domingo, 22 de dezembro de 2013

REFLEXÕES NATALICIAS

 

Rui Peralta, Luanda
 
I - No mundo actual assiste-se a uma campanha global contra os sindicatos, marcada por diversas nuances, mas com o objectivo central de desprestigiar esse tipo de organização dos assalariados. Essa campanha abrange os mais diversos sectores políticos, á esquerda e á direita dos espectros parlamentares, tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento. Todos os argumentos são uteis para combater os sindicatos e as medidas legislativas vão desde a eliminação das liberdades e direitos sindicais nas empresas privadas e organismos públicos, até às ameaças de criminalização dos direitos de greve.    
 
Sindicatos, associações profissionais, cooperativas, instituições mutualistas, comissões de trabalhadores, comités de acção, conselhos operários, são estruturas organizativas dos assalariados, que expressam a existência autónoma da sua condição (sejam assalariados proletários, ou pertencentes ás classes médias, no activo, desempregados e reformados) das suas lutas e aspirações, da sua capacidade de intervenção e de participação, das revindicações, rupturas e revoltas. Este tipo de organizações são actos de consciência da condição social (a consciência de classe) que expressam reivindicações económicas, mas simultaneamente políticas, pois que a consciência da condição social afirma-se na Politica.
 
Este ultimo factor é hoje arma de arremesso contra este tipo de organizações, existindo sectores que tentam impedir o desenvolvimento desta consciência democrática, apostando na exclusividade económica deste tipo de organizações, separando-as e diminuindo o seu peso politico, de forma a inseri-las na alienante realidade do capitalismo e no que este transformou as democracias, depois de ter destruído os mercados, criando uma falsa realidade formada apenas pela Economia, deixando ao Homem como tarefa principal e secundária - como tarefa única e papel único, na condição do" homo economicus" - manter-se alienado, socialmente anestesiado e dócil.
 
O desenvolvimento da consciência de classe, inserida numa mais vasta consciência democrática, criadora da cidadania livre e participativa é uma das muitas funções e consequências do sindicalismo, criador de imaginários colectivos. É evidente que o sindicalismo de classe (um termo que hoje é mal encarada e muito pouco usado) é geralmente oposto ao designado sindicalismo de concertação (hoje, tendência maioritária) mas têm raízes diferentes. O sindicalismo de classe é de raiz proletária, ou seja é do assalariado despossuído e está intimamente ligado a uma figura de relevo da História do capitalismo (e também da Democracia): a classe operária. Este é um sindicalismo intrinsecamente democrático, caracterizado pela primazia da assembleia e oposto às inércias da burocratização dos aparelhos sindicais. Representa os trabalhadores no activo e os desempregados, os efectivos e os contratados, os das empresas públicas e privadas, chegando aos trabalhadores precários, aos emigrantes, reformados, pensionistas e á juventude. 
 
É evidente que num passado recente muitos destes pressupostos foram alterados (a classe operária, por exemplo, viu a sua composição profundamente alterada, em termos qualitativos – maior qualificação – e quantitativos – em muito menor numero), no entanto a situação actual leva a que este tipo de sindicalismo seja recuperado, em busca de novas respostas perante a burocratização sindical ou o sindicalismo corporativo e perante as ameaças externas ao movimento sindical, provenientes das novas elites dominantes, que põem em risco as conquistas – em alguns casos já centenárias – alcançadas através de duras lutas e sacrifícios. 
 
O sindicalismo torna-se parceiro do capital quando deixa de ser incómodo. A burocracia sindical converteu o sindicalismo a uma mera expressão de parceira, pouco ou nada reivindicativa, reduzida á sua expressão económica e utilitária, mendigando posições e colocando-se em bicos de pés, nas mesas da negociação. A institucionalização dos processos de negociação (as “parcerias sociais”) tornaram predominante esta nova figura sindical, decadente e conciliadora, que senta-se nas mesas das negociações disposto a negociar, a ceder e não a pressionar, a correr para a negociação e não a força-la, a partir de uma posição subserviente e não de uma posição de força.         
 
A questão sindical está ligada ao poder de decisão e de participação efectiva dos sectores que representa (sejam proletários ou incluídos nas classes médias), ou seja é uma questão de poder e o poder exerce-se, não se partilha, sendo essa uma condição única para o exercício real e efectivo da Democracia. A partilha de poder leva á estagnação da sociedade democrática, tornando-a apenas formalmente democrática – como no Estado de Direito – não efectivando a transformação democrática na esfera económica, social e cultural e impedindo o seu avanço e aprofundamento na esfera politica.
 
