Rui Peralta, Luanda
I - No mundo actual
assiste-se a uma campanha global contra os sindicatos, marcada por diversas
nuances, mas com o objectivo central de desprestigiar esse tipo de organização
dos assalariados. Essa campanha abrange os mais diversos sectores políticos, á
esquerda e á direita dos espectros parlamentares, tanto nos países
desenvolvidos como nos países em desenvolvimento. Todos os argumentos são uteis
para combater os sindicatos e as medidas legislativas vão desde a eliminação
das liberdades e direitos sindicais nas empresas privadas e organismos
públicos, até às ameaças de criminalização dos direitos de greve.
Sindicatos,
associações profissionais, cooperativas, instituições mutualistas, comissões de
trabalhadores, comités de acção, conselhos operários, são estruturas
organizativas dos assalariados, que expressam a existência autónoma da sua
condição (sejam assalariados proletários, ou pertencentes ás classes médias, no
activo, desempregados e reformados) das suas lutas e aspirações, da sua
capacidade de intervenção e de participação, das revindicações, rupturas e
revoltas. Este tipo de organizações são actos de consciência da condição social
(a consciência de classe) que expressam reivindicações económicas, mas
simultaneamente políticas, pois que a consciência da condição social afirma-se
na Politica.
Este ultimo factor
é hoje arma de arremesso contra este tipo de organizações, existindo sectores
que tentam impedir o desenvolvimento desta consciência democrática, apostando
na exclusividade económica deste tipo de organizações, separando-as e
diminuindo o seu peso politico, de forma a inseri-las na alienante realidade do
capitalismo e no que este transformou as democracias, depois de ter destruído
os mercados, criando uma falsa realidade formada apenas pela Economia, deixando
ao Homem como tarefa principal e secundária - como tarefa única e papel único,
na condição do" homo economicus" - manter-se alienado, socialmente
anestesiado e dócil.
O desenvolvimento
da consciência de classe, inserida numa mais vasta consciência democrática,
criadora da cidadania livre e participativa é uma das muitas funções e
consequências do sindicalismo, criador de imaginários colectivos. É evidente
que o sindicalismo de classe (um termo que hoje é mal encarada e muito pouco
usado) é geralmente oposto ao designado sindicalismo de concertação (hoje,
tendência maioritária) mas têm raízes diferentes. O sindicalismo de classe é de
raiz proletária, ou seja é do assalariado despossuído e está intimamente ligado
a uma figura de relevo da História do capitalismo (e também da Democracia): a
classe operária. Este é um sindicalismo intrinsecamente democrático,
caracterizado pela primazia da assembleia e oposto às inércias da
burocratização dos aparelhos sindicais. Representa os trabalhadores no activo e
os desempregados, os efectivos e os contratados, os das empresas públicas e
privadas, chegando aos trabalhadores precários, aos emigrantes, reformados,
pensionistas e á juventude.
É evidente que num
passado recente muitos destes pressupostos foram alterados (a classe operária,
por exemplo, viu a sua composição profundamente alterada, em termos
qualitativos – maior qualificação – e quantitativos – em muito menor numero),
no entanto a situação actual leva a que este tipo de sindicalismo seja
recuperado, em busca de novas respostas perante a burocratização sindical ou o
sindicalismo corporativo e perante as ameaças externas ao movimento sindical,
provenientes das novas elites dominantes, que põem em risco as conquistas – em
alguns casos já centenárias – alcançadas através de duras lutas e
sacrifícios.
O sindicalismo
torna-se parceiro do capital quando deixa de ser incómodo. A burocracia
sindical converteu o sindicalismo a uma mera expressão de parceira, pouco ou
nada reivindicativa, reduzida á sua expressão económica e utilitária,
mendigando posições e colocando-se em bicos de pés, nas mesas da negociação. A
institucionalização dos processos de negociação (as “parcerias sociais”)
tornaram predominante esta nova figura sindical, decadente e conciliadora, que
senta-se nas mesas das negociações disposto a negociar, a ceder e não a
pressionar, a correr para a negociação e não a força-la, a partir de uma
posição subserviente e não de uma posição de força.
A questão sindical está
ligada ao poder de decisão e de participação efectiva dos sectores que
representa (sejam proletários ou incluídos nas classes médias), ou seja é uma
questão de poder e o poder exerce-se, não se partilha, sendo essa uma condição
única para o exercício real e efectivo da Democracia. A partilha de poder leva
á estagnação da sociedade democrática, tornando-a apenas formalmente
democrática – como no Estado de Direito – não efectivando a transformação
democrática na esfera económica, social e cultural e impedindo o seu avanço e
aprofundamento na esfera politica.
