sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

HAITI – UMA CONTAGIOSA REVOLUÇÃO




REDESCOBRIR A HISTÓRIA

Martinho Júnior, Luanda (ver relacionados anteriores)

7 – De todos os deserdados, os escravos das Caraíbas foram dos mais oprimidos e desamparados seres humanos que alguma vez habitaram à face da Terra!

O desamparo contemporâneo do Haiti, à mercê dos critérios dum império egoísta e usurpador, é também reflexo desse passado… tudo feito em nome duma “ocidental civilização”…

Os ecos da revolução haitiana, ainda que de forma ténue na maior parte dos casos, chegam à América Latina e Caribe, como a África.

Com as sucessivas colonizações espanhola, inglesa e francesa nos séculos XVI, XVII e XVIII, a Hispaniola (São Domingos) foi transformada numa pródiga ilha produtora de açúcar, de café e de algodão, tão pródiga que nos séculos XVII e XVIII afluíam à ilha mais barcos que ao porto de maior movimento em França: Marselha!

Era esse o destino das ilhas Atlânticas, das Caraíbas, como na costa ocidental africana, de Fernando Pó e São Tomé e Príncipe.

Para que São Domingos fosse tão pródiga, o segredo maior era a enorme massa de escravos que foram sendo acantonados nas ilhas do Caribe: mão-de-obra barata e sujeita à lei do chicote, da tortura, da morte e… dum silêncio que só era desbloqueado pelas rivalidades entre os colonizadores e escravocratas de então, por causa das suas próprias disputas… ou pelos rasgos da pirataria que ia enfestando os mares!

O Haiti foi, sob o ponto de vista histórico e humano, das primeiras ilhas bloqueadas e remetidas ao silêncio!... e essa é uma das heranças que se reflectiu no ambiente internacional que chegou ao nossos dias… recentemente, foi preciso um terrível terramoto para o contrariar!

Na segunda metade do século XVIII, muitos escravos libertos integraram os grupos de corsários nas Antilhas e em 1776, 500 dos que viveram essa experiência aliaram-se, na Geórgia, aos que combatiam pela independência dos próprios Estados Unidos da América!

O terramoto humano no Haiti acabou por surgir ainda em finais do século XVIII e, para que não houvesse a lei do silêncio em tempo de revolução, contribuíram os feitos da revolução francesa e os actos dos escravos ciosos de liberdade não só no Haiti, mas a cavalo na pirataria que infestava os mares das Antilhas, que a norte ganhava com a luta pela independência dos Estados Unidos!...

8 – Para que o escravo atirado pelos amos para uma subespécie humana acordasse de sua submissão crónica, de sua letargia e procurasse sair do jugo, na “metrópole” francesa de então, ocorreu uma revolução, em nome da “LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE”: “tous les Hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits”!

A Declaração dos Direitos do Homem, do Cidadão e das Nações, está na base da revolução do pensamento e estimulou as revoluções, de modo que a fronteira entre a luz e a sombra, alimentada por contradições humanas tão radicais, ficou bem demarcada e definida, até aos nossos dias, linha de pensamento que foi aproveitada, entre outros, por Marx, Engels e Lénin, apesar de não se terem apercebido suficientemente, na época em que viveram, do desencadear dos fenómenos a sul!

Foi a partir da luz produzida pelos pensadores, pela revolução francesa, que os poucos escravos letrados tiveram a oportunidade de beber e traduzir os ecos da revolução à letra e no seu espírito, num tão decidido quão inequívoco “LIBERDADE OU MORTE”!

Foi assim a primeira revolução no “Terceiro Mundo” e a sua centelha partiu dum homem letrado, feito escravo desde que fora capturado em África: Bookman.

Ele pregou aos escravos fugidos para as florestas da Hispaniola, a partir de seus próprios conhecimentos do Corão e das luzes francesas, a 14 de Agosto de 1791: em resultado da fúria assim desperta e desencadeada, 15.000 colonizadores brancos foram mortos a 20 de Agosto de 1791 nos alvores da revolução no Haiti!

A partir daí nada mais fez parar os escravos negros arrancados à força de África e eles partiram em busca da “LIBERDADE OU MORTE”!

Essa chispa seria logo depois transmitida a toda a América, num longo parto, sangrento mas imparável, que resultou na descolonização do continente!

O silêncio entre os oprimidos teve então seus dias contados…pelo menos enquanto duraram os ecos da revolução por toda a América!...

O silêncio dos opressores foi uma constante até hoje: quando se comemorou o centenário do Haiti, até o documento da Declaração da Independência estava perdido e só foi descoberto mais de cem anos depois, após uma intensa pesquisa levada a cabo por vários peritos e investigadores, durante décadas!... foi descoberto a partir de pistas em arquivos existentes na Jamaica e mais tarde em arquivos históricos existentes em Londres (incluindo o hino do Haiti composto em 1804)!

A Declaração de Independência do Haiti original que foi descoberta em Londres pela investigadora Julia Gaffield, era um documento de oito páginas, com três partes: a Declaração de Independência, a Proclamação ao Povo do Haiti do General-em-Chefe Jean-Jacques Dessalines e a nomeação de Dessalines como Governador-Geral do Haiti!

