quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Brasil: A CONSTRUÇÃO DA REPÚBLICA E A AÇÃO PENAL 470

 


A lição de que não é possível subverter direitos e garantias apenas pelo furor de punir, que constou do voto de Celso de Mello, deverá ter sido aprendida.
 
Fabio de Sá e Silva (*) – Carta Maior
 
O julgamento da ação penal 470, conhecida como ação do mensalão, será retomado esta semana. Desta vez, os Ministros apreciarão novos embargos de declaração, ou seja, pedidos para que esclareçam pontos omissos, obscuros, ou contraditórios na decisão que proferiram.

Uma forte possibilidade, dizem analistas com conhecimento sobre o funcionamento da Corte, é que os Ministros rejeitem esses recursos, argumentando que são meramente protelatórios – ou seja, que foram apresentados apenas com a finalidade de ganhar tempo. Como consequência, o Tribunal poderá determinar o início do cumprimento das penas (ou seja, a prisão) – mesma solução dada há alguns meses no caso de Natan Donadon.

Exceção a esse cenário seriam apenas os réus que ainda têm direito aos recursos de embargos infringentes, para os quais, assim, a decisão ainda não alcançou o chamado trânsito em julgado. Mas a depender do Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, até mesmo esses réus já poderiam iniciar o cumprimento das penas. É que nem todas as condenações que sofreram poderão ser rediscutidas quando da apreciação dos tais embargos infringentes.

Se qualquer dessas apostas se realizar, o país assistirá a expedição dos mandados de prisão exatamente na semana em que o Brasil comemora os seus 125 de República. Haverá nisso algo além de mera coincidência?

Ao lado da ideia de governo instituído pelo povo, ao contrário da Monarquia, o conceito de República remete, no pensamento político corrente, a um modo de vida político baseado na primazia do interesse comum.

A realização desse projeto, por sua vez, pode ser pensada sob duas perspectivas. Sob uma perspectiva positiva, ela estaria fundada em instituições e processos voltados a propiciar debates e deliberações, dos quais uma noção compartilhada de interesse comum emergiria com mais clareza e adequação aos dilemas sociais de cada momento. Sob uma perspectiva negativa, ela estaria fundada em instituições e processos que não necessariamente propiciam a emergência daquela noção compartilhada de interesse comum, mas ao menos evitam que noções particularistas se sobreponham às demais.

Na primeira perspectiva, parte-se do pressuposto de que uma comunidade política é capaz de chegar a entendimentos vinculantes – pela forte aderência a tradições, para conter ameaças externas, ou pela capacidade de deliberação. Na segunda perspectiva, parte-se do pressuposto de que entendimentos vinculantes são difíceis de alcançar e, por isso, é a garantia de tensão permanente entre interesses diversos e, no mais das vezes, opostos, sem a sobreposição de uns pelos outros, que dá à experiência de uma comunidade política ocaráter de republicana.

A promulgação da Constituição de 1988 ofereceu importante contribuição para a realização histórica de um projeto republicano, segundo qualquer das perspectivas acima retratadas. Além de estabelecer a República como forma de governo e de criar diversas instituições que balizariam o exercício do poder em sentido congruente com a busca de um “interesse comum”, a Carta criou um regime de direitos e garantias fundamentais que limitam o arbítrio e protegem interesses. Posições majoritárias, portanto, necessitariam mais do que a força para ganharem legitimidade.

Sob esse ponto de vista, a contribuição da ação penal 470 para a construção da República no Brasil parece ser, até agora, bastante ambivalente.

A animar-nos otimismo, importa registrar que os Procuradores da República que se sucederam à frente do caso – Antonio Fernando de Souza, Roberto Gurgel e, agora, Janot –, foram nomeados por Lula e Dilma em respeito à independência do Ministério Público em relação à chefia do executivo. Todos foram os primeiros da lista tríplice encaminhada pela carreira e, segundo dizem as evidências disponíveis, tiveram plena liberdade para conduzir as investigações e a instrução do processo, sem qualquer interferência política no sentido de “engavetamento”.

A existência de réus regularmente processados a despeito da proeminência política de que gozam nos partidos da base governista – mais uma vez sem pressões para “engavetamento” – é outro indicador favorável do caso. O mesmo se aplica ao poder econômico dos sujeitos que, segundo a denúncia, integraram o chamado “núcleo financeiro” do esquema, todos defendidos por advogados de elite, incluindo dois ex Ministros da Justiça nos governos Lula e FHC. Poder político – ao menos em uma de suas formas – e dinheiro, em suma, parecem não ter traçado diferença entre réus e seus concidadãos; ao mesmo tempo em que se deu importante vigor ao ideal de responsabilização dos agentes envolvidos na condução de negócios e recursos públicos.

Mas o julgamento da ação penal 470 também traz outras histórias, que convém não varrer para baixo do tapete.

O Tribunal acolheu acusações que, na observação crítica do jornalista Paulo Moreira Leite, foram mais numerosas e audaciosas que as provas. Baseou suas decisões em tese nova e polêmica – o domínio do fato –, articulada em termos que até hoje não foram bem digeridos pela comunidade jurídica brasileira, como na afirmação de Fux de que, “em certos casos, é o acusado que tem que demonstrar sua inocência”, ou na de Carmen Lucia, para quem “mesmo sem haver provas contra um dos acusados, é possível condená-lo”.

O Tribunal ainda foi objeto de intensa cobertura do que o mesmo Moreira Leite chamou de “opinião publicada”, o que ensejou a estigmatização de Ministros e posições, como se a defesa de um princípio ou dispositivo jurídico pudesse ser tomada como sinal de fraqueza moral do interlocutor. Configurou-se ali, afinal, uma arena na qual um certo ponto de vista necessariamente teria de prevalecer, fosse pela incapacidade de deliberação qualificada entre os Ministros, fosse pela frequente relativização, por parte destes, de princípios jurídicos (e morais) que, teoricamente, deveriam dar unidade e – por que não dizer? – qualidade republicana à prática judiciária.

Mas a construção da República felizmente não se encerra em eventos, o que, no longo prazo, terá sido, afinal, o sentido histórico do julgamento da ação penal 470. É na solidez de instituições que – para utilizar uma expressão cara ao republicanismo – capitalizem as virtudes e que expurguem os vícios desse processo que pode residir, mais uma vez, alguma esperança para o futuro.

A postura implacável afirmada pelo Tribunal, assim, deverá persistir em casos semelhantes – e na pauta do Tribunal estão outros mensalões a aguardar esse sinal de coerência. A lição de que não é possível subverter direitos e garantias apenas pelo furor de punir, que constou expressamente do voto em que Celso de Mello definiu a admissibilidade dos infringentes, deverá ter sido aprendida. O judiciário como um todo – não apenas a cúpula, em casos que aparecem episodicamente em rede nacional – deverá ter sido mais capaz de contribuir para o combate à corrupção, o que inclui, por óbvio, a punição aos corruptores.

Sem que se verifiquem essas e outras condições, muitas das quais apenas uma reflexão mais detida e afastada no tempo e no espaço permitirá consolidar, as possíveis decisões desta semana na ação penal 470 e a celebração dos 125 anos de República não terão sido apenas uma mera coincidência, como terão sido, ao contrário, uma coincidência infeliz.

(*) PhD em Direito, Política e Sociedade pela Northeastern University (EUA), Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e Professor substituto de Teoria Geral do Direito da Universidade de Brasília. As opiniões deste artigo são de caráter estritamente pessoal

Créditos da foto: Valter Campanato/ABr
 

Sem comentários:

Mais lidas da semana