Desta forma a democracia torna-se o mecanismo mais indicado para a produção, reprodução e renovação das elites, tornando-se apenas a forma como estas se legitimam. A separação dos poderes (os poderes são separados porque têm de ser exercidos e não partilhados) torna-se virtual e estes deixam de ter uma actividade autónoma. O pântano toma o lugar da dinâmica democrática e o discurso dominante é sempre o da maioria acéfala, sem vontade própria. A mediocridade passa a ser norma e essa é a condição essencial para que a única realidade na sociedade passe a ser a Economia, asfixiando e subordinando todas as outras esferas da actividade humana. Temos, então, o domínio absoluto do Capital.
 
Um dos males que padece a actividade sindical no presente (sendo este fenómeno mais notório e perceptivel na U.E) reside no facto de marginalizar os assalariados do sector privado, sendo grande parte das suas acções desencadeadas no sector publico. Este fenómeno está, obviamente relacionado, com dois factores principais: a burocratização (factor interno e orgânico do movimento sindical) e a repressão (factor externo ao movimento, levada a cabo pelo patronato, nas suas empresas, embora a actual crise tenha conduzido os Estados a romperem os anteriores contratos sociais e coloquem os assalariados da função publica com o mesmo tipo de problemas).    
 
Hoje, mais do que nunca, torna-se necessário - nas economias capitalistas mais avançadas, onde a crise provoca a falência diária de empresas e a restruturação de actividades profissionais – acções directas que passem pela ocupação das empresas encerradas e pela sua manutenção em posse dos trabalhadores, em regime autogestionário (que pode ser assumido de diversas formas).
 
Acabaram-se os tempos da concertação e esta tornou-se um instrumento de domínio das elites dominantes. Não há nada para concertar, mas há muito transformar. E este pressuposto é válido para os países em desenvolvimento, sejam BRICS ou estejam noutro estágio de maior ou menor desenvolvimento. Não se podem tratar os assalariados como casta inferior – como acontece na India – nem aos tiros – como aconteceu na África do Sul do pós-apartheid racial e institucional. Mas também não pode haver o tratamento abaixo de cão a que os assalariados são sujeitos na grande maioria do continente africano (principalmente onde as estruturas sindicais ou organizativas dos assalariados são ainda incipientes, devido aos mais diversos motivos provocados pelos processos de libertação), com salários em atraso durante meses, sem perspectivas reivindicativas (mesmo que sejam montadas operações propagandísticas que virtualmente fazem passar por consulta exercícios de bajulação ao poder, á burguesia nacional e á elites económicas dos espaços nacionais) e forçados á desqualificação através de contratos ilegais (seja no sector publico ou privado, nas multinacionais ou PME) e ao trabalho precário.
 
Para estes países, para os que querem “crescer economicamente” é bom lembrar que o desenvolvimento não é apenas um factor económico, mas sim integrado. E será bom que não esqueçam, também, que as empresas não são constituídas apenas por factores de capitalização. A riqueza das nações fazem-se com mão-de-obra qualificada, o que implica recursos para a educação, formação, instrução e saúde. E que a saúde está associada a habitação condigna e espaços ambientais bem geridos, para além do fundamental sistema nacional publico de saúde, que permitirá que esta seja um direito acessível a todos, um bem “universal e gratuito” e não “privado e caro” (o mesmo principio deverá ser associado á educação).
 
Já que enveredaram pelo Estado de Direito, cumpram-no. A Democracia, através da soberania popular (as lutas de sempre), fará o resto.    
 
II - O capitalismo do século XXI é cada vez mais etéreo e virtual, algo incorporal, que se manifesta através das verdades absolutas das oscilações bolsistas, num mundo cada vez mais afastado do Homem, um mundo que é produto de uma estranha engenharia financeira, governado a partir de uma “esfera celestial,” inteligível, habitada por pessoas que enriquecem e que se fecham nessa esfera inacessível aos outros, onde tomam decisões que afectam a “esfera inferior” habitada por uma humanidade alimentada de ilusões. É um grande mecanismo de domínio cujo modelo organizacional e comunicacional é desenhado com o objectivo de diluir as manifestações de poder e de comportamento da “esfera celestial” sob a forma imaterial dos novos oráculos: “os mercados reguladores”.   
 
