Luiz Inácio Lula da
Silva* - Adital – em Pátria Latina
Grandes crises
institucionais e catástrofes naturais levam países às manchetes em todo o mundo
e despertam durante algum tempo a atenção da imprensa internacional e dos
governantes. Mas depois, sobretudo se o país vitimado é pobre e periférico, sem
peso no jogo geopolítico global, os holofotes se apagam, as notícias se tornam
cada vez mais raras, o clamor de solidariedade arrefece e boa parte das
promessas de apoio são esquecidas. Até porque a reconstrução das áreas atingidas
e a solução real dos problemas de suas populações não acontece, obviamente, na
mesma velocidade com que as notícias são difundidas na internet e na televisão.
Exige uma atuação paciente e continuada, com inevitáveis altos e baixos, ao
longo de anos, que vá muito além do socorro humanitário. E isso supõe um forte
compromisso ético e político dos países envolvidos.
Vale a pena lembrar
que, no primeiro semestre de 2004, o Haiti sofreu uma gravíssima crise política
que resultou na queda do Presidente Jean-Bertrand Aristide e na disputa pelo
poder entre diversos grupos armados, sacrificando brutalmentea população civil.
A violência e os atentados aos direitos humanos se generalizaram. Gangues de
delinquentes passaram a agir livremente em Porto-Príncipe, apoderando-se
inclusive de prédios e órgãos públicos. Alguns dos maiores bairros da capital,
como Bel-Air e Cité Soleil, foram completamente dominados por facções
criminosas. Na prática, o Estado democrático entrou em colapso, incapaz de
garantir condições mínimas de segurança e estabilidade para que o país
continuasse funcionando.
A pedido do governo
haitiano, e com base em resolução do Conselho de Segurança, a ONU decidiu
enviar ao país uma Missão de Paz e Estabilização – a MINUSTAH. Um general
brasileiro comanda a componente militar da missão, que conta com soldados de
dezenas de países, e é integrada majoritariamente por tropas de nações
sul-americanas.
O Brasil e seus
vizinhos aceitaram a convocação da ONU por um imperativo de solidariedade. Não
podíamos ficar indiferentes à crise político-institucional e ao drama humano do
Haiti. E o fizemos convictos de que a tarefa da MINUSTAH não se limitava à
segurança, mas abrangia também o fortalecimento da democracia, a afirmação da
soberania política do povo do Haiti e o apoio ao desenvolvimento sócio-
econômico do país. Daí a atitude respeitosa e não truculenta – de verdadeira
parceria com a população local – que tornou-se sua marca registrada.
Hoje a situação de
segurança se transformou profundamente: os riscos de guerra civil foram
neutralizados, a ordem pública restabelecida e os bandos de delinquentes
derrotados. O país foi pacificado e o Estado reassumiu o controle de todo o
território nacional. Além disso, a MINUSTAH tem contribuído para equipar e
treinar uma força haitiana de segurança.
As instituições
democráticas voltaram a funcionar e estão se consolidando. Já em 2006, foram
realizadas eleições gerais no Haiti, com a participação de todos os setores
políticos e ideológicos interessados. Sem interferir na disputa eleitoral, a
MINUSTAH garantiu a tranquilidade do pleito e que prevalecesse a vontade
popular. O presidente eleito, René Préval, apesar de todas as dificuldades,
cumpriu integralmente o seu mandato e, em 2011, transmitiu o cargo ao seu
successor, Michel Martelly, também escolhido pela população.
Na esfera
humanitária e social, conseguiu-se algumas melhorias significativas, ainda que
persistam enormes desafios e que o terremoto de 2010, com sua onda de
destruições, tenha comprometido parte do esforço anterior, gerando novas
carências. Apesar de tudo, a população desabrigada, segundo relatório da ONU de
2013, caiu de 1,5 milhões de pessoas para 172 mil. Três em cada quatro crianças
já frequentam regularmente a escola fundamental, frente a menos da metade em
2006. A insegurança alimentar foi drasticamente reduzida. O flagelo do cólera
está sendo enfrentado.
Nas três vezes em
que visitei o Haiti, pude testemunhar a capacidade de resistência e a dignidade
do seu povo. Em 2004, a seleção brasileira de futebol esteve no país para um
jogo amistoso com a seleção local em prol do desarmamento. Até hoje me comovo
ao lembrar o carinho com que a população haitiana recebeu os nossos atletas.
Além de sua
participação na MINUSTAH, para a qual contribui com o maior contingente de
soldados, o Brasil tem colaborado intensamente com o povo do Haiti na àrea
social. Com recursos próprios ou em parceria com outros países, implementou uma
série de programas que vão desde campanhas nacionais de vacinação até o apoio
direto à pequena e média empresas e à agricultura familiar, passando pela
alimentação escolar e a formação profissional da juventude.
Há três iniciativas
brasileiras, entre outras, que me entusiasmam particularmente. Uma são os três
hospitais comunitários de referência, construídos junto com Cuba e o próprio
governo do Haiti, para atender às camadas mais pobres da população. Outra é um
projeto inovador de reciclagem de resíduos sólidos, elaborado e executado pelo
grupo IBAS (Índia, Brasil e África do Sul), que contribuiu ao mesmo tempo para
a limpeza urbana, a geração de energia e a criação de empregos. Essa inciativa
foi, inclusive, premiada pela ONU. E a terceira é o projeto de construção de
uma usina hidrelétrica no Rio Artibonite, que certamente representará um salto histórico
na infraestrutura do país, ampliando o acesso da população à eletricidade,
favorecendo a agricultura e a indústria, e permitindo ao Haiti reduzir a sua
dependência da importação de petróleo. Trata-se de um empreendimento para o
qual o Brasil já elaborou os projetos de engenharia e doou 40 milhões de
dólares (1/4 do seu valor total) que estão depositados num fundo especifico do
Banco Mundial, esperando que outros países completem os recursos necessários
para a execução da obra.
Alguns países
desenvolvidos também tem apoiado ativamente a reconstrução do país. Os Estados
Unidos, por exemplo, investiram recursos significativos em diversos projetos
econômicos e sociais, a exemplo do polo industrial de Caracol, no norte do país.
Mas, infelizmente,
nem todos os que se comprometeram com o Haiti cumpriram as suas promessas. A
verdade é que a maioria dos países ricos tem ajudado muito pouco o Haiti. O
volume de ajuda humanitária está diminuindo e há entidades de cooperação que
começam a retirar-se do país. A comunidade internacional não pode diminuir a
sua solidariedade ao Haiti.
Em 2016 deverá
ocorrer a próxima eleição presidencial no país. Será o terceiro presidente
eleito democraticamente desde 2004. Penso que este momento deve ser um marco no
processo já iniciado de devolução ao povo haitiano da responsabilidade plena
pela sua segurança. Mas isso só será possível se a comunidade internacional
mantiver – e se necessário, ampliar – os recursos financeiros e técnicos
destinados à reconstrução do país e ao seu desenvolvimento econômico e social.
Devemos substituir
cada vez mais a vertente da segurança pela vertente do desenvolvimento. O que
implica em maior cooperação, ainda que com novas finalidades. Será que não está
na hora das Nações Unidas convocarem uma nova Conferência sobre o Haiti, para
discutirmos francamenteo que foi feito nesses dez anos e o que fazer daqui para
a frente?
*Luiz Inácio Lula
da Silva é ex-presidente do Brasil
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