Carlos Reis dos
Santos – Público, opinião
Hesitei em decidir
a quem me dirigir: não sei quem hoje é o mandante da JSD, nem a quem prestam
vassalagem. Assim, terei de me dirigir ao presidente formal da JSD – e a quem
deu publicamente a cara por uma das maiores indignidades que se registaram na
história parlamentar da República.
Para vocês, que
certamente não me conhecem, permitam-me que me apresente: sou militante do PSD,
com o n.º 10757. Na JSD onde me filiei aos 16 anos, fui quase tudo:
vice-presidente, director do gabinete de estudos, encabecei o conselho
nacional, fui quem exerceu funções por mais tempo como presidente da distrital
de Lisboa, fui dirigente académico na Faculdade de Direito de Lisboa, eleito
com a bandeira da JSD, fui membro da comissão política nacional presidida por
Pedro Passos Coelho, de quem, de resto, fui um leal colaborador. Quando saí da
JSD, elegeram-me em congresso como vosso militante honorário.
Por isso julgo
dever dirigir-me a vocês, para vos dizer que a vossa actuação me cobre de
vergonha. E que deslustra tudo o que eu, e tantos outros, fizemos no passado,
para a emancipação cívica, económica, cultural e política, da juventude e da
sociedade.
Com a vossa
proposta de um referendo sobre a co-adopção e a adopção de crianças por casais
de pessoas do mesmo sexo, vocês desceram a um nível inimaginável, ao sujeitarem
a plebiscito o exercício de direitos humanos. A democracia não deve referendar
direitos humanos de minorias, porque esta não se pode confundir com o
absolutismo das maiorias. Porque a linha que separa a democracia do
totalitarismo é ténue – é por isso que a democracia não dispensa a mediação dos
seus representantes – e é por isso que historicamente as leis que garantem
direitos, liberdade e garantias andam à frente da sociedade. Foi assim com a
abolição da escravatura, com o direito de voto das mulheres, com a instituição
do casamento civil, com a autorização dos casamentos inter-raciais, com o
instituto jurídico do divórcio, com o alargamento de celebração de contratos de
casamento entre pessoas do mesmo sexo. Estes direitos talvez ainda hoje não
existissem se sobre eles tivessem sido feitos plebiscitos.
Abstenho-me de
fundamentar aqui a ilegalidade do procedimento que se propõem levar avante: a
violação da lei orgânica do referendo é grosseira e evidente – misturaram numa
mesma proposta de referendo duas matérias diferentes e nem sequer conexas.
Porque adopção e co-adopção são matérias que vocês pretendem imoralmente enfiar
no mesmo saco.
Em matéria de
co-adopção vocês ignoram ostensivamente o superior interesse das crianças já
criadas em famílias já existentes e a quem hoje falta a devida segurança
jurídica e protecção legal. Ao invés, vocês querem que os seus direitos sejam
referendáveis. Confesso que me sinto embaraçado e transido de vergonha pela
vossa atitude: dispostos a atropelarem o direito de umas poucas crianças e dos
seus pais e mães, desprotegidos, e em minoria, em nome de uma manobra política.
E isto é uma vergonha.
Mas é também com
estupefacção que vejo a actual JSD tornar-se numa coisa que nunca foi – uma
organização conservadora, reaccionária e atávica. Vocês empurram, com enorme
desgosto meu, a JSD para uma fronteira ideológica em contradição com a nossa
História e ao arrepio do nosso património de ideias e valores: o humanismo em
matéria de liberdades individuais sempre foi nossa trave mestra. O que vocês
propõem é uma inversão de rumo: conservadores na vida familiar mas liberais na
economia. Eu e alguns preferimos o contrário. Porque o PSD, em que nos revimos,
sempre foi o partido mais liberal em matéria de costumes e em matérias de
consciência.
Registo, indignado,
o vosso silêncio cúmplice perante questões sacrificiais para a juventude
portuguesa. Não vos vejo lutar contra o corporativismo crescente das ordens
profissionais e a sua denegação do direito dos jovens a aceder às profissões
que escolheram. Não vos vejo falar sobre a emigração maciça que nos assola. Não
vos vejo preocupados com muitas outras questões.
Mas vejo-vos a
querer que eu decida o destino dos filhos dos outros.
Na JSD em que eu
militei sempre fomos generosos: queríamos mais direitos para todos. Propusemos,
entre tantas coisas, a legalização do nudismo em Portugal, o fim do SMO, a
despenalização do consumo das drogas leves, a emancipação dos jovens menores e
o seu direito ao associativismo. Nunca nos passaria pela cabeça querer limitar
direitos.
Hoje vocês não se
distinguem do CDS e alguns de vocês nem sequer se distinguem da Mocidade
Portuguesa, ou melhor, distinguem-se, mas para pior.
A juventude já vos
não liga nenhuma. E eu também deixei de vos ligar.
Jurista, militante
do PSD n.º 10757 e militante honorário da JSD
Na foto: Duarte Marques, presidente da JSD, mais um aldrabão fascizante no PSD. (PG)
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