Este endeusamento do capital é efectuado através de uma forma muito curiosa. Já não se prometem paraísos, apenas infernos mais ou menos insuportáveis, em que a Humanidade (os habitantes da “esfera inferior”) sujeita-se ao trabalho cada vez mais precário e a condições de vida cada vez mais deploráveis. Um dos mecanismos mais recentes de precarização é a subcontratação. Teoricamente a subcontratação parte do principio de que a complexidade das actividades produtivas é tal que quanto mais especializada é uma empresa, mais e melhor conhecimento terá da sua actividade especifica e mais produtiva será. Ora a subcontratação permitiria que as empresas se concentrassem nas facetas onde seriam mais produtivas, em função da sua especialidade. Mas este princípio teórico não é, afinal, nem um princípio, nem teoria. É apenas mais um dos oráculos que povoam o imaginário do capitalismo no seculo XXI.
 
Na realidade se a eficiência técnica fosse a razão fundamental do crescimento das cadeias de subcontratação, assistiríamos á proliferação de empresas especializadas negociando entre si e gerando uma complexa actividade produtiva. Mas não é a isso que assistimos. A subcontratação origina uma estrutura empresarial hierarquizada, de mão-de-obra intensiva, de baixo salário e condições laborais precárias. A vida dos trabalhadores de uma empresa subcontratada é marcada por uma dupla submissão: ao seu patrão e ao cliente do seu patrão. O técnico especializado é, desta forma, proletarizado, auferindo baixos salários (muito aquém do salário, prémios e condições que auferiria se estivesse a trabalhar numa multinacional, por exemplo).
 
As empresas subcontratadas movimentam-se no mundo compartimentado da relação hierárquica. Se for uma empresa de limpeza, por exemplo, estará no último escalão hierárquico, pois a sua “especialidade” as suas “skills” o seu “know-how” o “serviço que presta ao seu cliente” é muito mais barato do que o de uma operadora de informática ou de uma operadora de telecomunicações ou de uma prestadora de serviços contabilísticos, administrativos ou de consultoria jurídica ou financeira. Por sua vez emprega, maioritariamente, mão-de-obra-não especializada, que trabalha por um baixo valor num regime muitas vezes de "semi-assalariado". Por outro lado este sistema deixa a nu uma das suas principais razões, quando se afirmou no mercado: a eficiência. É um sistema tão ineficaz como outro qualquer que não altere a sua forma organizacional e a sua composição orgânica.       
 
É evidente que esta forma, a subcontratação é reveladora das muitas mudanças efectuadas nos processos produtivos. Como essas mudanças não foram á raiz do sistema e foram muitas vezes efectuadas por questões de cosmética ou porque era uma forma de rentabilização acrescida, ou, ainda, porque permitia algumas bonificações fiscais, etc., criaram-se sistemas híbridos, geradores de enormes ciclos de crise. A questão central reside no facto de as novas tecnologias aplicadas às actividades económicas terem impactos profundos em conceitos base do sistema capitalista, como a produtividade, a especialização da mão-de-obra, o emprego, as relações de trabalho, a organização, novos conceitos de produção, novos produtos, novos mercados, novas mercadorias, novas actividades, novos sectores, novas formas de distribuição, novas formas de capitalização, novas formas de rentabilidade e de reprodução do capital e toda uma revolução do sistema de trabalho, que tornou obsoleto o anterior aparelho do capital e a sua base sacrossanta: o regime assalariado.
 
Hoje o assalariado é tão inoperativo e com custos tão elevados como outrora foi a mão-de-obra-escrava. Nessa época levantaram-se muitas vozes abolicionistas, não por uma questão humanística e de preocupação com a condição humana, mas porque a mão-de-obra escrava deixou de ser rentável e não tinha aplicação nos novos sistemas industriais. Hoje o assalariado é um peso na estrutura produtiva, não por razões competitivas ou por factores subjectivos criados nos gabinetes da ignobilidade dos Estados e do Capital, mas sim porque tornou-se contraproducente para o factor vital da Economia: a produção.
 
Ao tornar-se desnecessário, o assalariado arrasta com ele toda a estrutura que o criou, na qual se desenvolveu e para a qual contribuiu: o empresário, as relações de produção, o tipo de propriedade, as instituições, o conceito de Estado, a estrutura organizativa macroeconómica e microeconómica, o capitalista, enfim, todo o universo criado pela Revolução Industrial entrou numa acentuada fase de decadência, porque necessita de evoluir, em algos casos metamorfoseando-se, noutros entrando em profunda e acelerada decadência originadora de rupturas radicais e noutros casos assumindo um natural processo de continuidade. Como as anteriores estruturas não são as adequadas para permitirem formas de transição, estas assumem-se num cenário caótico. O próprio mecanismo de renovação, reprodução e de produção de elites (tal como as actuais formas de reprodução do capital) tornou-se obsoleto, pois as elites que produz não são as elites do novo processo, mas sim as do anterior, agora em vias de atingir a inoperacionalidade. Quando isso acontece as elites assumem uma forma oligárquica e tendem a tornar-se corruptas, pois necessitam de todo e qualquer meio que permita a manutenção do seu status, poder e autoridade.           
 
