Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Entre o relatório
da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e os vários relatórios que o FMI
tem produzido sobre Portugal não há apenas uma diferença de qualidade dos dados
utilizados, que se explica por, no segundo caso, a fonte ter sido um governo
apostado a encontrar em relatórios externos a legitimação das suas próprias
políticas. Não há apenas uma diferença da razoabilidade e moderação das
propostas apresentadas. Há uma diferença de perspectiva. O que nos leva, antes
de tudo, a concluir que, ao contrário do que nos é dito, não estamos perante
inevitabilidades económicas e financeiras, em que de um lado está quem sabe
fazer contas e do outros uns caloteiros irresponsáveis. Estamos perante
escolhas políticas que resultam de diagnósticos e soluções diferentes.
É esta diferença
que leva a que, perante a mesma realidade, a troika tenha proposto a redução de
um dos salários mínimos mais baixos da Europa e a OIT tenha defendido o aumento
desse mesmo salário mínimo.
A troika e o
governo acreditam que reduzindo drasticamente os custos de trabalho conseguem
um dois em um: contrair violentamente a economia, reduzindo o consumo interno
(e para isso acrescentaram outros inibidores de consumo, como o aumento do IVA)
e as importações. E garantirem a competitividade através de salários baixos
(apenas possíveis com a forte pressão dum desemprego elevado, duma forte
precariedade laboral e duma redução dos salários no sector público), aumentando
as exportações. Esta estratégia é, para dizer o mínimo, arrojada e nunca foi
tentada com sucesso.
Pelo contrário, a
OIT defende uma solução mais convencional e com provas dadas: aumentar os
salários mais baixos, reduzindo as desigualdades salariais e animando o mercado
interno. Com um mercado interno a crescer, reduzir o desemprego e as despesas
sociais e aumentar as receitas fiscais. Tudo o que permitiria começar a sair da
crise e, fora do sufoco, modernizar a nossa economia e vocacionar as nossas
empresas para a produção de bens transacionáveis, virados para a exportação e
com valor acrescentado (coisa que as propostas de Portas de privatizar bens não
transacionáveis como a educação e saúde contraria). E tudo isto exige, a curto
prazo, investimento. Na verdade, é um confronto de perspetivas com bastantes
semelhanças com aquele que o Ocidente conheceu nos anos 30. Perspetivas que, no
fundamental, são inconciliáveis.
Mas o mais
perturbante, neste confronto entre as propostas da troika e da OIT, foi a forma
como o governo se pretendeu desenvencilhar dele. Mota Soares, sempre
acompanhado por Cavaco Silva, garantiu que o governo não acredita que a nossa
recuperação se possa basear em salários baixos. É pura e simplesmente mentira.
E para o confirmar basta rever com atenção as declarações de Passos Coelho ao
longo dos últimos dois anos. O que quer dizer o primeiro-ministro quando elogia
o privado por já ter feito o "ajustamento" que falta fazer ao Estado?
O que quis dizer a frase "só vamos sair desta situação empobrecendo"?
O que era a mudança na TSU se não a tentativa de reduzir salários,
transferindo-os para os patrões? E o que é a descida do IRC, mantendo o IRS
altíssimo, senão a repetição da mesma estratégia? E o que foi a subida do IVA
senão um inibidor do consumo? A estratégia de contrair a economia e aumentar as
exportações por via de um ajustamento dos rendimentos dos trabalhadores e dos
custos das empresas com salários já foi explicitamente explicitada pela troika.
E apoiada, com toda a clareza, pelo governo. Não vale a pena mudar de discurso
de cada vez que uma instituição internacional aterra na Portela.
Mota Soares até
pode dizer que, por ele, o salário mínimo subia e que é a troika que não deixa.
Conhecemos mais umas tantas medidas, que, ao contrário desta, até tinham
efeitos orçamentais, que a troika exigia e ficaram pelo caminho porque entravam
nos bolsos errados. A questão é outra: é que a proposta de subir o salário
mínimo não é feita pela OIT apenas em nome da decência. Tem um propósito que é
coerente com todas medidas que são propostas, que passam, entre outras coisas,
por combater a precariedade e a saída de trabalhadores dos processos de
negociação colectiva, que funcionam, pela vulnerabilidade negocial dos
assalariados, como pressão sobre os salários.
Aquele organismo
das Nações Unidas defende que uma política pública adequada poderia criar, nos
próximos dois anos, 108 mil postos de trabalho. O que impulsionaria o PIB em
mais de 2 pontos percentuais (com efeitos imediatos em todos os indicadores que
o têm como referência) e reduziria o desemprego na mesma proporção. E, com tudo
isto, seria possível uma diminuição do rácio da dívida pública/PIB de 5,9
pontos percentuais até 2015. Tudo isto implica menos ambição na redução do
défice a curto prazo, até por ser necessário investimento público. O que
implica que os cortes no Estado devem apenas ser feitos em despesas inúteis ou
ineficazes. O que raio tem tudo isto a ver com o Orçamento de Estado para 2014
ou o vago guião da reforma do Estado? É o oposto.
Mas se
precisássemos de mais provas da falta da seriedade do governo nas reações a
este relatório e à proposta de aumento do salário mínimo, bastaria ouvir as
declarações de Pires de Lima. O ministro da Economia, entusiasmado com um
milagre que a Comissão Europeia já ofuscou, apelou aos privados para aumentarem
eles, sem ser por imposição do Estado, os salários mais baixos. Subitamente os
liberais esquecem-se de tudo o que aprenderam. Se há 16% de desempregados, se
dois terços deles não têm qualquer rendimento, se o governo baixou o subsídio
de desemprego e as prestações sociais, se os salários do Estado desceram, se a
lei laboral é mais flexível e a negociação colectiva abrange menos gente, para
onde pressiona toda a realidade do mercado de trabalho, incluindo a realidade
criada pelo próprio governo? Para uma enorme pressão sobre os salários, que só
não desceram ainda mais porque a lei determina um salário mínimo. E o que nesta
realidade resultou de opções do governo tinha este objetivo: permitir um
suposto ajustamento salarial, ignorando o que a própria OIT explica no
relatório, ao mostrar como os salários portugueses se têm afastado, desde 2000,
da média europeia. Porque aumentaria uma empresa o salário mínimo se tem dez
candidatos prontos a trabalhar por menos do que isso? Porque Pires de Lima lhes
pede com jeitinho?
Em vez de
governantes passámos a ter conselheiros morais. E ainda por cima sonsos que se
escondem atrás da troika para justificar o que fizeram nos últimos dois anos
com toda a convicção. O problema é que até eles já perceberam o desastre que
provocaram. E agora apenas nos podem prometer que, com um programa cautelar de
julho, tudo vai ser diferente. E que não foi Passos Coelho que, no dia da sua
vitória eleitoral, prometeu "surpreender e ir mais além do acordo"
com a troika.
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