quarta-feira, 1 de maio de 2024

Do Dia do Trabalhador ao "trabalhador do dia" e vice-versa

Morreram a lutar pela vida, por uma míngua de descanso pessoal e de disponibilidade para a família, por porem cobro a jornadas de trabalho que podiam ir até às 12, 14 e mesmo 16 horas por dia.

João Fraga de Oliveira | AbrilAbril | opinião

1º de Maio de 1886. Nesse sábado e nos dias seguintes, em Chicago, nos Estados Unidos da América, dezenas de pessoas foram feridas e mortas pela polícia. Massacradas por se unirem numa greve a reclamarem por algo que hoje, no trabalho, não só é elementar como direito ao descanso mas, mesmo, um abuso (por regra, em pelo menos 4 horas semanais) desse direito: a limitação do horário de trabalho a oito horas diárias e 48 horas semanais.

Então, há 138 anos, o Trabalhador (ainda) não tinha Dia. Era um trabalhador «sem dia». E até sem horas. Para a família, para dormir, até para comer. Enfim, porque o tempo é (a) vida, para viver. Mas lutar pela vida pode ter por risco a morte. 

Morreram a lutar pela vida, por uma míngua de descanso pessoal e de disponibilidade para a família, por porem cobro a jornadas de trabalho que podiam ir até às 12, 14 e mesmo 16 horas por dia.

A História regista esse período em que, contexto da chamada Revolução Industrial, preponderava o ultraliberalismo económico («neutralidade do Estado») e, daí, falta de regulamentação (consagração legal de direitos e obrigações), logo, de regulação das chocantes desigualdades sociais de que é instrumento a exploração laboral desenfreada: salários miseráveis, trabalhos penosos e insalubres, condições de segurança e saúde no trabalho e horários de trabalho desumanos, trabalho infantil. 

Enfim, exploração, desumanização e submissão extrema dos trabalhadores, assentes (ainda) na concepção (da qual, ainda que em novas formas, há evidentes sinais de recrudescimento) do trabalho como uma mercadoria1 como qualquer outra e não como consubstanciando-se nas pessoas que o realizam.

O Trabalhador, ainda que com sangue, acabou por conseguir o seu Dia2 e, em resultado da sua organização e luta como colectivo e do envolvimento de instituições internacionais e europeias e da própria Igreja, em cada vez mais países, o Estado alterou a sua posição «neutral» perante essa importantíssima Questão Social, sendo que – sintetizando toda uma evolução legislativa, institucional, cultural, económica, social e política até aos dias de hoje – isso levou ao progressivo reconhecimento e enquadramento institucional e político-legal do trabalho como central e determinante nas condições de vida de cada um e, por isso, na sociedade.

Contudo, porque até poucos dias antes de há precisamente 50 anos e então desde há pelo menos 48 anos, (ainda) vinha de um trabalho em que a qualquer momento e sem explicação ou causa (justa ou injusta) podia ir para «o olho da rua» (ou até preso, se reclamasse muito), de facto, com o significado de se reconhecer e ser reconhecido e respeitado como pessoa e cidadão livre no seu trabalho, o Trabalhador continuava sem o seu «Dia». 

Por isso, nesse Primeiro de Maio como Dia do Trabalhador de há meio século, ainda que não tendo passado pela prévia violência e morte de há 138 anos, o Trabalhador acreditou com convicção na esperança do direito exercício de um trabalho seguro, reconhecido e recompensado dignamente e sem a incerteza, o medo de ter sempre a vida (o sustento, a família, a dignidade), sob a ameaça do «olho da rua» ou da prisão. 

E daí que se emocionasse, empolgasse, ao reconhecer-se nessa esperança generalizada e exuberantemente expressa em massa nas ruas e praças do país. Na esperança de, também em Portugal, finalmente, tal dia, tendo por sustentação e horizonte aqueles dois dos três DD – Democracia e Desenvolvimento – referências essenciais do Vinte e Cinco de Abril de uma semana antes e com significado substantivo nas suas condições de trabalho e de vida, passar doravante a ser o seu dia, o Dia do Trabalhador. 

Mas agora, 1 de Maio de 2024, não obstante também ser uma quarta-feira como há 50 anos e do reconhecimento do progresso social e político no trabalho que a Democracia impulsionou, novamente e já desde há umas décadas o aflige e revolta a dúvida de se tal dia lhe significa ser (ainda) o Dia do Trabalhador, naquele seu genuíno sentido social, de identidade colectiva no e pelo trabalho. Ou se, com tal identidade progressivamente «esmigalhada» (parafraseando Georges Friedman há 70 anos), por «flexibilizações» legais e de facto assentes em privatizações, reestruturações e externalizações de toda a ordem, lhe passou a ter um significado meramente individual(izado): o de ele próprio, tal como cada um dos trabalhadores em geral, ter passado a ser o «trabalhador do dia»: um dia, um; outro dia, outro; outro dia, outro...

O significado e a incerteza de um trabalho (logo, uma vida) a prazo, temporário, ou em variantes esquisitas, como a de «esverdeado» por um recibo falso ou tendo por patrão um algoritmo. Enfim, uma vida que pela precariedade do que lhe é sempre central como suporte e condicionante – o trabalho –, se torna também cada vez mais permanentemente precária em tudo o que dia-a-dia a consubstancia: saúde, educação, alimentação, habitação, cultura, participação social. Em síntese, na «liberdade a sério».

O significado de que a esperança assente nas expectativas deste Dia, há 50 anos, retrocedeu em não poucos domínios das suas condições de trabalho. Inclusive, para além das desigualdades sociais (em que os baixos salários suportam lucros desproporcionados e «extraordinários» por tão exorbitantes) que recrudescem, até pelo menos num que então foi o essencial da luta desses trabalhadores em Chicago, há 138 anos: a sobre-intensificação do trabalho.

De facto, quanto a não poucos trabalhadores, quer na duração, quer agora mais no ritmo e organização do tempo de trabalho praticado (que não é garantido ser o legalmente previsto e registado), a inovação tecnológica (e nomeadamente a «digitalização» do controle e avaliação do desempenho) e  gestionária, com consequências humanas e sociais (desde logo na saúde pessoal e pública) estudadas e evidenciadas, têm vindo a acentuar a sobre-intensificação do trabalho, quer físico, quer mental.

Daí que seja humana, social e politicamente legítimo, mesmo indispensável na perspectiva de melhoria das condições de trabalho (de um Trabalho Digno) e até da economia (em qualquer organização, qualidade e produtividade variam na razão directa de salários e condições de trabalho dignas), que os «trabalhadores do dia» de hoje (e de amanhã), assentes na realidade mas também na memória e na História, se (re)únam e (re)organizem na criação de condições que, nessa perspectiva, confiram de novo significado, como há 50 anos, ao Dia do Trabalhador.

Notas:

1. «O trabalho não é uma mercadoria» é, desde 10/05/1944, com a Declaração de Filadélfia, na 26.ª Conferência da OIT, o primeiro dos princípios fundamentais da Constituição desta organização internacional.

2. Breve síntese histórica, instituído a nível internacional em 1889 pela Segunda Internacional Socialista, em Portugal, o Dia do Trabalhador, passou a assinalar-se como feriado em 1890 e, depois de durante 48 anos reprimida a sua manifestação como tal pela polícia política da ditadura, pela primeira vez em liberdade conferida pela democracia, em 1 de Maio de

Sem comentários:

Mais lidas da semana