quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Portugal: A OIT E A FASE SONSA DO GOVERNO

 


Daniel Oliveira – Expresso, opinião
 
Entre o relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e os vários relatórios que o FMI tem produzido sobre Portugal não há apenas uma diferença de qualidade dos dados utilizados, que se explica por, no segundo caso, a fonte ter sido um governo apostado a encontrar em relatórios externos a legitimação das suas próprias políticas. Não há apenas uma diferença da razoabilidade e moderação das propostas apresentadas. Há uma diferença de perspectiva. O que nos leva, antes de tudo, a concluir que, ao contrário do que nos é dito, não estamos perante inevitabilidades económicas e financeiras, em que de um lado está quem sabe fazer contas e do outros uns caloteiros irresponsáveis. Estamos perante escolhas políticas que resultam de diagnósticos e soluções diferentes.
 
É esta diferença que leva a que, perante a mesma realidade, a troika tenha proposto a redução de um dos salários mínimos mais baixos da Europa e a OIT tenha defendido o aumento desse mesmo salário mínimo.
 
A troika e o governo acreditam que reduzindo drasticamente os custos de trabalho conseguem um dois em um: contrair violentamente a economia, reduzindo o consumo interno (e para isso acrescentaram outros inibidores de consumo, como o aumento do IVA) e as importações. E garantirem a competitividade através de salários baixos (apenas possíveis com a forte pressão dum desemprego elevado, duma forte precariedade laboral e duma redução dos salários no sector público), aumentando as exportações. Esta estratégia é, para dizer o mínimo, arrojada e nunca foi tentada com sucesso.
 
Pelo contrário, a OIT defende uma solução mais convencional e com provas dadas: aumentar os salários mais baixos, reduzindo as desigualdades salariais e animando o mercado interno. Com um mercado interno a crescer, reduzir o desemprego e as despesas sociais e aumentar as receitas fiscais. Tudo o que permitiria começar a sair da crise e, fora do sufoco, modernizar a nossa economia e vocacionar as nossas empresas para a produção de bens transacionáveis, virados para a exportação e com valor acrescentado (coisa que as propostas de Portas de privatizar bens não transacionáveis como a educação e saúde contraria). E tudo isto exige, a curto prazo, investimento. Na verdade, é um confronto de perspetivas com bastantes semelhanças com aquele que o Ocidente conheceu nos anos 30. Perspetivas que, no fundamental, são inconciliáveis.
 
Mas o mais perturbante, neste confronto entre as propostas da troika e da OIT, foi a forma como o governo se pretendeu desenvencilhar dele. Mota Soares, sempre acompanhado por Cavaco Silva, garantiu que o governo não acredita que a nossa recuperação se possa basear em salários baixos. É pura e simplesmente mentira. E para o confirmar basta rever com atenção as declarações de Passos Coelho ao longo dos últimos dois anos. O que quer dizer o primeiro-ministro quando elogia o privado por já ter feito o "ajustamento" que falta fazer ao Estado? O que quis dizer a frase "só vamos sair desta situação empobrecendo"? O que era a mudança na TSU se não a tentativa de reduzir salários, transferindo-os para os patrões? E o que é a descida do IRC, mantendo o IRS altíssimo, senão a repetição da mesma estratégia? E o que foi a subida do IVA senão um inibidor do consumo? A estratégia de contrair a economia e aumentar as exportações por via de um ajustamento dos rendimentos dos trabalhadores e dos custos das empresas com salários já foi explicitamente explicitada pela troika. E apoiada, com toda a clareza, pelo governo. Não vale a pena mudar de discurso de cada vez que uma instituição internacional aterra na Portela.
 
Mota Soares até pode dizer que, por ele, o salário mínimo subia e que é a troika que não deixa. Conhecemos mais umas tantas medidas, que, ao contrário desta, até tinham efeitos orçamentais, que a troika exigia e ficaram pelo caminho porque entravam nos bolsos errados. A questão é outra: é que a proposta de subir o salário mínimo não é feita pela OIT apenas em nome da decência. Tem um propósito que é coerente com todas medidas que são propostas, que passam, entre outras coisas, por combater a precariedade e a saída de trabalhadores dos processos de negociação colectiva, que funcionam, pela vulnerabilidade negocial dos assalariados, como pressão sobre os salários.
 
Aquele organismo das Nações Unidas defende que uma política pública adequada poderia criar, nos próximos dois anos, 108 mil postos de trabalho. O que impulsionaria o PIB em mais de 2 pontos percentuais (com efeitos imediatos em todos os indicadores que o têm como referência) e reduziria o desemprego na mesma proporção. E, com tudo isto, seria possível uma diminuição do rácio da dívida pública/PIB de 5,9 pontos percentuais até 2015. Tudo isto implica menos ambição na redução do défice a curto prazo, até por ser necessário investimento público. O que implica que os cortes no Estado devem apenas ser feitos em despesas inúteis ou ineficazes. O que raio tem tudo isto a ver com o Orçamento de Estado para 2014 ou o vago guião da reforma do Estado? É o oposto.
 
Mas se precisássemos de mais provas da falta da seriedade do governo nas reações a este relatório e à proposta de aumento do salário mínimo, bastaria ouvir as declarações de Pires de Lima. O ministro da Economia, entusiasmado com um milagre que a Comissão Europeia já ofuscou, apelou aos privados para aumentarem eles, sem ser por imposição do Estado, os salários mais baixos. Subitamente os liberais esquecem-se de tudo o que aprenderam. Se há 16% de desempregados, se dois terços deles não têm qualquer rendimento, se o governo baixou o subsídio de desemprego e as prestações sociais, se os salários do Estado desceram, se a lei laboral é mais flexível e a negociação colectiva abrange menos gente, para onde pressiona toda a realidade do mercado de trabalho, incluindo a realidade criada pelo próprio governo? Para uma enorme pressão sobre os salários, que só não desceram ainda mais porque a lei determina um salário mínimo. E o que nesta realidade resultou de opções do governo tinha este objetivo: permitir um suposto ajustamento salarial, ignorando o que a própria OIT explica no relatório, ao mostrar como os salários portugueses se têm afastado, desde 2000, da média europeia. Porque aumentaria uma empresa o salário mínimo se tem dez candidatos prontos a trabalhar por menos do que isso? Porque Pires de Lima lhes pede com jeitinho?
 
Em vez de governantes passámos a ter conselheiros morais. E ainda por cima sonsos que se escondem atrás da troika para justificar o que fizeram nos últimos dois anos com toda a convicção. O problema é que até eles já perceberam o desastre que provocaram. E agora apenas nos podem prometer que, com um programa cautelar de julho, tudo vai ser diferente. E que não foi Passos Coelho que, no dia da sua vitória eleitoral, prometeu "surpreender e ir mais além do acordo" com a troika.
 

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