REDESCOBRIR A
HISTÓRIA
Martinho Júnior, Luanda (ver relacionados anteriores)
7 – De todos os
deserdados, os escravos das Caraíbas foram dos mais oprimidos e desamparados
seres humanos que alguma vez habitaram à face da Terra!
O desamparo
contemporâneo do Haiti, à mercê dos critérios dum império egoísta e usurpador,
é também reflexo desse passado… tudo feito em nome duma “ocidental
civilização”…
Os ecos da
revolução haitiana, ainda que de forma ténue na maior parte dos casos, chegam à
América Latina e Caribe, como a África.
Com as sucessivas
colonizações espanhola, inglesa e francesa nos séculos XVI, XVII e XVIII, a
Hispaniola (São Domingos) foi transformada numa pródiga ilha produtora de
açúcar, de café e de algodão, tão pródiga que nos séculos XVII e XVIII afluíam
à ilha mais barcos que ao porto de maior movimento em França: Marselha!
Era esse o destino
das ilhas Atlânticas, das Caraíbas, como na costa ocidental africana, de
Fernando Pó e São Tomé e Príncipe.
Para que São
Domingos fosse tão pródiga, o segredo maior era a enorme massa de escravos que
foram sendo acantonados nas ilhas do Caribe: mão-de-obra barata e sujeita à lei
do chicote, da tortura, da morte e… dum silêncio que só era desbloqueado pelas
rivalidades entre os colonizadores e escravocratas de então, por causa das suas
próprias disputas… ou pelos rasgos da pirataria que ia enfestando os mares!
O Haiti foi, sob o
ponto de vista histórico e humano, das primeiras ilhas bloqueadas e remetidas
ao silêncio!... e essa é uma das heranças que se reflectiu no ambiente internacional
que chegou ao nossos dias… recentemente, foi preciso um terrível terramoto para
o contrariar!
Na segunda metade
do século XVIII, muitos escravos libertos integraram os grupos de corsários nas
Antilhas e em 1776, 500 dos que viveram essa experiência aliaram-se, na
Geórgia, aos que combatiam pela independência dos próprios Estados Unidos da
América!
O terramoto humano
no Haiti acabou por surgir ainda em finais do século XVIII e, para que não
houvesse a lei do silêncio em tempo de revolução, contribuíram os feitos da
revolução francesa e os actos dos escravos ciosos de liberdade não só no Haiti,
mas a cavalo na pirataria que infestava os mares das Antilhas, que a norte
ganhava com a luta pela independência dos Estados Unidos!...
8 – Para que o
escravo atirado pelos amos para uma subespécie humana acordasse de sua
submissão crónica, de sua letargia e procurasse sair do jugo, na “metrópole”
francesa de então, ocorreu uma revolução, em nome da “LIBERDADE, IGUALDADE E
FRATERNIDADE”: “tous les Hommes naissent et demeurent libres et égaux en
droits”!
A Declaração dos
Direitos do Homem, do Cidadão e das Nações, está na base da revolução do
pensamento e estimulou as revoluções, de modo que a fronteira entre a luz e a
sombra, alimentada por contradições humanas tão radicais, ficou bem demarcada e
definida, até aos nossos dias, linha de pensamento que foi aproveitada, entre
outros, por Marx, Engels e Lénin, apesar de não se terem apercebido
suficientemente, na época em que viveram, do desencadear dos fenómenos a sul!
Foi a partir da luz
produzida pelos pensadores, pela revolução francesa, que os poucos escravos
letrados tiveram a oportunidade de beber e traduzir os ecos da revolução à
letra e no seu espírito, num tão decidido quão inequívoco “LIBERDADE OU MORTE”!
Foi assim a
primeira revolução no “Terceiro Mundo” e a sua centelha partiu dum homem
letrado, feito escravo desde que fora capturado em África: Bookman.