Dentro dos inúmeros processos a que as elites recorrem, a subcontratação e a externalização de serviços são um dos mais correntes. A falência do Estado Social é um facto e não uma andorinha que retorna pela Primavera. A desresponsabilização do aparelho de Estado é uma realidade dos tempos que correm. Ao desresponsabilizar-se os Estados criaram o primeiro mecanismo de externalização. Ao quebrarem o investimento público os Estados realizaram a transferência de responsabilidades para fantasmas como a “iniciativa privada” (que se viu afastada do seu habitat, o mercado) a “sociedade civil” (uma das muitas sopas virtuais criadas pelos cozinheiros vigaristas que pululam pelos corredores do poder e da academia, uma possível invenção do mesmo mestre que criou a sopa da classe média) e outros mitos urbanos da actualidade. Desta forma criou-se um novo lavar de mãos e honrou-se a memória de Pilatos: Consciência suja e mãos limpas.
 
III - O outsourcing desresponsabiliza, descrimina os preços, rentabiliza de uma forma obscura e lida com a questão salarial através da redução do valor, da desvalorização da mão-de-obra, precarizando o trabalho. As empresas privadas e as instituições públicas que recorrem á subcontratação de serviços fazem-no com o objectivo principal de desvalorizar a mão-de-obra, de desprezar as pessoas que exercem a actividade, menorizando o processo trabalho. Esta é forma de espezinhar os direitos, de fazer ver á “gentinha” que “não há almoços gratuitos” e que os “os direitos têm um preço”.
 
Esta atitude de pretensa superioridade, este comportamento de besta-quadrada (é bom não esquecer que a maioria destes mentecaptos que compõem as elites empresariais e que ocupam cargos públicos, são iletrados, semianalfabetos e sem berço, lúmpen arruaceiro e escumalha do mais baixo que pode haver na condição humana, muito distantes da culta aristocracia e da inteligente burguesia mercantil ou da forma de estar no mundo representada pelos sectores que impulsionaram a Revolução Industrial), ignora o valor do trabalho, despreza a cooperação e tem como única obsessão o excedente de lucros. A desigualdade está legitimada – e a caminho da institucionalização – pois essa é a condição única que permite o enriquecimento desmedido.       
 
Este processo passa por uma estranha operação financeira, levada a cabo no longo-prazo, que consiste na liquefação do capital, apenas possível porque o capital já consegue fazer passar os seus interesses por meras “opções técnicas”, debilitando as críticas e transladando o conflito capital/trabalho para a relação súbdito/elite. Existem diversas formas de efectuar este processo de liquefação, sendo as politicas de portas giratórias a sua versão mais evidente, embora existam formas mais sofisticadas que passam pelo estabelecimento de corredores nas instituições de regulação (bancos centrais ou reguladores sectoriais) ou através das “comissões técnicas”, que vitimizam economias como a grega, espanhola e portuguesa.
 
Este desvio, da política para os “experts”, tem duas vantagens, que são utilizadas no conflito social: 1) Os “méritos” profissionais e académicos dos “experts” criam uma espécie de escudo de credibilidade, amortecendo as críticas e dificultando os argumentos dos críticos, tornando-se muito difícil ao cidadão comum o diálogo com tais “sapiências”. É claro que alguns destes “sábios” demonstram apenas uma sabedoria de polichinelo e alguns deles limitam-se a papaguear a mesma coisa durante anos, acabando por acreditar no que dizem (estas espécies são comuns nos meios académicos, consequência negativa da mercantilização do ensino, que levou ao credenciamento de estudantes intelectualmente débeis, tipos que deveriam ficar-se pela formação profissional – honesta, honrada e de grande necessidade - mas que acabaram por entrar nos meios académicos pelas instituições privadas, pagando, é claro). 2) A segunda vantagem é que a ira das vítimas deste processo acaba por recair sobre os políticos que dão a cara, ou sobre o sector financeiro ou a banca, ficando os reais beneficiários a salvo. É claro que estes processos dão-se com a cumplicidade do Estado e dos sectores do capitalismo financeiro, mas estes não são os autores do crime, apenas beneficiam em segundo plano, embora forneçam os mecanismos essenciais á sua execução.   
 
