dinheiro até aos viúvos e aos órfãos. Portas, que já não tem mais
vergonha na cara para perder, disse que naquele dia ainda não sabia bem como
seria o desenho da medida... - o outro co-primeiro-ministro, Passos Coelho,
veio logo avisar para o choque de expectativas e soube-se, uns dias depois, que
os funcionários públicos vão ter mais um corte de dez por cento nos ordenados;
esta guerra entre os dois cônsules teria até piada se não fosse trágica.
Exemplos das mais
delirantes mentiras não faltariam. Sugerir a Passos Coelho que talvez não fosse
boa ideia manter um ministro que despreza pilares fundamentais da democracia
também não teria qualquer efeito. Passos Coelho é o cavalheiro que disse que a
Constituição não dá empregos, que não se importa de ouvir entidades
estrangeiras a atacar as nossas instituições, que diz sem mexer o sobrolho que
iremos perder soberania, que está tão confuso sobre os seus poderes e o seu
papel que confunde o país com ele próprio quando diz que o fracasso dele será o
de Portugal. Assim uma espécie Passos XIV, L"Etat cest moi.
Pensando bem, a
falta de vergonha, o desplante que Machete exibiu na Assembleia da República, a
ausência de competência, o desprezo por valores fundamentais, não surpreende
ninguém. É só mais um exemplo do irregular funcionamento das instituições. O
Presidente da República está bem, obrigado.
(Por decisão
pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico)
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