Vicente Jorge Silva – Sol, opinião
Já pensava ter
visto tudo, mas estava enganado. Já percebera que este Governo, moldado na sua
origem pela subserviência total perante a troika, conduzia paulatinamente o
país para um desastre sem remédio, mas estava talvez longe de perceber toda a
dimensão da tragédia.
Já concluíra que a
dissimulação, a mentira, a falta de vergonha e a cegueira política se tinham
tornado uma espécie de segunda natureza do actual Executivo, mas não me
atrevera a imaginar que a indignidade anti-social – e, sublinhe-se, antinacional
– do seu comportamento assumisse as escandalosas proporções que agora se
tornaram absolutamente indisfarçáveis.
Não, nunca pensei
que a paz de consciência com que o Governo convive com os seus ataques
implacáveis aos direitos sociais mais elementares – e criando sucessivos factos
consumados contra quem não pode defender-se, como acaba de acontecer com as
pensões de sobrevivência – chegasse a um ponto de insensibilidade e má-fé, como
justamente lhe chama Pacheco Pereira, que desafia todos os limites da decência.
Já não basta clamar pelo direito à indignação, quando o caminho por onde nos
levam só pode conduzir à revolta.
Na passada
quarta-feira, numa conferência da AIP, horas antes de ser entrevistado por um
painel de cidadãos na RTP, o primeiro-ministro veio esclarecer o que
sibilinamente referira no dia anterior como um possível «choque de
expectativas» suscitado pelo Orçamento do Estado para 2014.
Afinal, numa
ostensiva desautorização da retórica apaziguadora de Paulo Portas no
encerramento dos últimos exames da troika – embora logo seguida pelo ataque às
pensões de sobrevivência, o que até motivou uma rara reacção oficial da
hierarquia católica –, o primeiro-ministro desfez, com uma frieza de robô sem
pinga de sangue humano, as ingénuas expectativas sobre o não agravamento das
medidas de austeridade já anunciadas para 2014.
Não, o pior ainda
está para vir – e é inevitável. Porque esse é o preço de ganharmos a confiança
dos nossos credores e dos mercados, porque afinal os juros dos empréstimos que tornam
a nossa dívida insustentável (e a ruína do país irremediável) não são
negociáveis e, pelos vistos, até são compreensivos e piedosos.
Segundo Passos
Coelho, qual alter-ego da troika, o Estado está «a pagar os juros que
praticamente são suportados pelo mecanismo que transfere o dinheiro». Mais:
«Portugal já enfrenta hoje, por via do financiamento oficial, os juros mais
baixos de financiamento da dívida pública de que tem memória». E mais ainda:
«Quando regressarmos a mercado, a pleno mercado, não defrontaremos, com
certeza, juros mais baixos». Então qual é a pressa para nos libertarmos deste
abençoado protectorado que nos concede juros mais baixos e retomarmos uma
soberania que fará de nós ainda mais miseráveis e estrangulados pelos juros do
que estamos? Que soberania será essa?
O que espanta mais
em Passos Coelho não é apenas a absoluta complacência e rendição aos
constrangimentos externos, é o alinhamento total do seu raciocínio com a
irracionalidade especulativa dos predadores financeiros e, no fundo, com a
punição de que Portugal está a ser alvo pelos credores internacionais. Temos de
reduzir o stock da dívida acumulada, porque não podemos pedir a quem nos
empresta dinheiro que «vá ao banco endividar-se em nosso nome». Para o nosso
patriótico primeiro-ministro não se coloca a questão de a estratégia seguida
pelo Governo ter impedido – como se comprovou até agora – a redução desse stock
da dívida, mas, pelo contrário, promovido o seu agravamento até estarem
exauridos todos os recursos nacionais e consumado definitivamente o
empobrecimento do país. Não é simplesmente aterrador sermos governados por quem
pensa de forma tão primária, obtusa e manifestamente contrária aos interesses
nacionais?
Mas este é o mesmo
Governo que admite manter como ministro dos Negócios Estrangeiros uma
personagem que, além das repetidas ocultações e mentiras sobre a sua relação
com o glorioso BPN (será estranho ao stock da dívida acumulada e paga por todos
os contribuintes?), acaba de expor Portugal a uma das maiores vergonhas de que
há memória ao pedir desculpa na rádio de um país estrangeiro por investigações
a cargo do Ministério Público português. «Uma frase menos feliz», sentenciou
Passos Coelho, assumida pelo ministro em inquérito parlamentar…
Com que moral um
Governo que expõe uma imagem tão degradante de indecência política se permite
destruir as esperanças de vida de tantos portugueses e os próprios fundamentos
de sobrevivência do país? É simplesmente intolerável – e revoltante.
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