Desta forma a
democracia torna-se o mecanismo mais indicado para a produção, reprodução e
renovação das elites, tornando-se apenas a forma como estas se legitimam. A
separação dos poderes (os poderes são separados porque têm de ser exercidos e
não partilhados) torna-se virtual e estes deixam de ter uma actividade
autónoma. O pântano toma o lugar da dinâmica democrática e o discurso dominante
é sempre o da maioria acéfala, sem vontade própria. A mediocridade passa a ser
norma e essa é a condição essencial para que a única realidade na sociedade
passe a ser a Economia, asfixiando e subordinando todas as outras esferas da
actividade humana. Temos, então, o domínio absoluto do Capital.
Um dos males que padece
a actividade sindical no presente (sendo este fenómeno mais notório e
perceptivel na U.E) reside no facto de marginalizar os assalariados do sector
privado, sendo grande parte das suas acções desencadeadas no sector publico.
Este fenómeno está, obviamente relacionado, com dois factores principais: a
burocratização (factor interno e orgânico do movimento sindical) e a repressão
(factor externo ao movimento, levada a cabo pelo patronato, nas suas empresas,
embora a actual crise tenha conduzido os Estados a romperem os anteriores
contratos sociais e coloquem os assalariados da função publica com o mesmo tipo
de problemas).
Hoje, mais do que
nunca, torna-se necessário - nas economias capitalistas mais avançadas, onde a
crise provoca a falência diária de empresas e a restruturação de actividades
profissionais – acções directas que passem pela ocupação das empresas
encerradas e pela sua manutenção em posse dos trabalhadores, em regime
autogestionário (que pode ser assumido de diversas formas).
Acabaram-se os
tempos da concertação e esta tornou-se um instrumento de domínio das elites
dominantes. Não há nada para concertar, mas há muito transformar. E este
pressuposto é válido para os países em desenvolvimento, sejam BRICS ou estejam
noutro estágio de maior ou menor desenvolvimento. Não se podem tratar os
assalariados como casta inferior – como acontece na India – nem aos tiros –
como aconteceu na África do Sul do pós-apartheid racial e institucional. Mas
também não pode haver o tratamento abaixo de cão a que os assalariados são
sujeitos na grande maioria do continente africano (principalmente onde as
estruturas sindicais ou organizativas dos assalariados são ainda incipientes,
devido aos mais diversos motivos provocados pelos processos de libertação), com
salários em atraso durante meses, sem perspectivas reivindicativas (mesmo que
sejam montadas operações propagandísticas que virtualmente fazem passar por
consulta exercícios de bajulação ao poder, á burguesia nacional e á elites
económicas dos espaços nacionais) e forçados á desqualificação através de
contratos ilegais (seja no sector publico ou privado, nas multinacionais ou
PME) e ao trabalho precário.
Para estes países,
para os que querem “crescer economicamente” é bom lembrar que o desenvolvimento
não é apenas um factor económico, mas sim integrado. E será bom que não
esqueçam, também, que as empresas não são constituídas apenas por factores de
capitalização. A riqueza das nações fazem-se com mão-de-obra qualificada, o que
implica recursos para a educação, formação, instrução e saúde. E que a saúde
está associada a habitação condigna e espaços ambientais bem geridos, para além
do fundamental sistema nacional publico de saúde, que permitirá que esta seja
um direito acessível a todos, um bem “universal e gratuito” e não “privado e
caro” (o mesmo principio deverá ser associado á educação).
Já que enveredaram
pelo Estado de Direito, cumpram-no. A Democracia, através da soberania popular
(as lutas de sempre), fará o resto.
II - O capitalismo
do século XXI é cada vez mais etéreo e virtual, algo incorporal, que se
manifesta através das verdades absolutas das oscilações bolsistas, num mundo
cada vez mais afastado do Homem, um mundo que é produto de uma estranha
engenharia financeira, governado a partir de uma “esfera celestial,”
inteligível, habitada por pessoas que enriquecem e que se fecham nessa esfera
inacessível aos outros, onde tomam decisões que afectam a “esfera inferior”
habitada por uma humanidade alimentada de ilusões. É um grande mecanismo de
domínio cujo modelo organizacional e comunicacional é desenhado com o objectivo
de diluir as manifestações de poder e de comportamento da “esfera celestial” sob
a forma imaterial dos novos oráculos: “os mercados reguladores”.
