Gruas e guindastes
representam mais a China de hoje do que a foice e o martelo. São esses os
grandes símbolos nacionais na atualidade.
Vinicius Wu – Carta
Maior
A política chinesa
é um dos maiores enigmas do mundo contemporâneo. A vitalidade e a estabilidade
do regime comunista, duas décadas após a falência de seus congêneres do Leste
Europeu, seguem intrigando analistas e observadores de diferentes países e
vertentes ideológicas. As questões levantadas a seguir pretendem refletir sobre
a estrutura política que, afinal, dará suporte àquela que será, em breve, a
maior economia do planeta.
Especular sobre o presente e o futuro da nação de 1,3 bilhões de seres humanos é algo tão tentador quanto necessário - ao menos para aqueles que se preocupam com a compreensão do mundo no qual vivemos. Mas, de antemão, é preciso reconhecer que se trata de um terreno arriscado, afinal, a desinformação a respeito da realidade chinesa segue contribuindo para a reprodução de uma série de estereótipos em torno de diagnósticos pouco precisos no Ocidente. Além disso, a experiência nos ensina que análises a respeito da estabilidade de um determinado regime político devem ser cautelosas e pacientes. A história costuma ser bastante irônica com avaliações marcadas por assertivas definitivas e certezas irrevogáveis.
Consideradas essas premissas, é possível iniciar nosso raciocínio a partir da constatação de que o discurso de legitimação do regime transitou, nos últimos anos, do comunismo ao nacionalismo, perfazendo um caminho, aparentemente, sem volta. O partido comunista da China esforça-se, cada vez mais, em ser o partido "da" China.
A mobilização do orgulho chinês está diretamente relacionada à outra fonte fundamental de legitimação do regime que é a euforia diante do êxito econômico da China nas últimas décadas.
De tudo aquilo que se pode observar na China contemporânea, talvez nada parecerá tão óbvio quanto o fato do crescimento e da prosperidade terem se tornado dois dos pilares fundamentais da manutenção da hegemonia do Partido Comunista. Os dirigentes do partido sabem o quanto a satisfação das necessidades materiais dos chineses está diretamente relacionada à estabilidade política do país e, sob esse aspecto, o sistema tem sido extremamente eficiente.
Crescer, enriquecer e ir além do que já conquistaram - enquanto nação ou indivíduos - parece ter se tornado uma verdadeira obsessão nacional. Por toda parte, observa-se uma frenética corrida em direção ao crescimento, apoiado, principalmente, em pesados investimentos em infraestrutura, na expansão da indústria automobilística e na construção civil. Gruas e guindastes representam mais a China de hoje do que a foice e o martelo. São esses os grandes símbolos nacionais na atualidade.
Porém, os constrangimentos à manutenção do atual modelo são visíveis aos olhos do mais distraído observador que caminhe pelas imensas ruas e avenidas da nova China. A saturação das grandes cidades chinesas e o crescimento sustentado por uma matriz energética altamente dependente de carvão e petróleo fez com que alguns dos grandes conglomerados urbanos se transformassem num perturbador pesadelo ambiental.
A sensação que temos ao caminhar pelas ruas de cidades como Beijing, Wuhan ou Xangai nos remete a cenários de filmes de ficção científica da década de oitenta. Quase não se enxerga o céu e o sol nos dias de maior intensidade da poluição atmosférica, e isso pode durar semanas ou até meses. Obviamente, no entanto, que a situação encontra correspondência em diversas outras cidades do mundo, como a Cidade do México, São Paulo, dentre tantas outras. Não se trata de nenhuma exclusividade dos chineses.
De fato, a qualidade de vida nestes centros urbanos tem se deteriorado, ampliando a incidência de doenças respiratórias e outras patologias. O estresse e os transtornos de um trânsito dominado pelo automóvel individual são visíveis a qualquer hora do dia e a qualquer dia da semana, inclusive aos domingos.
