segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

AINDA OS VOTOS DE PORTUGAL NA ONU

 

Daniel Oliveira – Expresso, opinião
 
Na sexta-feira escrevi que "uma resolução de solidariedade com a luta do ANC e dos sul-africanos, que incluía um apelo para a libertação incondicional de Mandela", votada da Assembleia Geral da ONU, em 1987, teve o voto contrário de Portugal. Tal informação confirmou-se. Desconhecia o sentido do voto português noutras resoluções do mesmo dia o que, tenho de reconhecer, tornou o meu texto incompleto e facilmente sujeito a crítica. Uma delas (a resolução "G"), que é mais genérica e de longe a mais recuada das sete resoluções votadas (uma oitava passou sem votos) nesse dia sobre a África do Sul, terá contado com o voto favorável de Portugal.
 
Segundo responsáveis de então por estes votos contraditórios, esta discrepância terá acontecido por a resolução "A" defender a luta armada. Esta justificação, então apresentada, não faz qualquer sentido. A resolução não defende a luta armada. Muito menos a considera, como terá afirmado a declaração de voto portuguesa, "como único meio de corrigir situações de injustiça". Apena reafirma a "legitimidade da luta do povo da África do Sul e o seu direito a escolher os meios necessários, incluindo a resistência armada, para conseguir a erradicação do apartheid".
 
A legitimidade do uso das armas para impor a democracia e erradicar um regime ilegítimo não é matéria de discussão e é improvável que Portugal a pusesse em causa. A nossa democracia foi imposta pelo uso das armas e apoiámos, no período logo a seguir, o direito dos timorenses a usarem a resistência armada. O que corresponde, aliás, ao que se pode ler na nossa Constituição, relativa às relações internacionais, onde Portugal reconhece o direito dos povos "à insurreição contra todas as formas de opressão". Se assim não fosse, Portugal seria o primeiro país radicalmente pacifista à face da terra, que negava o uso da força armada para impor a democracia e um poder legitimo. A posição constante naquela moção é a genericamente aceite em todos os casos semelhantes e foi, aliás, aquela que a ONU adoptou em relação a todos os países colonizados, por exemplo. Não é por acaso que a posição portuguesa foi tão minoritária naquele voto.
 
Mas para provar a falta de validade deste argumento não precisamos de tanto debate. Basta olhar para as restantes votações desse mesmo dia. Portugal não votou apenas contra a resolução "A", mas também contra as resoluções "C" (que apelava a vários países, incluindo os EUA e o Reino Unido, a apoiarem as sanções) e "D" (que apelava ao fim da colaboração militar entre Israel e o regime sul-africano). E absteve-se nas resoluções "B" (que reafirmava e especificava sanções à África do Sul), "E" (que solicitava financiamento para o Comité Especial Contra o Apartheid) e "F" (que reforçava as medidas para o embargo de petróleo ao regime sul-africano). Das sete resoluções votadas nesse dia, Portugal apenas aprovou uma. E nenhuma das outras cinco resoluções que não contaram com o seu apoio fazia qualquer referência a qualquer tipo de luta armada.
 
A resposta para este comportamento é simples e, como fica demonstrado, não tem qualquer relação com um suposto e estranho purismo português em relação ao uso das armas para impor regimes democráticos e legítimos: Portugal só votou a resolução que não correspondia a nenhuma ação ou decisão concreta de apoio à luta contra o apartheid e que se ficava por meros apelos genéricos. As razões conhecemos e até podem ser aceites por alguns: a situação da comunidade portuguesa na África do Sul (que referi no meu texto), a relação com outros aliados preferenciais (EUA, Reino Unido e Israel) e o absoluto alinhamento, em política externa, com as posições britânicas. Todos eles confirmados por vários ex-embaixadores na ONU, que reconhecem que o princípio geral era "não fazer ondas". Fingir que o problema era a "luta armada" é um ato de cinismo e uma mentira. Uma mentira que outras votações noutros momentos (dei o exemplo referido por Ana Gomes, numa resolução sobre as crianças vítimas do apartheid) também desmentem.
 
Como se vê por este conjunto de votos, a posição do governo português era do mínimo de comprometimento possível com o movimento externo e interno de luta contra o apartheid e duma solidariedade quase nula com o ANC de Nelson Mandela. Vale a pena, a este propósito, ler o texto do ex-secretário de Estado da Cooperação João Cravinho, no seu facebook (sem link) sobre as relações de Portugal com o regime sul-africano. E esse era o sentido fundamental do meu texto que as votações daquele dia não só não desmentem como confirmam, tal como aqui demonstrei. E não há três dias de luto nacional que escondam este facto histórico. Ainda bem que a posição portuguesa mudou. Pena que tenha mudado quando ela já é indiferente. Porque insisto nisto? Porque para aprender com o exemplo dos outros temos de reconhecer os momentos em que não soubemos nós próprios estar à altura da sua coragem. Apenas isso. Oportunismo e aproveitamento político é mudar a história para ficar bem nela.
 
Depois de o ter feito no Expresso em papel, escreverei aqui, amanhã, sobre Mandela e o seu legado. Aquele que parece ser ignorado por tanta gente, incluindo o primeiro-ministro de Portugal, que recordou, em nota oficial, o "lider da resistência não violenta ao regime de segregação racial". É infinita a ignorância.
 

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