Este endeusamento
do capital é efectuado através de uma forma muito curiosa. Já não se prometem
paraísos, apenas infernos mais ou menos insuportáveis, em que a Humanidade (os
habitantes da “esfera inferior”) sujeita-se ao trabalho cada vez mais precário
e a condições de vida cada vez mais deploráveis. Um dos mecanismos mais
recentes de precarização é a subcontratação. Teoricamente a subcontratação
parte do principio de que a complexidade das actividades produtivas é tal que
quanto mais especializada é uma empresa, mais e melhor conhecimento terá da sua
actividade especifica e mais produtiva será. Ora a subcontratação permitiria
que as empresas se concentrassem nas facetas onde seriam mais produtivas, em
função da sua especialidade. Mas este princípio teórico não é, afinal, nem um
princípio, nem teoria. É apenas mais um dos oráculos que povoam o imaginário do
capitalismo no seculo XXI.
Na realidade se a
eficiência técnica fosse a razão fundamental do crescimento das cadeias de
subcontratação, assistiríamos á proliferação de empresas especializadas
negociando entre si e gerando uma complexa actividade produtiva. Mas não é a
isso que assistimos. A subcontratação origina uma estrutura empresarial
hierarquizada, de mão-de-obra intensiva, de baixo salário e condições laborais
precárias. A vida dos trabalhadores de uma empresa subcontratada é marcada por
uma dupla submissão: ao seu patrão e ao cliente do seu patrão. O técnico
especializado é, desta forma, proletarizado, auferindo baixos salários (muito
aquém do salário, prémios e condições que auferiria se estivesse a trabalhar
numa multinacional, por exemplo).
As empresas
subcontratadas movimentam-se no mundo compartimentado da relação hierárquica.
Se for uma empresa de limpeza, por exemplo, estará no último escalão
hierárquico, pois a sua “especialidade” as suas “skills” o seu “know-how” o “serviço
que presta ao seu cliente” é muito mais barato do que o de uma operadora de
informática ou de uma operadora de telecomunicações ou de uma prestadora de
serviços contabilísticos, administrativos ou de consultoria jurídica ou
financeira. Por sua vez emprega, maioritariamente, mão-de-obra-não
especializada, que trabalha por um baixo valor num regime muitas vezes de
"semi-assalariado". Por outro lado este sistema deixa a nu uma das
suas principais razões, quando se afirmou no mercado: a eficiência. É um
sistema tão ineficaz como outro qualquer que não altere a sua forma
organizacional e a sua composição orgânica.
É evidente que esta
forma, a subcontratação é reveladora das muitas mudanças efectuadas nos
processos produtivos. Como essas mudanças não foram á raiz do sistema e foram
muitas vezes efectuadas por questões de cosmética ou porque era uma forma de
rentabilização acrescida, ou, ainda, porque permitia algumas bonificações
fiscais, etc., criaram-se sistemas híbridos, geradores de enormes ciclos de
crise. A questão central reside no facto de as novas tecnologias aplicadas às
actividades económicas terem impactos profundos em conceitos base do sistema
capitalista, como a produtividade, a especialização da mão-de-obra, o emprego,
as relações de trabalho, a organização, novos conceitos de produção, novos
produtos, novos mercados, novas mercadorias, novas actividades, novos sectores,
novas formas de distribuição, novas formas de capitalização, novas formas de
rentabilidade e de reprodução do capital e toda uma revolução do sistema de
trabalho, que tornou obsoleto o anterior aparelho do capital e a sua base
sacrossanta: o regime assalariado.
Hoje o assalariado
é tão inoperativo e com custos tão elevados como outrora foi a
mão-de-obra-escrava. Nessa época levantaram-se muitas vozes abolicionistas, não
por uma questão humanística e de preocupação com a condição humana, mas porque
a mão-de-obra escrava deixou de ser rentável e não tinha aplicação nos novos
sistemas industriais. Hoje o assalariado é um peso na estrutura produtiva, não
por razões competitivas ou por factores subjectivos criados nos gabinetes da
ignobilidade dos Estados e do Capital, mas sim porque tornou-se
contraproducente para o factor vital da Economia: a produção.
Ao tornar-se
desnecessário, o assalariado arrasta com ele toda a estrutura que o criou, na
qual se desenvolveu e para a qual contribuiu: o empresário, as relações de
produção, o tipo de propriedade, as instituições, o conceito de Estado, a
estrutura organizativa macroeconómica e microeconómica, o capitalista, enfim,
todo o universo criado pela Revolução Industrial entrou numa acentuada fase de
decadência, porque necessita de evoluir, em algos casos metamorfoseando-se,
noutros entrando em profunda e acelerada decadência originadora de rupturas
radicais e noutros casos assumindo um natural processo de continuidade. Como as
anteriores estruturas não são as adequadas para permitirem formas de transição,
estas assumem-se num cenário caótico. O próprio mecanismo de renovação,
reprodução e de produção de elites (tal como as actuais formas de reprodução do
capital) tornou-se obsoleto, pois as elites que produz não são as elites do
novo processo, mas sim as do anterior, agora em vias de atingir a
inoperacionalidade. Quando isso acontece as elites assumem uma forma
oligárquica e tendem a tornar-se corruptas, pois necessitam de todo e qualquer
meio que permita a manutenção do seu status, poder e autoridade.