Ele pregou aos
escravos fugidos para as florestas da Hispaniola, a partir de seus próprios
conhecimentos do Corão e das luzes francesas, a 14 de Agosto de 1791: em
resultado da fúria assim desperta e desencadeada, 15.000 colonizadores brancos
foram mortos a 20 de Agosto de 1791 nos alvores da revolução no Haiti!
A partir daí nada
mais fez parar os escravos negros arrancados à força de África e eles partiram
em busca da “LIBERDADE OU MORTE”!
Essa chispa seria
logo depois transmitida a toda a América, num longo parto, sangrento mas
imparável, que resultou na descolonização do continente!
O silêncio entre os
oprimidos teve então seus dias contados…pelo menos enquanto duraram os ecos da
revolução por toda a América!...
O silêncio dos
opressores foi uma constante até hoje: quando se comemorou o centenário do
Haiti, até o documento da Declaração da Independência estava perdido e só foi
descoberto mais de cem anos depois, após uma intensa pesquisa levada a cabo por
vários peritos e investigadores, durante décadas!... foi descoberto a partir de
pistas em arquivos existentes na Jamaica e mais tarde em arquivos históricos
existentes em Londres (incluindo o hino do Haiti composto em 1804)!
A Declaração de
Independência do Haiti original que foi descoberta em Londres pela
investigadora Julia Gaffield, era um documento de oito páginas, com três
partes: a Declaração de Independência, a Proclamação ao Povo do Haiti do
General-em-Chefe Jean-Jacques Dessalines e a nomeação de Dessalines como
Governador-Geral do Haiti!
Depois, já no
Haiti, a mesma investigadora detectou outro documento de uma página, referente
ainda à Declaração de Independência do Haiti!...
Ela só conseguiu
êxito nas suas pesquisas por que considerou e bem, a Revolução do Haiti como de
importância para todo o Atlântico, o que determinou as suas pesquisas da
Jamaica à Dinamarca!...
… Em África, os
reflexos ocorreram apenas no século XX e tiveram como corolário, não só o fim
do colonialismo numa longa luta de libertação, mas também o fim do “apartheid”!
Foi só com o fim do
“apartheid” que se conseguiu aplicar uma das principais conquistas da revolução
francesa: “tous les Hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits”!
9 – Na revolução do
Haiti, após a revolta desencadeada por Bokkman, surgiu um comandante, Toussaint
de seu nome e L’Overture… por que era, a partir de então, “aquele que abria as
portas”!
Dos escravos
libertos ele ciou um exército, mas foi para além disso um guia e político:
transformando as fraquezas em forças, aliou-se sucessivamente a uns para
derrotar os outros… até finalmente derrotar as forças napoleónicas na
Hispaniola, que após alguns sucessos iniciais, acabaram dizimadas!
Napoleão Bonaparte
enviou o melhor de suas tropas para o Haiti, uma vez que representava os
interesses da burguesia francesa, a fim de subjugar a revolução: conseguiu
aprisionar Toussint L’Overture e mandá-lo para França onde veio a morrer, mas
outros seguiram-se-lhe e vieram a derrotar as tropas francesas; entre eles
sobressaiu Dessalines, a primeira das assinaturas da Declaração de
Independência do Haiti a 1 de Janeiro de 1804, logo a seguir ao desastre da
derrota francesa!
Em 13 anos a
revolução dos escravos do Haiti derrotou as tropas de Espanha, de Inglaterra e
de França, sucessivamente!
Assim nasceu o
Haiti, o espírito de revolução que inundou a América e o que se lhe seguiu, que
esteve na origem da sua descolonização… até os ecos ressurgirem em África já na
segunda metade do século XX!
Entre 1815 e 1820
Simon Bolivar manteve contactos com a revolução no Haiti, onde buscou meios e
forças para levar avante a sua saga na América do Sul.
Em 1850 os
haitianos aliaram-se aos abolicionistas nos Estados Unidos da América.
O grito de
“LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE” deixou assim de ser um grito exclusivo
dos povos do norte, dos brancos e passou a ser assim um grito de toda a
humanidade!
