Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
As dúvidas em torno
da melhor data para a homenagem a Ramalho Eanes ilustram bem o seu percurso
político. E que se resume neste facto: foi eleito para um primeiro mandato como
candidato da direita e para o segundo como candidato da esquerda. O papel que teve
no 25 de Novembro marcaria o seu próprio papel na construção da democracia. Se
o tornava no candidato natural daquilo a que agora se chama "arco da
governação", permitia, como moderado, que fizesse pontes com o resto da
esquerda. Até porque, apesar do seu discurso público, a cúpula do PCP viu o 25
de Novembro como uma inevitabilidade. E viu muito bem. O 25 de Novembro travou
um processo revolucionário que já perdera a sua base social de apoio, a sua
legitimidade política e até a sua direção, que se limitava a tentar acompanhar
os acontecimentos. Que se encaminhava para um confronto de consequências
imprevisíveis mas seguramente perigosas, que poderia terminar ou numa guerra
civil ou num golpe da direita autoritária, com a ilegalização do Partido
Comunista. Vários dados indicam que Álvaro Cunhal terá aceite não resistir em
troca da integração segura dos comunistas no sistema democrático. Em tudo isto,
teve um papel central o mais clarividente dos militares de Abril: Melo Antunes.
Do 25 de Novembro
nascia uma figura política que, pairando sobre os lideres dos quatro grandes
partidos fundadores da democracia portuguesa, iria ter um papel central na vida
politica da década que se seguiu. A sua presidência correspondeu ao período de
"normalização" dum país que ainda estabilizava a forma do seu regime
e o seu sistema partidário. Nestas circunstâncias, o presidente tinha um papel
necessariamente activo. E essa presidência foi marcada por um conflito politico
e de personalidades quase permanente com Mário Soares. Uma inimizade profunda
que determinou muitas das escolhas politicas de Ramalho Eanes, sobretudo na
fase final da sua carreira política. Da aliança contranatura com o PCP até à
curta aventura do PRD. Resumindo: apesar da actual canonização, Eanes foi tudo menos
um politico consensual. Todos os atores políticos fundamentais estiveram, pelo
menos num determinado momento, contra ele.
É por ignorar o seu
lado político que, apesar da data escolhida, a homenagem a Ramalho Eanes tem
uma dimensão quase exclusivamente ética. Eanes sempre teve, no seu
comportamento enquanto cidadão e homem público, uma irrepreensível correção. De
que nunca fez muita publicidade. Não deixa de ser interessante, aliás, o
contraste ente Eanes e o atual Presidente da República. Onde num encontramos
rigor na ética republicana, noutro encontramos a gestão de interesses privados,
próprios ou de terceiros. Onde num encontramos discrição e humildade, noutro
encontramos a exibição arrogante duma suposta superioridade moral que não
encontra adesão à realidade. O que num é carácter, noutro é propaganda.
Ainda assim, não
deixa de ser sintomático do estado de espirito da Nação, que seja a dimensão
ética dum político, mais do que os seus pontos de vista e as suas soluções para
sair desta crise, que mobiliza os cidadãos. E que escolha uma figura do passado
(Eanes explicou, muitissimo bem, que tem presente na cidadania mas não tem
futuro na politica), que não poderá fazer desta mobilização nada de
substancial. Não é verdade o que já ouvi por aí: que o País está à procura dum
salvador. Isso implicaria uma réstea de esperança que não encontro na sociedade
portuguesa. Trata-se do mais puro dos sebastianismos: uma esperança quase
platónica, que alimenta, através de figuras do passado, uma nostalgia de alguma
confiança no poder político. Onde a dimensão ética é a mais valorizada.
A escolha da figura
de Eanes para este exercício nostálgico, sendo absolutamente justa, tendo em
conta a sua irrepreensível conduta moral, diz bem de Eanes mas mal de Portugal.
Um país que, vivendo uma profunda crise económica, social e política, procura
santos no seu passado (Eanes, mas também Cunhal), despindo-os do conteúdo
político que tiveram, é um país bloqueado na sua capacidade de se reconstruir.
É um país sem esperança. Descrente de poder encontrar no presente as respostas
para o seu futuro.
Sem comentários:
Enviar um comentário