Dentro dos inúmeros
processos a que as elites recorrem, a subcontratação e a externalização de
serviços são um dos mais correntes. A falência do Estado Social é um facto e
não uma andorinha que retorna pela Primavera. A desresponsabilização do
aparelho de Estado é uma realidade dos tempos que correm. Ao
desresponsabilizar-se os Estados criaram o primeiro mecanismo de
externalização. Ao quebrarem o investimento público os Estados realizaram a
transferência de responsabilidades para fantasmas como a “iniciativa privada”
(que se viu afastada do seu habitat, o mercado) a “sociedade civil” (uma das
muitas sopas virtuais criadas pelos cozinheiros vigaristas que pululam pelos
corredores do poder e da academia, uma possível invenção do mesmo mestre que
criou a sopa da classe média) e outros mitos urbanos da actualidade. Desta
forma criou-se um novo lavar de mãos e honrou-se a memória de Pilatos:
Consciência suja e mãos limpas.
III - O outsourcing
desresponsabiliza, descrimina os preços, rentabiliza de uma forma obscura e
lida com a questão salarial através da redução do valor, da desvalorização da
mão-de-obra, precarizando o trabalho. As empresas privadas e as instituições
públicas que recorrem á subcontratação de serviços fazem-no com o objectivo
principal de desvalorizar a mão-de-obra, de desprezar as pessoas que exercem a
actividade, menorizando o processo trabalho. Esta é forma de espezinhar os
direitos, de fazer ver á “gentinha” que “não há almoços gratuitos” e que os “os
direitos têm um preço”.
Esta atitude de
pretensa superioridade, este comportamento de besta-quadrada (é bom não
esquecer que a maioria destes mentecaptos que compõem as elites empresariais e
que ocupam cargos públicos, são iletrados, semianalfabetos e sem berço, lúmpen
arruaceiro e escumalha do mais baixo que pode haver na condição humana, muito
distantes da culta aristocracia e da inteligente burguesia mercantil ou da
forma de estar no mundo representada pelos sectores que impulsionaram a
Revolução Industrial), ignora o valor do trabalho, despreza a cooperação e tem
como única obsessão o excedente de lucros. A desigualdade está legitimada – e a
caminho da institucionalização – pois essa é a condição única que permite o
enriquecimento desmedido.
Este processo passa
por uma estranha operação financeira, levada a cabo no longo-prazo, que
consiste na liquefação do capital, apenas possível porque o capital já consegue
fazer passar os seus interesses por meras “opções técnicas”, debilitando as
críticas e transladando o conflito capital/trabalho para a relação súbdito/elite.
Existem diversas formas de efectuar este processo de liquefação, sendo as
politicas de portas giratórias a sua versão mais evidente, embora existam
formas mais sofisticadas que passam pelo estabelecimento de corredores nas
instituições de regulação (bancos centrais ou reguladores sectoriais) ou
através das “comissões técnicas”, que vitimizam economias como a grega,
espanhola e portuguesa.
Este desvio, da
política para os “experts”, tem duas vantagens, que são utilizadas no conflito
social: 1) Os “méritos” profissionais e académicos dos “experts” criam uma
espécie de escudo de credibilidade, amortecendo as críticas e dificultando os
argumentos dos críticos, tornando-se muito difícil ao cidadão comum o diálogo
com tais “sapiências”. É claro que alguns destes “sábios” demonstram apenas uma
sabedoria de polichinelo e alguns deles limitam-se a papaguear a mesma coisa
durante anos, acabando por acreditar no que dizem (estas espécies são comuns
nos meios académicos, consequência negativa da mercantilização do ensino, que
levou ao credenciamento de estudantes intelectualmente débeis, tipos que
deveriam ficar-se pela formação profissional – honesta, honrada e de grande
necessidade - mas que acabaram por entrar nos meios académicos pelas
instituições privadas, pagando, é claro). 2) A segunda vantagem é que a ira das
vítimas deste processo acaba por recair sobre os políticos que dão a cara, ou
sobre o sector financeiro ou a banca, ficando os reais beneficiários a salvo. É
claro que estes processos dão-se com a cumplicidade do Estado e dos sectores do
capitalismo financeiro, mas estes não são os autores do crime, apenas
beneficiam em segundo plano, embora forneçam os mecanismos essenciais á sua
execução.