Além dos problemas ambientais e urbanos, a nova China também expõe, de forma dramática, as profundas contradições originárias de seus novos padrões de acumulação. A desigualdade social e a concentração de renda são reforçadas - e amplificadas - por uma nova elite exibicionista e hedonista, que começa a constranger o próprio regime com suas extravagâncias.
E, apesar de toda a expansão econômica dos últimos anos, o regime chinês não tem sido capaz de impedir nem mesmo que a miséria chegue às portas da grande praça Tiannamen, no coração de Beinjing. Moradores de rua abrigam-se, durante a noite, nos mesmos corredores que nos levam aos portões da Cidade Proibida, onde o imponente retrato de Mao Zedong parece ser a única herança de um passado marcado pelo culto à personalidade do grande arquiteto da Revolução Chinesa. Há de se reconhecer, porém, que a miséria em Beijing é bem menor do que em outras grandes cidades do mundo ocidental.
Os desafios da China parecem tão grandiosos quanto sua história, sua cultura e seu povo. Ao contrário do que se poderia supor em uma avaliação mais superficial, a elite política do regime parece bem consciente da complexidade de seus problemas e da necessidade de agir de forma contundente. É neste ponto que reside uma das maiores fragilidades de boa parte das análises ocidentais sobre a China que, além de transportarem mecanicamente conceitos completamente estranhos a uma civilização milenar, costumam ser carregadas de pré-conceitos e conclusões precipitadas sobre a elite política que governa o país.
Dessa forma, cumpre ocuparmos algumas linhas para assinalar nossa impressão de que a China possui um regime autoritário e não uma ditadura e que, além disso, os dirigentes do Partido Comunista têm demonstrado uma enorme capacidade em absorver as aspirações de sua complexa sociedade, o que, em grande medida, explica a permanência do regime. Os quadros políticos do PC Chinês debatem e falam abertamente sobre os problemas do país. Isso não ocorre numa ditadura, o que a China, de fato, não é. Esse é um dos elementos a explicar a manutenção do regime de partido único comunista da China.
O regime de Beijing certamente não é uma democracia de tipo ocidental, mas também não estamos tratando de uma ditadura hermética, baseada exclusivamente na força e na coerção de sua população. Esse é um elemento fundamental à compreensão da China contemporânea. Afinal, mesmo um regime autoritário está sujeito a pressões que emergem da sociedade e se vê obrigado a formar alguns consensos em torno dos quais pode organizar sua dominação.
Especular sobre o presente e o futuro da nação de 1,3 bilhões de seres humanos é algo tão tentador quanto necessário - ao menos para aqueles que se preocupam com a compreensão do mundo no qual vivemos. Mas, de antemão, é preciso reconhecer que se trata de um terreno arriscado, afinal, a desinformação a respeito da realidade chinesa segue contribuindo para a reprodução de uma série de estereótipos em torno de diagnósticos pouco precisos no Ocidente. Além disso, a experiência nos ensina que análises a respeito da estabilidade de um determinado regime político devem ser cautelosas e pacientes. A história costuma ser bastante irônica com avaliações marcadas por assertivas definitivas e certezas irrevogáveis.
Consideradas essas premissas, é possível iniciar nosso raciocínio a partir da constatação de que o discurso de legitimação do regime transitou, nos últimos anos, do comunismo ao nacionalismo, perfazendo um caminho, aparentemente, sem volta. O partido comunista da China esforça-se, cada vez mais, em ser o partido "da" China.
A mobilização do orgulho chinês está diretamente relacionada à outra fonte fundamental de legitimação do regime que é a euforia diante do êxito econômico da China nas últimas décadas.
De tudo aquilo que se pode observar na China contemporânea, talvez nada parecerá tão óbvio quanto o fato do crescimento e da prosperidade terem se tornado dois dos pilares fundamentais da manutenção da hegemonia do Partido Comunista. Os dirigentes do partido sabem o quanto a satisfação das necessidades materiais dos chineses está diretamente relacionada à estabilidade política do país e, sob esse aspecto, o sistema tem sido extremamente eficiente.