Depois, já no Haiti, a mesma investigadora detectou outro documento de uma página, referente ainda à Declaração de Independência do Haiti!...

Ela só conseguiu êxito nas suas pesquisas por que considerou e bem, a Revolução do Haiti como de importância para todo o Atlântico, o que determinou as suas pesquisas da Jamaica à Dinamarca!...

… Em África, os reflexos ocorreram apenas no século XX e tiveram como corolário, não só o fim do colonialismo numa longa luta de libertação, mas também o fim do “apartheid”!

Foi só com o fim do “apartheid” que se conseguiu aplicar uma das principais conquistas da revolução francesa: “tous les Hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits”!

9 – Na revolução do Haiti, após a revolta desencadeada por Bokkman, surgiu um comandante, Toussaint de seu nome e L’Overture… por que era, a partir de então, “aquele que abria as portas”!

Dos escravos libertos ele ciou um exército, mas foi para além disso um guia e político: transformando as fraquezas em forças, aliou-se sucessivamente a uns para derrotar os outros… até finalmente derrotar as forças napoleónicas na Hispaniola, que após alguns sucessos iniciais, acabaram dizimadas!

Napoleão Bonaparte enviou o melhor de suas tropas para o Haiti, uma vez que representava os interesses da burguesia francesa, a fim de subjugar a revolução: conseguiu aprisionar Toussint L’Overture e mandá-lo para França onde veio a morrer, mas outros seguiram-se-lhe e vieram a derrotar as tropas francesas; entre eles sobressaiu Dessalines, a primeira das assinaturas da Declaração de Independência do Haiti a 1 de Janeiro de 1804, logo a seguir ao desastre da derrota francesa!

Em 13 anos a revolução dos escravos do Haiti derrotou as tropas de Espanha, de Inglaterra e de França, sucessivamente!

Assim nasceu o Haiti, o espírito de revolução que inundou a América e o que se lhe seguiu, que esteve na origem da sua descolonização… até os ecos ressurgirem em África já na segunda metade do século XX!

Entre 1815 e 1820 Simon Bolivar manteve contactos com a revolução no Haiti, onde buscou meios e forças para levar avante a sua saga na América do Sul.

Em 1850 os haitianos aliaram-se aos abolicionistas nos Estados Unidos da América.

O grito de “LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE” deixou assim de ser um grito exclusivo dos povos do norte, dos brancos e passou a ser assim um grito de toda a humanidade!

Na ideologia da “civilização ocidental” (e da própria NATO), manipulada pelas elites brancas do norte, é muito lembrada a inter-influência da revolução francesa nas lutas pela independência dos Estados Unidos da América, por exemplo, quanto a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América de 1776 influenciou nas discussões das leis que animaram a revolução francesa em 1789… mas esquece-se deliberadamente da influência que a revolução francesa teve na revolução do Haiti, até por que escravos e ameríndios estavam fora de questão para os progressistas da época, em ambos os lados do Atlântico!

A manutenção do colonialismo em África, após a Conferência de Berlim, deve-se a esse silêncio cultivado década após década!

É quem sustenta ideologicamente a continuidade da “civilização ocidental” nos termos dessa discriminação que procura o silêncio até aos nossos dias: não é por acaso a trajectória de emergência e ocaso do “apartheid” na África do Sul?!

10 – É o conhecimento dessa trilha que levou a revolução cubana a ser tão consequente em relação a África e a impor-se sob o ponto de vista ético e moral por todo o mundo progressista, bem como nos relacionamentos internacionais, em especial entre os países do sul, entre os quais o próprio Haiti!

A revolução cubana entendeu-o também por que em Santiago de Cuba e em todo o oriente da maior das Antilhas, muitos dos revolucionários cubanos beberam das tradições do Haiti que ali chegaram por via da migração!

O comandante Fidel de Castro foi o advogado que defendeu essa trilha e o Che foi, com Jorge Risquet, um dos que esteve nos caboucos desse impulso em África!

Essa é a razão por que argumento, da necessidade e a urgência da presença de Cuba na CPLP, a convite dos componentes do sul, membros da própria CPLP!

As razões históricas da “Operação Carlota”, transbordaram do Haiti, do Brasil e de Cuba, para África, no lançar do movimento de libertação e do início da bandeira e soberania de Angola!

O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência e a soberania de Angola, por que o Brasil é um dos profundos conhecedores das sagas da escravatura, do colonialismo e do “apartheid”!

Cuba merece por mérito histórico, e por intrínseco valor ético e moral nos seus relacionamentos internacionais atlânticos e em África, fazer parte da CPLP e ser um observador privilegiado da União Africana: “PÁTRIA É HUMANIDADE”!

Gravura: Uma alusão ao “LIBERDADE OU MORTE” da revolução dos escravos do Haiti, que culminou com a Independência do Haiti!

Artigos publicados por Martinho Júnior:

Outras consultas:
. Haiti’s Declaration of Independence: Digging for Lost Documents in the Archives of the Atlantic World – http://theappendix.net/issues/2014/1/haitis-declaration-of-independence-digging-for-lost-documents-in-the-archives-of-the-atlantic-world
. Pour la mémoire et pour l’histoire – http://www.haitiinfos.org/archives_avril09.html

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