A camuflagem do
capital requere aliados e cúmplices, é uma enorme rede de interesses que
ultrapassa os limites circunscritos das elites e que contempla processos
sociais geradores de uma massa social que legitima o sistema. A velha Europa
conheceu um processo similar durante o absolutismo, feito não pela via tecno-burocrática
(oligárquica de novo tipo) mas pela via da oligarquia politica (ultrapassada
pelos interesses da burguesia industrial e financeira).
As tecnologias da
segurança, as novas leis de Segurança, os procedimentos de segurança, cada vez
mais impeditivos dos direitos básicos da cidadania, que espezinham os direitos
individuais e ignoram os direitos sociais (atropelando o Homem como individuo e
como cidadão, despersonalizando-o, ou seja atentando contra a “persona”) são
uma das formas mais completas deste processo de liquefação do capital. Esta é
uma forma multifuncional, que permite operações de liquefação, que
simultaneamente é reprodutora de capital e assegura os meios e equipamentos
necessários á repressão e á coação, condição indispensável para levar a eito a
desvalorização dos salários e tornar comportáveis os custos do assalariado.
Interessante mundo,
este, que começou com o pão transformado em rosas, iludindo o rei, para
terminar com as rosas transformadas em migalhas, para iludir os pobres.
Fontes
Lukács Historia y
conciencia de clase Nómade, 2013
IV - New York,
Londres, Paris, Madrid ou Tóquio, são grandes cidades que influenciam o mundo
actual nas questões sociais, politicas e culturais, são “cidades globais”, um
conceito elaborado pela socióloga Saskia Sassen. Esta concepção de cidade
representa um desenvolvimento do conceito utópico de “aldeia global”, elaborado
pelo sociólogo canadiano Marshall McLuhan, durante a década de 60. Com a “aldeia
global” McLuhan perspectivou a forma como as novas tecnologias da comunicação e
da informação (e também as tecnologias do conhecimento) transformam a noção de
distância e o relacionamento com lugares e sociedade longínquas
Segundo McLuhan
antes do advento das novas tecnologias habitávamos um mundo construido a partir
do lugar onde residíamos e donde liamos sobre tempos e lugares distantes e que
agora vivemos num aldeia donde nos cruzamos permanentemente com todos os
lugares e com todos os tempos, ou seja, vivemos num mundo formado pelo
entrecruzamento de espaços diversos, que predominam sobre o nosso espaço de
origem. O mundo, segundo esta concepção, seria convertido numa aldeia global e
na sociedade despontavam comportamentos tribais.
A ideia de “aldeia
global” referia-se á forma como a comunidade mundial, através da tecnologia,
supera fronteiras e barreiras para integrar-se social e culturalmente. Além
disso, este conceito insinuava que havia um maior interesse em conhecer os
vizinhos, os ocupantes dos espaços localizados nos antípodas e que por isso
seriam criadas redes de dependências mutuas, de solidariedades, de defesa de
valores e interesses comuns, etc..
O tempo revelou a
fragilidade da utopia da “aldeia global”. O Mundo continua a ser constituído
por variados espaços, constituídos por milhares de milhões de pessoas, com diversas
formas de relacionamento, desconhecendo-se umas às outras. O que resta deste
conceito é o facto de o mundo ser mais interconectado, o que nos permite ser
mais conhecedores do outro, influindo e sendo influenciados. Este é um dos
processos mais benéficos da globalização: a descoberta da pluridimensionalidade
do mundo em que habitamos e a constatação de que afinal é todo o mundo e não o
canto minúsculo que habitamos que é nosso, que é Polis, ou seja sentimos que
temos uma palavra a dizer sobre as antípodas, porque também são nossas. Acabou
a história mal contada de não metermos o nariz nos assuntos internos dos outros
povos, porque os outros povos também são o nosso povo e o espaço que ocupam
também é o nosso espaço. Tornou-se possível o “mi casa es tu casa” na praxis e
não apenas nas boas intenções.
Esta descoberta da
pluridimensionalidade do mundo em que habitamos é o factor principal que evita
a recolonização cultural, sendo a globalização o único factor que permite a
adaptação das culturas locais a partir do seu interior, apreendendo o
desconhecido desde a sua concepção orgânica. Esta pluridimensionalidade é
captada pelo antropólogo Arjun Appadurai quando refere a “nova economia
cultural global” como um “complexo deslocado e repleto de justaposições, que
ultrapassam o binómio centro-periferia”.