A camuflagem do capital requere aliados e cúmplices, é uma enorme rede de interesses que ultrapassa os limites circunscritos das elites e que contempla processos sociais geradores de uma massa social que legitima o sistema. A velha Europa conheceu um processo similar durante o absolutismo, feito não pela via tecno-burocrática (oligárquica de novo tipo) mas pela via da oligarquia politica (ultrapassada pelos interesses da burguesia industrial e financeira).
 
As tecnologias da segurança, as novas leis de Segurança, os procedimentos de segurança, cada vez mais impeditivos dos direitos básicos da cidadania, que espezinham os direitos individuais e ignoram os direitos sociais (atropelando o Homem como individuo e como cidadão, despersonalizando-o, ou seja atentando contra a “persona”) são uma das formas mais completas deste processo de liquefação do capital. Esta é uma forma multifuncional, que permite operações de liquefação, que simultaneamente é reprodutora de capital e assegura os meios e equipamentos necessários á repressão e á coação, condição indispensável para levar a eito a desvalorização dos salários e tornar comportáveis os custos do assalariado.
 
Interessante mundo, este, que começou com o pão transformado em rosas, iludindo o rei, para terminar com as rosas transformadas em migalhas, para iludir os pobres.
 
Fontes
Lukács Historia y conciencia de clase Nómade, 2013
 
IV - New York, Londres, Paris, Madrid ou Tóquio, são grandes cidades que influenciam o mundo actual nas questões sociais, politicas e culturais, são “cidades globais”, um conceito elaborado pela socióloga Saskia Sassen. Esta concepção de cidade representa um desenvolvimento do conceito utópico de “aldeia global”, elaborado pelo sociólogo canadiano Marshall McLuhan, durante a década de 60. Com a “aldeia global” McLuhan perspectivou a forma como as novas tecnologias da comunicação e da informação (e também as tecnologias do conhecimento) transformam a noção de distância e o relacionamento com lugares e sociedade longínquas    
 
Segundo McLuhan antes do advento das novas tecnologias habitávamos um mundo construido a partir do lugar onde residíamos e donde liamos sobre tempos e lugares distantes e que agora vivemos num aldeia donde nos cruzamos permanentemente com todos os lugares e com todos os tempos, ou seja, vivemos num mundo formado pelo entrecruzamento de espaços diversos, que predominam sobre o nosso espaço de origem. O mundo, segundo esta concepção, seria convertido numa aldeia global e na sociedade despontavam comportamentos tribais.  
 
A ideia de “aldeia global” referia-se á forma como a comunidade mundial, através da tecnologia, supera fronteiras e barreiras para integrar-se social e culturalmente. Além disso, este conceito insinuava que havia um maior interesse em conhecer os vizinhos, os ocupantes dos espaços localizados nos antípodas e que por isso seriam criadas redes de dependências mutuas, de solidariedades, de defesa de valores e interesses comuns, etc..
 
O tempo revelou a fragilidade da utopia da “aldeia global”. O Mundo continua a ser constituído por variados espaços, constituídos por milhares de milhões de pessoas, com diversas formas de relacionamento, desconhecendo-se umas às outras. O que resta deste conceito é o facto de o mundo ser mais interconectado, o que nos permite ser mais conhecedores do outro, influindo e sendo influenciados. Este é um dos processos mais benéficos da globalização: a descoberta da pluridimensionalidade do mundo em que habitamos e a constatação de que afinal é todo o mundo e não o canto minúsculo que habitamos que é nosso, que é Polis, ou seja sentimos que temos uma palavra a dizer sobre as antípodas, porque também são nossas. Acabou a história mal contada de não metermos o nariz nos assuntos internos dos outros povos, porque os outros povos também são o nosso povo e o espaço que ocupam também é o nosso espaço. Tornou-se possível o “mi casa es tu casa” na praxis e não apenas nas boas intenções.  
 
Esta descoberta da pluridimensionalidade do mundo em que habitamos é o factor principal que evita a recolonização cultural, sendo a globalização o único factor que permite a adaptação das culturas locais a partir do seu interior, apreendendo o desconhecido desde a sua concepção orgânica. Esta pluridimensionalidade é captada pelo antropólogo Arjun Appadurai quando refere a “nova economia cultural global” como um “complexo deslocado e repleto de justaposições, que ultrapassam o binómio centro-periferia”.
 