Na ideologia da
“civilização ocidental” (e da própria NATO), manipulada pelas elites brancas do
norte, é muito lembrada a inter-influência da revolução francesa nas lutas pela
independência dos Estados Unidos da América, por exemplo, quanto a Declaração
de Independência dos Estados Unidos da América de 1776 influenciou nas
discussões das leis que animaram a revolução francesa em 1789… mas esquece-se
deliberadamente da influência que a revolução francesa teve na revolução do
Haiti, até por que escravos e ameríndios estavam fora de questão para os
progressistas da época, em ambos os lados do Atlântico!
A manutenção do
colonialismo em África, após a Conferência de Berlim, deve-se a esse silêncio
cultivado década após década!
É quem sustenta
ideologicamente a continuidade da “civilização ocidental” nos termos dessa
discriminação que procura o silêncio até aos nossos dias: não é por acaso a
trajectória de emergência e ocaso do “apartheid” na África do Sul?!
10 – É o
conhecimento dessa trilha que levou a revolução cubana a ser tão consequente em
relação a África e a impor-se sob o ponto de vista ético e moral por todo o
mundo progressista, bem como nos relacionamentos internacionais, em especial
entre os países do sul, entre os quais o próprio Haiti!
A revolução cubana
entendeu-o também por que em Santiago de Cuba e em todo o oriente da maior das
Antilhas, muitos dos revolucionários cubanos beberam das tradições do Haiti que
ali chegaram por via da migração!
O comandante Fidel
de Castro foi o advogado que defendeu essa trilha e o Che foi, com Jorge Risquet,
um dos que esteve nos caboucos desse impulso em África!
Essa é a razão por
que argumento, da necessidade e a urgência da presença de Cuba na CPLP, a
convite dos componentes do sul, membros da própria CPLP!
As razões
históricas da “Operação Carlota”, transbordaram do Haiti, do Brasil e de Cuba,
para África, no lançar do movimento de libertação e do início da bandeira e
soberania de Angola!
O Brasil foi o
primeiro país a reconhecer a independência e a soberania de Angola, por que o
Brasil é um dos profundos conhecedores das sagas da escravatura, do
colonialismo e do “apartheid”!
Cuba merece por
mérito histórico, e por intrínseco valor ético e moral nos seus relacionamentos internacionais atlânticos e em África, fazer parte da CPLP e ser um observador
privilegiado da União Africana: “PÁTRIA É HUMANIDADE”!
Gravura: Uma alusão ao
“LIBERDADE OU MORTE” da revolução dos escravos do Haiti, que culminou com a
Independência do Haiti!
Artigos publicados
por Martinho Júnior:
- As muitas lições
do Haiti – http://paginaglobal.blogspot.com/2011/05/as-muitas-licoes-do-haiti.html
- Vencer os traumas
– http://pagina--um.blogspot.com/2011/04/vencer-os-traumas.html
- Memória da
escravatura e da sua abolição – http://paginaglobal.blogspot.pt/p/memoria-da-escravatura-e-da-sua-abolicao.html
- O desafio das
“terras montanhosas” – I – II – http://paginaglobal.blogspot.com/2012/06/os-desafios-das-terras-montanhosas-i.html;
http://paginaglobal.blogspot.com/2012/06/os-desafios-das-terras-montanhosas-ii.html
Outras consultas:
. Declaração de
independência do Haiti – http://theappendix.net/issues/2014/1/haitis-declaration-of-independence-digging-for-lost-documents-in-the-archives-of-the-atlantic-world
. Haitian
Independence – http://library.brown.edu/haitihistory/11.html
. Haiti’s
Declaration of Independence: Digging for Lost Documents in the Archives of the
Atlantic World – http://theappendix.net/issues/2014/1/haitis-declaration-of-independence-digging-for-lost-documents-in-the-archives-of-the-atlantic-world
. Pour la mémoire
et pour l’histoire – http://www.haitiinfos.org/archives_avril09.html
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