Para trás fica a
aldeia global, embora permaneçam as novas formas de ver o mundo a partir do
local. As observações de Appadurai são quase exactas num factor: O mundo não
uma aldeia global, mas uma rede de aldeias globalmente interconectadas,
influenciadoras e influenciadas, não idênticas, mas comuns. O que falhou nesta
visão foram dois considerandos: “nova economia cultural” e o descuramento das
relações centro-periferia, consideradas como se fossem um binómio. Appadurai
considerou existir uma nova economia, quando afinal apenas deslumbrava os
escombros da velha economia, só que vistos de uma perspectiva global, o que
cria a ilusão de estarmos perante algo de novo, enquanto o que é efectivamente
novo (porque muito mais amplas) são as paredes do museu onde os escombros
residem. No actual processo de globalização (tal como nos anteriores) nunca
existiu “economia cultural”. Anteriores processos de globalização - como os
ocorridos com a utilização em grande escala das vias marítimas, iniciada no
século XV ou a Revolução Industrial, iniciada no século XVIII – foram
preconizadoras de uma nova economia (mas não o actual), mas nunca em tempo
algum existiu essa “alucinação” da “economia cultural” por uma razão muito simples:
nos processos de globalização a economia autonomizou-se, ao ponto de ser um
factor dominante na cultura. É assim que hoje existe uma “cultura da economia”
(dominante) mas não “economias culturais”.
De qualquer forma
os considerandos de Appadurai sobre o conceito de McLuhan levam-nos á teoria da
“Sociedade Rede” do sociólogo Manuel Castells, segundo o qual os intermediários
do conhecimento, da informação, deixaram de ser necessários, porque existe a
possibilidade de cada um mostrar-se ao outro, de relacionar-se directamente e
de misturar-se com os demais, sem sair do mesmo lugar. Daqui até ao recente
desenvolvimento do conceito de tecno política (a capacidade organizativa
mediada pela rede, o padrão de auto-organização politica na sociedade rede, a rede
autogestionária) foi um curto passo, apenas possível pela prática - permitida
pela globalização - das realidades interconectadas.
Independentemente
de vivermos uma etapa de “modernidade liquida” (Bauman), “sobre modernidade”
(Augé), ou de “segunda modernidade” (Beck), as relações criadas pelo domínio do
Capital mantêm-se intactas, apenas alteradas pelo facto de serem
interconectadas. E são estas relações que estão em ruptura com a aplicação
tecnológico aos mais diversos níveis das actividades humanas (conhecimento,
informação, serviços, sistema produtivo, cadeia de consumo, cadeia distributiva
das mercadorias, comércio, agricultura e pecuária, ambiente, recursos naturais,
etc.)
As estruturas
sociais não são independentes da sociedade que as sustenta. A noção de rede,
por muito predominante que seja, não substitui a noção de sistema, porque os
sistemas delimitam e relacionam elementos de uma mesma realidade, enquanto a
rede apenas interrelaciona os elementos da realidade. É evidente que a globalização
cria uma dinâmica dialéctica de sistemas de redes e de redes de sistemas, ou
seja de complexos de delimitações e de relacionamentos interrelacionados e de
inter-relacionamentos de complexos de delimitações.
As elites impõem a
sua cultura, que por sua vez é absorvida pelas “camadas assimiladas” – as
classes, subclasses, clusters e grupos socioprofissionais que formam a “classe
média” - impedindo que as massas proletárias construam as suas culturas
paralelas, as “contraculturas”. Ao nível das dinâmicas internas esta
delimitação é transposta para as dinâmicas externas através dos relacionamentos
centro-periferias. Este relacionamento não é um binómio, nem é feito apenas em
dois sentidos. O centro impõem a sua cultura às periferias e estas assimilam a
cultura do centro, tornando-se menos periféricas á medida que a assimilação da
cultura do centro é de maior amplitude e mais periféricas quando existem
grandes resistências a essa assimilação. O imperialismo impõe a sua cultura e
considera-a universal. O capitalismo impõe a sua realidade e transforma o mundo
em Economia.
Todos os novos
paradigmas confluem num ponto e relevam de uma necessidade única: resolver a
decadência de todos os sistemas de actividade e de relacionamento. E isto
implica fragmentar o espelho em que se tornou o capitalismo: o domínio pela
alienação. Este é o nó górdio que impede a actual sociedade em sair do seu
permanente ciclo de crise. E aqui voltamos às cidades globais, pois é nas
grandes urbes que desenvolvem-se processos de mestiçagem e de hibridização que
enriquecem os relacionamentos e impulsionam transformações da realidade,
construindo outros mundos, onde se possa potenciar o conhecimento e as
possibilidades das novas tecnologias no processo de trabalho.
V - As cidades
globais são espaços que representam o fim do Estado-Nação. Este é um fenómeno
curioso. Muitas das cidades globais, são cidades capitais, logo politicamente
preponderantes nos respectivos ordenamentos territoriais dos Estados-Nação em
que estão inseridas. Aliás todas as cidades globais são centros (mesmo que não
sejam cidades capitais) políticos ou económicos dos seus respectivos estados.