Para trás fica a aldeia global, embora permaneçam as novas formas de ver o mundo a partir do local. As observações de Appadurai são quase exactas num factor: O mundo não uma aldeia global, mas uma rede de aldeias globalmente interconectadas, influenciadoras e influenciadas, não idênticas, mas comuns. O que falhou nesta visão foram dois considerandos: “nova economia cultural” e o descuramento das relações centro-periferia, consideradas como se fossem um binómio. Appadurai considerou existir uma nova economia, quando afinal apenas deslumbrava os escombros da velha economia, só que vistos de uma perspectiva global, o que cria a ilusão de estarmos perante algo de novo, enquanto o que é efectivamente novo (porque muito mais amplas) são as paredes do museu onde os escombros residem. No actual processo de globalização (tal como nos anteriores) nunca existiu “economia cultural”. Anteriores processos de globalização - como os ocorridos com a utilização em grande escala das vias marítimas, iniciada no século XV ou a Revolução Industrial, iniciada no século XVIII – foram preconizadoras de uma nova economia (mas não o actual), mas nunca em tempo algum existiu essa “alucinação” da “economia cultural” por uma razão muito simples: nos processos de globalização a economia autonomizou-se, ao ponto de ser um factor dominante na cultura. É assim que hoje existe uma “cultura da economia” (dominante) mas não “economias culturais”.
 
De qualquer forma os considerandos de Appadurai sobre o conceito de McLuhan levam-nos á teoria da “Sociedade Rede” do sociólogo Manuel Castells, segundo o qual os intermediários do conhecimento, da informação, deixaram de ser necessários, porque existe a possibilidade de cada um mostrar-se ao outro, de relacionar-se directamente e de misturar-se com os demais, sem sair do mesmo lugar. Daqui até ao recente desenvolvimento do conceito de tecno política (a capacidade organizativa mediada pela rede, o padrão de auto-organização politica na sociedade rede, a rede autogestionária) foi um curto passo, apenas possível pela prática - permitida pela globalização - das realidades interconectadas.       
 
Independentemente de vivermos uma etapa de “modernidade liquida” (Bauman), “sobre modernidade” (Augé), ou de “segunda modernidade” (Beck), as relações criadas pelo domínio do Capital mantêm-se intactas, apenas alteradas pelo facto de serem interconectadas. E são estas relações que estão em ruptura com a aplicação tecnológico aos mais diversos níveis das actividades humanas (conhecimento, informação, serviços, sistema produtivo, cadeia de consumo, cadeia distributiva das mercadorias, comércio, agricultura e pecuária, ambiente, recursos naturais, etc.)
 
As estruturas sociais não são independentes da sociedade que as sustenta. A noção de rede, por muito predominante que seja, não substitui a noção de sistema, porque os sistemas delimitam e relacionam elementos de uma mesma realidade, enquanto a rede apenas interrelaciona os elementos da realidade. É evidente que a globalização cria uma dinâmica dialéctica de sistemas de redes e de redes de sistemas, ou seja de complexos de delimitações e de relacionamentos interrelacionados e de inter-relacionamentos de complexos de delimitações.
 
As elites impõem a sua cultura, que por sua vez é absorvida pelas “camadas assimiladas” – as classes, subclasses, clusters e grupos socioprofissionais que formam a “classe média” - impedindo que as massas proletárias construam as suas culturas paralelas, as “contraculturas”. Ao nível das dinâmicas internas esta delimitação é transposta para as dinâmicas externas através dos relacionamentos centro-periferias. Este relacionamento não é um binómio, nem é feito apenas em dois sentidos. O centro impõem a sua cultura às periferias e estas assimilam a cultura do centro, tornando-se menos periféricas á medida que a assimilação da cultura do centro é de maior amplitude e mais periféricas quando existem grandes resistências a essa assimilação. O imperialismo impõe a sua cultura e considera-a universal. O capitalismo impõe a sua realidade e transforma o mundo em Economia.
 
Todos os novos paradigmas confluem num ponto e relevam de uma necessidade única: resolver a decadência de todos os sistemas de actividade e de relacionamento. E isto implica fragmentar o espelho em que se tornou o capitalismo: o domínio pela alienação. Este é o nó górdio que impede a actual sociedade em sair do seu permanente ciclo de crise. E aqui voltamos às cidades globais, pois é nas grandes urbes que desenvolvem-se processos de mestiçagem e de hibridização que enriquecem os relacionamentos e impulsionam transformações da realidade, construindo outros mundos, onde se possa potenciar o conhecimento e as possibilidades das novas tecnologias no processo de trabalho.
 
