quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

O TRIUNFO DOS RICOS

 

Manuel Maria Carrilho – Diário de Notícias, opinião
 
São coincidências, mas muitas vezes as coincidências fornecem inesperadas chaves de sentido em relação àquilo que pode parecer estranho ou inexplicável. Foi aquilo que aconteceu quando, ao mesmo tempo que François Hollande operava a sua viragem política, Jean-Louis Servan-Schreiber publicava um estimulante livro sobre o nosso tempo, que intitulou Porque É Que os Ricos Ganharam.
 
Todos sabemos que nas últimas décadas as desigualdades aumentaram no interior de quase todos os países, apesar de globalmente elas terem diminuído entre eles, sobretudo entre os países desenvolvidos e os países emergentes. É o aparente "paradoxo da globalização", a que valerá a pena voltar um destes dias.
 
O retrato das desigualdades no mundo foi agora muito falado, devido ao relatório feito pela Oxfam, que apurou que os 85 mais ricos do mundo têm uma riqueza idêntica à da metade mais pobre da população. E que quase metade da riqueza mundial está concentrada nas mãos de apenas 1% da população. Em Portugal, o peso do rendimento dos mais ricos duplicou desde 1980, tal como aconteceu nos EUA ou na China.
 
É hoje consensual um diagnóstico sobre a evolução das últimas três ou quatro décadas no mundo ocidental, que aponta para o facto de os salários terem estagnado ou caído, tendo a sua parte no PIB diminuído constantemente (o que levou boa parte da classe média a entregar-se à espiral da dívida), tendo-se chegado, por exemplo nos EUA, ao ponto de 10% dos mais ricos deterem mais de 50% do rendimento nacional, e 1% dos super-ricos deter quase 25%. São números que, na história americana, só se encontram se recuarmos quase um século, até...1928!. Não admira pois que ontem, no seu discurso sobre o estado da Nação, Obama tenha precisamente assumido o tema das desigualdades como o tema central da sua intervenção.
 
Os dados são de tal modo esmagadores que a reunião anual do Fórum Económico Mundial de Davos se sentiu este ano obrigada a colocar na sua agenda o tema das desigualdades e as suas consequências (muito na linha do relatório de outubro do FMI, intitulado Taxing Times), salientando que elas apontam para um efetivo "risco para a estabilidade mundial", com destaque para o seu impacto nos jovens, a "geração perdida" desta nossa desorientada época.
 
Época que tem sobretudo de novo, na opinião de Servan--Schreiber, o facto de ser esmagadoramente dominada por uma ideia, a de riqueza. O que ele defende no seu mais recente livro é que a obsessão com a crise - financeira, do euro, etc. - que vivemos há mais de seis anos ocultou o facto de, desde 2000, se assistir a uma autêntica explosão da riqueza mundial (o número de milionários é hoje de cerca de 12 milhões), ao mesmo tempo que - embora a pobreza tenha diminuído numa perspetiva global - as desigualdades aumentaram, atingindo um ponto sem qualquer precedente histórico.
 
Este triunfo dos ricos, que contém em si o risco de convulsões inéditas em sociedades atravessadas por um forte imperativo de igualitarismo, explica-se, segundo Servan-Schreiber, por seis ideias nucleares. A primeira é que a riqueza não é um mero efeito do progresso económico, "ela frutifica no cruzamento de dois valores-chave do nosso século: o individualismo e o culto do dinheiro" - basta olhar para quem são hoje os novos "heróis" do nosso tempo (desportistas, artistas, etc.) para imediatamente o perceber. A segunda é que o tradicional ressentimento em relação à riqueza se atenuou, e que a exigência de igualdade, continuando a ser forte, se tem contudo relativizado, sendo cada vez maior a que incide na igualdade de oportunidades e menor a que se refere à igualdade de rendimentos. O que se traduz em diversas formas de conformismo social e no quase desaparecimento das ideologias antirricos, que concebiam a sociedade dividida entre inimigos de classe.
 
Pelo contrário - e esta é a terceira ideia -, os ricos tornaram--se entretanto atores sociais determinantes, agentes ideologicamente assumidos em torno de uma doutrina, o liberalismo económico, que, por mais desacreditado que esteja, domina sem verdadeiro rival no mundo atual. É por isso que vemos cada vez mais as controvérsias políticas reduzirem-se a meras discussões em torno das modalidades capazes de atenuar as suas tremendas consequências sociais: discutem-se remendos, não se contrastam alternativas.
 
A quarta ideia é que, num mundo assolado pelo desemprego, as formas de conivência do poder com quem cria emprego se multiplicaram. Os ricos adquiriram assim um papel público central, com intervenção na saúde, na educação, na cultura, em tudo.
 
A quinta ideia é que, num mundo sem fronteiras, os ricos estão em muito melhor condição do que os políticos para gerir os problemas atuais: além de em geral estarem mais bem informados, são mais livres para atuar, sem as limitações territoriais ou eleitorais que condicionam os políticos. Os ricos são na verdade os únicos a deter, no mundo de hoje, um poder mundial.
 
Por fim, a sexta ideia é que tudo isto lhes permite afrontar e dominar o poder político, mas fazendo transparecer a ideia que é o contrário que se passa. E, acrescento eu, os políticos em geral fazem o jogo com a maior das imprudências, falando como se tivessem o poder de fazer tudo antes das eleições, para depois passarem o tempo a ziguezaguear quando chegam ao Governo, tentando camuflar não só a sua frequente incompetência mas sobretudo a sua impotência.
 
Os políticos tornam-se, assim, os bodes expiatórios ideais de todas as frustrações e cóleras dos cidadãos das sociedades contemporâneas. Como há dias dizia Marcel Gauchet, parece que a classe política europeia "renunciou a pensar o que acontece e lhe acontece. Não leem um livro há 30 anos, tem-se a impressão de que o que hoje existe é uma direita de imbecis face a uma esquerda de idiotas."
 

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