Nenhuma delas é uma cidade periférica e todas encontram-se inseridas em
economias capitalistas desenvolvidas. São nestes espaços que o capitalismo
actual tem encontrado os seus mecanismos de renovação e são estes espaços que
permitem, nos últimos decénios, uma renovação constante das respectivas elites
e uma produção eficaz de novas elites cosmopolitas.
O Estado-Nação foi
o berçário do capitalismo. Este sempre necessitou do âmbito nacional para se
implementar como sistema de relações de produção. O espaço internacional serve
para a sua expansão mas sem espaço nacional o capitalismo não consegue
implementar-se e assim foi durante séculos. Mas nas economias capitalistas
desenvolvidas, as grandes cidades transformaram-se em espaços multiculturais,
de grande diversidade social e cultural (eram e são o ponto de chegada dos
movimentos migratórios internos e simultaneamente albergam numerosas
comunidades de imigrantes das mais diversas origens). No contesto
macroeconómico do Estado-Nação, a grande cidade era um centro, em torno do qual
desenvolviam-se outras cidades (muitas delas cidades-satélites) subsidiarias ou
prestadoras de serviços e a paisagem urbana ia diluindo-se através das suas
fronteiras com o campo, não de forma abrupta como acontecia em séculos
anteriores, mas de uma forma gradual, dinâmica, em perpétua transformação.
Hoje a elevada
velocidade de circulação dos capitais, a interconexão dos mercados globalizados
e uma miríade de outros factores, possibilitam ao capitalismo pós-industrial o
seu desenvolvimento de uma forma virtualizada, sem necessitar efectivamente de
um grande espaço físico onde as redes microeconómicas e os sistemas
macroeconómicos representavam o seu funcionamento orgânico. A forma actual
(ainda não predominante, mas a que demonstra maior capacidade de adaptação,
maior mobilidade e uma estrutura organizativa flexível, modular) de capitalismo
pós-industrial encontra o seu berçário na grande cidade e o desenvolvimento das
grandes urbes culmina nas cidades globais e quando isso acontece é ai que
reside o núcleo duro das novas elites de mercado, com um elevado nível de
qualificação, cosmopolitas e perfeitamente adaptadas aos instáveis ciclos de
curta duração que caracterizam os actuais sistemas financeiros.
Se as
cidades-globais vão transformar-se ou não em cidades-estado é um assunto da
futurologia. O fim do Estado-Nação não implica um regresso às cidades-estado,
obrigatoriamente. Nas grandes urbes globais os conflitos são permanentes e de
grande amplitude e forte intensidade. As relações entre as diferentes
componentes sociais e culturais não são pacíficas ou harmoniosas, como nos
contos de fadas, mas de uma extrema complexidade de teias de relacionamento,
redes e sistemas. Os Estados-Nações estão condenados, mas podem evoluir para
sistemas económicos e políticos integrados, regionalizados. Tudo depende da
deslocação do centro e do novo sistema de relacionamento centro-periferia.
Por sua vez a
guerra de classes irá determinar se o milagre das rosas, actualmente um regaço
de migalhas, será transformado num milagre dos micro-chips, ou num novo conto,
em que não haverá rei nem rainha, num mundo composto por abundancia em que as
rosas, vermelhas, têm o traço do jardineiro e o pão a assinatura do padeiro.
VI - Existe um
módulo conceptual, teoricamente equidistante e neutro, alimentado por dilemas,
binómios, dicotomias funcionais, que fez carreira na filosofia e nas ciências
sociais - mas que tem encontrado na Politica um caminho de maior
espectacularidade - com várias denominações (moderação, centro politico, bom
senso, razão, cordialidade e outros, alguns deles introduzidos pela
pós-modernidade), mas todas elas similares em conteúdo e intenção.
Este tipo de
conceitos são de grande utilidade no capitalismo e revelaram-se fundamentais
para o seu desenvolvimento no Ocidente. As “forças do centro”, nem de direita
nem de esquerda (simultaneamente uma mistura das duas, numa busca de “moderação”,
ou situando o centro mais a um lado ou mais a outro, como nos caos do “centro-esquerda”
ou do “centro-direita”). Tudo o que não é enquadrado nesta definição “moderada”
de atitude política é atirado á fogueira e são consideradas “forças radicais,
incorrectas e extremistas”.