V - As cidades globais são espaços que representam o fim do Estado-Nação. Este é um fenómeno curioso. Muitas das cidades globais, são cidades capitais, logo politicamente preponderantes nos respectivos ordenamentos territoriais dos Estados-Nação em que estão inseridas. Aliás todas as cidades globais são centros (mesmo que não sejam cidades capitais) políticos ou económicos dos seus respectivos estados. Nenhuma delas é uma cidade periférica e todas encontram-se inseridas em economias capitalistas desenvolvidas. São nestes espaços que o capitalismo actual tem encontrado os seus mecanismos de renovação e são estes espaços que permitem, nos últimos decénios, uma renovação constante das respectivas elites e uma produção eficaz de novas elites cosmopolitas.
 
O Estado-Nação foi o berçário do capitalismo. Este sempre necessitou do âmbito nacional para se implementar como sistema de relações de produção. O espaço internacional serve para a sua expansão mas sem espaço nacional o capitalismo não consegue implementar-se e assim foi durante séculos. Mas nas economias capitalistas desenvolvidas, as grandes cidades transformaram-se em espaços multiculturais, de grande diversidade social e cultural (eram e são o ponto de chegada dos movimentos migratórios internos e simultaneamente albergam numerosas comunidades de imigrantes das mais diversas origens). No contesto macroeconómico do Estado-Nação, a grande cidade era um centro, em torno do qual desenvolviam-se outras cidades (muitas delas cidades-satélites) subsidiarias ou prestadoras de serviços e a paisagem urbana ia diluindo-se através das suas fronteiras com o campo, não de forma abrupta como acontecia em séculos anteriores, mas de uma forma gradual, dinâmica, em perpétua transformação.
 
Hoje a elevada velocidade de circulação dos capitais, a interconexão dos mercados globalizados e uma miríade de outros factores, possibilitam ao capitalismo pós-industrial o seu desenvolvimento de uma forma virtualizada, sem necessitar efectivamente de um grande espaço físico onde as redes microeconómicas e os sistemas macroeconómicos representavam o seu funcionamento orgânico. A forma actual (ainda não predominante, mas a que demonstra maior capacidade de adaptação, maior mobilidade e uma estrutura organizativa flexível, modular) de capitalismo pós-industrial encontra o seu berçário na grande cidade e o desenvolvimento das grandes urbes culmina nas cidades globais e quando isso acontece é ai que reside o núcleo duro das novas elites de mercado, com um elevado nível de qualificação, cosmopolitas e perfeitamente adaptadas aos instáveis ciclos de curta duração que caracterizam os actuais sistemas financeiros.    
 
Se as cidades-globais vão transformar-se ou não em cidades-estado é um assunto da futurologia. O fim do Estado-Nação não implica um regresso às cidades-estado, obrigatoriamente. Nas grandes urbes globais os conflitos são permanentes e de grande amplitude e forte intensidade. As relações entre as diferentes componentes sociais e culturais não são pacíficas ou harmoniosas, como nos contos de fadas, mas de uma extrema complexidade de teias de relacionamento, redes e sistemas. Os Estados-Nações estão condenados, mas podem evoluir para sistemas económicos e políticos integrados, regionalizados. Tudo depende da deslocação do centro e do novo sistema de relacionamento centro-periferia.
 
Por sua vez a guerra de classes irá determinar se o milagre das rosas, actualmente um regaço de migalhas, será transformado num milagre dos micro-chips, ou num novo conto, em que não haverá rei nem rainha, num mundo composto por abundancia em que as rosas, vermelhas, têm o traço do jardineiro e o pão a assinatura do padeiro.
 
VI - Existe um módulo conceptual, teoricamente equidistante e neutro, alimentado por dilemas, binómios, dicotomias funcionais, que fez carreira na filosofia e nas ciências sociais - mas que tem encontrado na Politica um caminho de maior espectacularidade - com várias denominações (moderação, centro politico, bom senso, razão, cordialidade e outros, alguns deles introduzidos pela pós-modernidade), mas todas elas similares em conteúdo e intenção.          
 
Este tipo de conceitos são de grande utilidade no capitalismo e revelaram-se fundamentais para o seu desenvolvimento no Ocidente. As “forças do centro”, nem de direita nem de esquerda (simultaneamente uma mistura das duas, numa busca de “moderação”, ou situando o centro mais a um lado ou mais a outro, como nos caos do “centro-esquerda” ou do “centro-direita”). Tudo o que não é enquadrado nesta definição “moderada” de atitude política é atirado á fogueira e são consideradas “forças radicais, incorrectas e extremistas”.
 
