Manuel Maria
Carrilho – Diário de Notícias, opinião
São coincidências,
mas muitas vezes as coincidências fornecem inesperadas chaves de sentido em
relação àquilo que pode parecer estranho ou inexplicável. Foi aquilo que
aconteceu quando, ao mesmo tempo que François Hollande operava a sua viragem
política, Jean-Louis Servan-Schreiber publicava um estimulante livro sobre o
nosso tempo, que intitulou Porque É Que os Ricos Ganharam.
Todos sabemos que
nas últimas décadas as desigualdades aumentaram no interior de quase todos os
países, apesar de globalmente elas terem diminuído entre eles, sobretudo entre
os países desenvolvidos e os países emergentes. É o aparente "paradoxo da
globalização", a que valerá a pena voltar um destes dias.
O retrato das
desigualdades no mundo foi agora muito falado, devido ao relatório feito pela
Oxfam, que apurou que os 85 mais ricos do mundo têm uma riqueza idêntica à da
metade mais pobre da população. E que quase metade da riqueza mundial está
concentrada nas mãos de apenas 1% da população. Em Portugal, o peso do
rendimento dos mais ricos duplicou desde 1980, tal como aconteceu nos EUA ou na
China.
É hoje consensual
um diagnóstico sobre a evolução das últimas três ou quatro décadas no mundo
ocidental, que aponta para o facto de os salários terem estagnado ou caído,
tendo a sua parte no PIB diminuído constantemente (o que levou boa parte da
classe média a entregar-se à espiral da dívida), tendo-se chegado, por exemplo
nos EUA, ao ponto de 10% dos mais ricos deterem mais de 50% do rendimento
nacional, e 1% dos super-ricos deter quase 25%. São números que, na história
americana, só se encontram se recuarmos quase um século, até...1928!. Não
admira pois que ontem, no seu discurso sobre o estado da Nação, Obama tenha
precisamente assumido o tema das desigualdades como o tema central da sua
intervenção.
Os dados são de tal
modo esmagadores que a reunião anual do Fórum Económico Mundial de Davos se
sentiu este ano obrigada a colocar na sua agenda o tema das desigualdades e as
suas consequências (muito na linha do relatório de outubro do FMI, intitulado
Taxing Times), salientando que elas apontam para um efetivo "risco para a
estabilidade mundial", com destaque para o seu impacto nos jovens, a
"geração perdida" desta nossa desorientada época.
Época que tem
sobretudo de novo, na opinião de Servan--Schreiber, o facto de ser
esmagadoramente dominada por uma ideia, a de riqueza. O que ele defende no seu
mais recente livro é que a obsessão com a crise - financeira, do euro, etc. -
que vivemos há mais de seis anos ocultou o facto de, desde 2000, se assistir a
uma autêntica explosão da riqueza mundial (o número de milionários é hoje de
cerca de 12 milhões), ao mesmo tempo que - embora a pobreza tenha diminuído
numa perspetiva global - as desigualdades aumentaram, atingindo um ponto sem
qualquer precedente histórico.
Este triunfo dos
ricos, que contém em si o risco de convulsões inéditas em sociedades
atravessadas por um forte imperativo de igualitarismo, explica-se, segundo
Servan-Schreiber, por seis ideias nucleares. A primeira é que a riqueza não é
um mero efeito do progresso económico, "ela frutifica no cruzamento de
dois valores-chave do nosso século: o individualismo e o culto do dinheiro"
- basta olhar para quem são hoje os novos "heróis" do nosso tempo
(desportistas, artistas, etc.) para imediatamente o perceber. A segunda é que o
tradicional ressentimento em relação à riqueza se atenuou, e que a exigência de
igualdade, continuando a ser forte, se tem contudo relativizado, sendo cada vez
maior a que incide na igualdade de oportunidades e menor a que se refere à
igualdade de rendimentos. O que se traduz em diversas formas de conformismo
social e no quase desaparecimento das ideologias antirricos, que concebiam a
sociedade dividida entre inimigos de classe.
Pelo contrário - e
esta é a terceira ideia -, os ricos tornaram--se entretanto atores sociais
determinantes, agentes ideologicamente assumidos em torno de uma doutrina, o
liberalismo económico, que, por mais desacreditado que esteja, domina sem
verdadeiro rival no mundo atual. É por isso que vemos cada vez mais as
controvérsias políticas reduzirem-se a meras discussões em torno das
modalidades capazes de atenuar as suas tremendas consequências sociais:
discutem-se remendos, não se contrastam alternativas.
A quarta ideia é
que, num mundo assolado pelo desemprego, as formas de conivência do poder com
quem cria emprego se multiplicaram. Os ricos adquiriram assim um papel público
central, com intervenção na saúde, na educação, na cultura, em tudo.
A quinta ideia é
que, num mundo sem fronteiras, os ricos estão em muito melhor condição do que
os políticos para gerir os problemas atuais: além de em geral estarem mais bem
informados, são mais livres para atuar, sem as limitações territoriais ou
eleitorais que condicionam os políticos. Os ricos são na verdade os únicos a
deter, no mundo de hoje, um poder mundial.
Por fim, a sexta
ideia é que tudo isto lhes permite afrontar e dominar o poder político, mas
fazendo transparecer a ideia que é o contrário que se passa. E, acrescento eu,
os políticos em geral fazem o jogo com a maior das imprudências, falando como
se tivessem o poder de fazer tudo antes das eleições, para depois passarem o
tempo a ziguezaguear quando chegam ao Governo, tentando camuflar não só a sua
frequente incompetência mas sobretudo a sua impotência.
Os políticos
tornam-se, assim, os bodes expiatórios ideais de todas as frustrações e cóleras
dos cidadãos das sociedades contemporâneas. Como há dias dizia Marcel Gauchet,
parece que a classe política europeia "renunciou a pensar o que acontece e
lhe acontece. Não leem um livro há 30 anos, tem-se a impressão de que o que
hoje existe é uma direita de imbecis face a uma esquerda de idiotas."
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