No fundo o “centro”
(segundo uns, “politico”, segundo outros, “social”) é uma imensa “Disneylândia”
destinada á diversão de eleitores incautos e ao credo de cidadãos distraídos
(um imenso espaço de diversão dedicado á classe média) e á sobrevivência de
políticos que estão sem lugar nas empresas dos patrões. Servem também
(assentando como uma luva) aos académicos bem-falantes e bem pensantes (mas de
deficiente intelecto e incapacitados do exercer a critica, porque obriga a
pensar com a própria cabeça, a usar os próprios conceitos e a falar as suas
próprias palavras).
Nenhum destes
grupos pretende que os conflitos sociais se agudizem, ou que existam grandes
transformações (é curioso verificar a agitação que grassa na classe média -
preocupada e assumindo comportamentos pouco centristas - europeia, quando
verifica que afinal as alterações efectuadas no sistema macroeconómico pelas
instancias internacionais financeiras não levam em conta os seus interesses, empurrando-as
para a proletarização, ou a reacção apreensiva da classe média nos processos
bolivarianos em curso na América do Sul) na sociedade, que para elas é uma
imensa palmeira, na base da qual descansam á sombra.
Para estes o
Estado-Nação é um credo omnipotente, omnipresente e omnisciente. Para além do
Estado-Nação é a catástrofe, o caos e a anarquia. Pouco interessa que o
Estado-nação seja subserviente ou seja uma província camuflada do Imperio. O
que interessa é o discurso anual sobre o estado da nação. Nem que seja para
mudar de canal e ver a novela que passa á mesma hora. São tudo produtos do
Estado-Nação…
Apesar de toda a
aparente moderação do discurso politico “centrista”, o que se esconde por
detrás é algo tão aterrador como as fogueiras da inquisição, os barcos dos
negreiros ou os campos de extermínio. O “centro” é o pântano, é a vigarice
pura, a aldrabice em grande escala, uma burla tornada hábito e ética. Por
detrás das palavras do “bom senso centrista” esconde-se um fundamentalismo
militante, um integrismo terrorista, cimento da desigualdade e da injustiça
social.
O “centro”
preconiza o “fim da História”, mas acaba por revelar uma história de mau gosto
sem fim á vista, como aquelas novelas de infinitos episódios e que um dia
acabam como começam, já com outro nome e com outros actores, desempenhando os
mesmos personagens.
VII - As convulsões
sociais em curso na economia-mundo levam o movimento sindical a reconsiderar
toda uma série de questões fundamentais, que prendem-se com o seu papel na
sociedade, a sua relação com o estado, com as forças politicas, com os
movimentos sociais de índole diversa e de interesses diversificados e com as
transformações e alterações do aparelho macroeconómico. Os sindicatos são
expostos a pressões constantes e cada vez maiores nas últimas décadas. O seu
fim já foi anunciado um milhão de vezes, nos palcos dos comícios eleitorais,
nos salões das confederações patronais, nos auditórios das academias.
Casos houve em que
alguns sindicatos passaram de ferramenta de representação dos interesses dos
assalariados a instrumentos de silenciamento e manipulação dos mesmos. Durante
muito tempo era noticiado com frequência que os sindicatos perderam a confiança
dos seus sócios e que revelavam-se incapazes de acompanhar as transformações em
curso.
Os apressados no
fim da História observam com algum espanto que nos casos em que os sindicatos
foram tomados por dentro e tornaram-se mecanismos de manipulação de interesses
e de silenciamento das revindicações, os trabalhadores acabavam por formar
outras estruturas e reunirem-se em torno de outro sindicato. Observaram,
espasmados, que afinal os sindicatos não só se adaptaram às novas realidades do
capitalismo, como continuam activamente reivindicativos.
As leis que restringem
o movimento sindical são cada vez mais sofisticadas e assumem uma nova
característica: são “técnicas” (desta forma são “neutras”, diz a (in)sapiência
centrista). Revelam-se insuficientes para conter o descontentamento e o
mal-estar gerador de revolta e manifestamente incapazes de contornar a questão
sindical. Quanto aos sindicatos dependem fundamentalmente da sua capacidade
criadora e da sua capacidade de resposta às novas realidades. Dependem de como
se situam na cidade global: se a olhar pasmados para as aldeias que preenchem o
horizonte paisagístico da cidade, para além dos seus confins, ou se conhecem
bem as ruas por onde caminham.
É que o milagre das
rosas só funcionou porque as rosas eram vermelhas…Tão vermelhas como a roupa do
Pai Natal.
VIII
Perguntou o rei com
voz de trovão: “Que escondeis no vosso regaço?” A rainha levantou a saia e
revelou as notas penduradas nas ligas das meias e as entaladas nas cuequinhas,
dizendo: “São dólares, senhor, que os euros estão na carteira”.
Fora das muralhas
do castelo os pobres erguiam uma fortaleza…
Boas Festas!
Luanda, Dezembro de
2013
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