Crescer, enriquecer e ir além do que já conquistaram - enquanto nação ou indivíduos - parece ter se tornado uma verdadeira obsessão nacional. Por toda parte, observa-se uma frenética corrida em direção ao crescimento, apoiado, principalmente, em pesados investimentos em infraestrutura, na expansão da indústria automobilística e na construção civil. Gruas e guindastes representam mais a China de hoje do que a foice e o martelo. São esses os grandes símbolos nacionais na atualidade.
Porém, os constrangimentos à manutenção do atual modelo são visíveis aos olhos do mais distraído observador que caminhe pelas imensas ruas e avenidas da nova China. A saturação das grandes cidades chinesas e o crescimento sustentado por uma matriz energética altamente dependente de carvão e petróleo fez com que alguns dos grandes conglomerados urbanos se transformassem num perturbador pesadelo ambiental.
A sensação que temos ao caminhar pelas ruas de cidades como Beijing, Wuhan ou Xangai nos remete a cenários de filmes de ficção científica da década de oitenta. Quase não se enxerga o céu e o sol nos dias de maior intensidade da poluição atmosférica, e isso pode durar semanas ou até meses. Obviamente, no entanto, que a situação encontra correspondência em diversas outras cidades do mundo, como a Cidade do México, São Paulo, dentre tantas outras. Não se trata de nenhuma exclusividade dos chineses.
De fato, a qualidade de vida nestes centros urbanos tem se deteriorado, ampliando a incidência de doenças respiratórias e outras patologias. O estresse e os transtornos de um trânsito dominado pelo automóvel individual são visíveis a qualquer hora do dia e a qualquer dia da semana, inclusive aos domingos.
Além dos problemas ambientais e urbanos, a nova China também expõe, de forma dramática, as profundas contradições originárias de seus novos padrões de acumulação. A desigualdade social e a concentração de renda são reforçadas - e amplificadas - por uma nova elite exibicionista e hedonista, que começa a constranger o próprio regime com suas extravagâncias.
E, apesar de toda a expansão econômica dos últimos anos, o regime chinês não tem sido capaz de impedir nem mesmo que a miséria chegue às portas da grande praça Tiannamen, no coração de Beinjing. Moradores de rua abrigam-se, durante a noite, nos mesmos corredores que nos levam aos portões da Cidade Proibida, onde o imponente retrato de Mao Zedong parece ser a única herança de um passado marcado pelo culto à personalidade do grande arquiteto da Revolução Chinesa. Há de se reconhecer, porém, que a miséria em Beijing é bem menor do que em outras grandes cidades do mundo ocidental.
Os desafios da China parecem tão grandiosos quanto sua história, sua cultura e seu povo. Ao contrário do que se poderia supor em uma avaliação mais superficial, a elite política do regime parece bem consciente da complexidade de seus problemas e da necessidade de agir de forma contundente. É neste ponto que reside uma das maiores fragilidades de boa parte das análises ocidentais sobre a China que, além de transportarem mecanicamente conceitos completamente estranhos a uma civilização milenar, costumam ser carregadas de pré-conceitos e conclusões precipitadas sobre a elite política que governa o país.
Dessa forma, cumpre ocuparmos algumas linhas para assinalar nossa impressão de que a China possui um regime autoritário e não uma ditadura e que, além disso, os dirigentes do Partido Comunista têm demonstrado uma enorme capacidade em absorver as aspirações de sua complexa sociedade, o que, em grande medida, explica a permanência do regime. Os quadros políticos do PC Chinês debatem e falam abertamente sobre os problemas do país. Isso não ocorre numa ditadura, o que a China, de fato, não é. Esse é um dos elementos a explicar a manutenção do regime de partido único comunista da China.