No fundo o “centro” (segundo uns, “politico”, segundo outros, “social”) é uma imensa “Disneylândia” destinada á diversão de eleitores incautos e ao credo de cidadãos distraídos (um imenso espaço de diversão dedicado á classe média) e á sobrevivência de políticos que estão sem lugar nas empresas dos patrões. Servem também (assentando como uma luva) aos académicos bem-falantes e bem pensantes (mas de deficiente intelecto e incapacitados do exercer a critica, porque obriga a pensar com a própria cabeça, a usar os próprios conceitos e a falar as suas próprias palavras).                    
 
Nenhum destes grupos pretende que os conflitos sociais se agudizem, ou que existam grandes transformações (é curioso verificar a agitação que grassa na classe média - preocupada e assumindo comportamentos pouco centristas - europeia, quando verifica que afinal as alterações efectuadas no sistema macroeconómico pelas instancias internacionais financeiras não levam em conta os seus interesses, empurrando-as para a proletarização, ou a reacção apreensiva da classe média nos processos bolivarianos em curso na América do Sul) na sociedade, que para elas é uma imensa palmeira, na base da qual descansam á sombra.
 
Para estes o Estado-Nação é um credo omnipotente, omnipresente e omnisciente. Para além do Estado-Nação é a catástrofe, o caos e a anarquia. Pouco interessa que o Estado-nação seja subserviente ou seja uma província camuflada do Imperio. O que interessa é o discurso anual sobre o estado da nação. Nem que seja para mudar de canal e ver a novela que passa á mesma hora. São tudo produtos do Estado-Nação… 
 
Apesar de toda a aparente moderação do discurso politico “centrista”, o que se esconde por detrás é algo tão aterrador como as fogueiras da inquisição, os barcos dos negreiros ou os campos de extermínio. O “centro” é o pântano, é a vigarice pura, a aldrabice em grande escala, uma burla tornada hábito e ética. Por detrás das palavras do “bom senso centrista” esconde-se um fundamentalismo militante, um integrismo terrorista, cimento da desigualdade e da injustiça social.
 
O “centro” preconiza o “fim da História”, mas acaba por revelar uma história de mau gosto sem fim á vista, como aquelas novelas de infinitos episódios e que um dia acabam como começam, já com outro nome e com outros actores, desempenhando os mesmos personagens.
          
VII - As convulsões sociais em curso na economia-mundo levam o movimento sindical a reconsiderar toda uma série de questões fundamentais, que prendem-se com o seu papel na sociedade, a sua relação com o estado, com as forças politicas, com os movimentos sociais de índole diversa e de interesses diversificados e com as transformações e alterações do aparelho macroeconómico. Os sindicatos são expostos a pressões constantes e cada vez maiores nas últimas décadas. O seu fim já foi anunciado um milhão de vezes, nos palcos dos comícios eleitorais, nos salões das confederações patronais, nos auditórios das academias.
 
Casos houve em que alguns sindicatos passaram de ferramenta de representação dos interesses dos assalariados a instrumentos de silenciamento e manipulação dos mesmos. Durante muito tempo era noticiado com frequência que os sindicatos perderam a confiança dos seus sócios e que revelavam-se incapazes de acompanhar as transformações em curso.
 
Os apressados no fim da História observam com algum espanto que nos casos em que os sindicatos foram tomados por dentro e tornaram-se mecanismos de manipulação de interesses e de silenciamento das revindicações, os trabalhadores acabavam por formar outras estruturas e reunirem-se em torno de outro sindicato. Observaram, espasmados, que afinal os sindicatos não só se adaptaram às novas realidades do capitalismo, como continuam activamente reivindicativos.     
 
As leis que restringem o movimento sindical são cada vez mais sofisticadas e assumem uma nova característica: são “técnicas” (desta forma são “neutras”, diz a (in)sapiência centrista). Revelam-se insuficientes para conter o descontentamento e o mal-estar gerador de revolta e manifestamente incapazes de contornar a questão sindical. Quanto aos sindicatos dependem fundamentalmente da sua capacidade criadora e da sua capacidade de resposta às novas realidades. Dependem de como se situam na cidade global: se a olhar pasmados para as aldeias que preenchem o horizonte paisagístico da cidade, para além dos seus confins, ou se conhecem bem as ruas por onde caminham.
 
É que o milagre das rosas só funcionou porque as rosas eram vermelhas…Tão vermelhas como a roupa do Pai Natal.
 
VIII
Perguntou o rei com voz de trovão: “Que escondeis no vosso regaço?” A rainha levantou a saia e revelou as notas penduradas nas ligas das meias e as entaladas nas cuequinhas, dizendo: “São dólares, senhor, que os euros estão na carteira”.
 
Fora das muralhas do castelo os pobres erguiam uma fortaleza…  
  
Boas Festas!
 
Luanda, Dezembro de 2013
 

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