Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Na sexta-feira
escrevi que "uma resolução de solidariedade com a luta do ANC e dos
sul-africanos, que incluía um apelo para a libertação incondicional de
Mandela", votada da Assembleia Geral da ONU, em 1987, teve o voto
contrário de Portugal. Tal informação confirmou-se. Desconhecia o sentido do
voto português noutras resoluções do mesmo dia o que, tenho de reconhecer,
tornou o meu texto incompleto e facilmente sujeito a crítica. Uma delas (a
resolução "G"), que é mais genérica e de longe a mais recuada das
sete resoluções votadas (uma oitava passou sem votos) nesse dia sobre a África
do Sul, terá contado com o voto favorável de Portugal.
Segundo
responsáveis de então por estes votos contraditórios, esta discrepância terá
acontecido por a resolução "A" defender a luta armada. Esta justificação, então apresentada, não faz
qualquer sentido. A resolução não defende a luta armada. Muito menos a
considera, como terá afirmado a declaração de voto portuguesa, "como único meio de corrigir situações de injustiça".
Apena reafirma a "legitimidade da luta do povo da África do Sul e o seu
direito a escolher os meios necessários, incluindo a resistência armada, para
conseguir a erradicação do apartheid".
A legitimidade do
uso das armas para impor a democracia e erradicar um regime ilegítimo não é
matéria de discussão e é improvável que Portugal a pusesse em causa. A nossa
democracia foi imposta pelo uso das armas e apoiámos, no período logo a seguir,
o direito dos timorenses a usarem a resistência armada. O que corresponde,
aliás, ao que se pode ler na nossa Constituição, relativa às relações
internacionais, onde Portugal reconhece o direito dos povos "à insurreição
contra todas as formas de opressão". Se assim não fosse, Portugal seria o
primeiro país radicalmente pacifista à face da terra, que negava o uso da força
armada para impor a democracia e um poder legitimo. A posição constante naquela
moção é a genericamente aceite em todos os casos semelhantes e foi, aliás,
aquela que a ONU adoptou em relação a todos os países colonizados, por exemplo.
Não é por acaso que a posição portuguesa foi tão minoritária naquele voto.
Mas para provar a
falta de validade deste argumento não precisamos de tanto debate. Basta olhar
para as restantes votações desse mesmo dia. Portugal não votou apenas contra a
resolução "A", mas também contra as resoluções "C" (que
apelava a vários países, incluindo os EUA e o Reino Unido, a apoiarem as
sanções) e "D" (que apelava ao fim da colaboração militar entre
Israel e o regime sul-africano). E absteve-se nas resoluções "B" (que
reafirmava e especificava sanções à África do Sul), "E" (que
solicitava financiamento para o Comité Especial Contra o Apartheid) e
"F" (que reforçava as medidas para o embargo de petróleo ao regime
sul-africano). Das sete resoluções votadas nesse dia, Portugal apenas aprovou
uma. E nenhuma das outras cinco resoluções que não contaram com o seu apoio
fazia qualquer referência a qualquer tipo de luta armada.
A resposta para
este comportamento é simples e, como fica demonstrado, não tem qualquer relação
com um suposto e estranho purismo português em relação ao uso das armas para
impor regimes democráticos e legítimos: Portugal só votou a resolução que não
correspondia a nenhuma ação ou decisão concreta de apoio à luta contra o
apartheid e que se ficava por meros apelos genéricos. As razões conhecemos e
até podem ser aceites por alguns: a situação da comunidade portuguesa na África
do Sul (que referi no meu texto), a relação com outros aliados preferenciais
(EUA, Reino Unido e Israel) e o absoluto alinhamento, em política externa, com
as posições britânicas. Todos eles confirmados por vários ex-embaixadores na ONU, que reconhecem que
o princípio geral era "não fazer ondas". Fingir que o problema
era a "luta armada" é um ato de cinismo e uma mentira. Uma mentira
que outras votações noutros momentos (dei o exemplo referido por Ana Gomes,
numa resolução sobre as crianças vítimas do apartheid) também desmentem.
Como se vê por este
conjunto de votos, a posição do governo português era do mínimo de
comprometimento possível com o movimento externo e interno de luta contra o
apartheid e duma solidariedade quase nula com o ANC de Nelson Mandela. Vale a
pena, a este propósito, ler o texto do ex-secretário de Estado da Cooperação
João Cravinho, no seu facebook (sem link) sobre as relações de Portugal com o
regime sul-africano. E esse era o sentido fundamental do meu texto que as
votações daquele dia não só não desmentem como confirmam, tal como aqui
demonstrei. E não há três dias de luto nacional que escondam este facto
histórico. Ainda bem que a posição portuguesa mudou. Pena que tenha mudado
quando ela já é indiferente. Porque insisto nisto? Porque para aprender com o
exemplo dos outros temos de reconhecer os momentos em que não soubemos nós
próprios estar à altura da sua coragem. Apenas isso. Oportunismo e
aproveitamento político é mudar a história para ficar bem nela.
Depois de o ter
feito no Expresso em papel, escreverei aqui, amanhã, sobre Mandela e o seu
legado. Aquele que parece ser ignorado por tanta gente, incluindo o
primeiro-ministro de Portugal, que recordou, em nota oficial, o "lider da
resistência não violenta ao regime de segregação racial". É infinita a
ignorância.
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