O regime de Beijing certamente não é uma democracia de tipo ocidental, mas também não estamos tratando de uma ditadura hermética, baseada exclusivamente na força e na coerção de sua população. Esse é um elemento fundamental à compreensão da China contemporânea. Afinal, mesmo um regime autoritário está sujeito a pressões que emergem da sociedade e se vê obrigado a formar alguns consensos em torno dos quais pode organizar sua dominação.
O Partido Comunista Chinês tem demonstrado uma enorme capacidade em se adaptar a mudanças, em absorver demandas que emergem de fora do establishment, em incorporar a seu discurso novos elementos e até mesmo novas visões de mundo. Essa característica - que é uma das grandes virtudes do regime - é sistematicamente desconsiderada por parte expressiva das análises ocidentais, que buscam apenas enquadrar a China em seus esquemas de interpretação da realidade.
Os comunistas chineses, portanto, estão debatendo e agindo sobre os mesmos temas que os ocidentais veem como ameaças potenciais ao predomínio do PCCh.
Impressiona, por exemplo, a atenção que o regime dispensa atualmente à juventude. Percebe-se não apenas novos quadros ocupando posições-chave na economia e na estrutura política do país, como também uma preocupação explícita em manter os jovens, de todos os segmentos sociais, ocupados em diversas funções. Sem muito esforço o estrangeiro poderá perceber uma grande quantidade de jovens empregados em atividades aparentemente desnecessárias em hotéis, empresas e outras atividades. Trata-se de uma estratégia política deliberada e com forte impacto social.
A imagem da burocracia estatal chinesa em nada se parece com a daquelas gerontocracias características de regimes como o da Coréia do Norte. Jovens estão presentes em posições chave na economia e na administração pública, tornando explícita a enorme capacidade do sistema político chinês em renovar-se e formar novas elites.
Outro desafio que os comunistas chineses buscam enfrentar é o de seu imenso passivo ambiental. A China já é o país que mais investe em energias renováveis no mundo e há esforços, visíveis por toda parte, que buscam mitigar os danos ambientais de indústrias e veículos automotores. O combate à corrupção se tornou um tema debatido abertamente pela sociedade chinesa. Xi Jinping tem sido, ele próprio, o líder de uma cruzada do Partido Comunista contra a corrupção de seus dirigentes, em especial, nas províncias mais afastadas.
Por fim, o regime age explicitamente para manter a coesão do país com base num processo de inclusão social que pode, perfeitamente, ser considerado o maior da história da humanidade. Estima-se que 500 milhões de chineses adentraram a sociedade de consumo nas últimas décadas e o regime pretende incluir, ainda, algo em torno de duzentos milhões de chineses. A preocupação em manter níveis de crescimento que assegurem a sequência desse processo é o grande desafio do PC Chinês nas próximas décadas.
Portanto, crescimento, orgulho nacional e prosperidade compõem o tripé da nova ideologia chinesa, através do qual o Partido Comunista busca assegurar sua legitimidade. Talvez a grande aposta dos comunistas seja a manutenção de um sistema "eficiente" do ponto de vista da satisfação das necessidades de seu povo, como forma de assegurar sua legitimidade e hegemonia.
Para promover sua grande reforma, Deng Xiaoping precisou declarar que "socialismo não é miséria" e que enriquecer era glorioso. O pragmatismo de Deng não apenas salvou a China, como também a alçou à condição de potência economia mundial. Os atuais dirigentes chineses foram formados na mesma escola pragmática. E os resultados obtidos trinta anos após a ascensão de Deng nos levam imaginar o lugar que o Império do Meio ocupará nos próximos trinta. A única certeza é a de que nem o mundo, nem a China serão mais os mesmos.
(*) Secretário-Geral do governo do Rio Grande do Sul, coordenador do Gabinete Digital.
Créditos da foto:
Arquivo
Sem comentários:
Enviar um comentário