segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Portugal: A PROCISSÃO DE PASSOS



José Mendes – Jornal de Notícias, opinião

"Pode o PS estar descansado, não iremos perder tempo agora com esse debate". Quem o diz é Pedro Passos Coelho, primeiro-ministro e líder do PSD, no discurso de abertura do Congresso do seu partido, referindo-se à revisão da Constituição.

Para o português comum, esta afirmação é, no mínimo, incompreensível. Como pode um primeiro ministro ter enviado para o Parlamento um par de orçamentos do Estado polvilhados de normas inconstitucionais, quase todas destinadas a penalizar especificamente os portugueses servidores do Estado e os portugueses pensionistas, e agora deixar cair a sua argumentação porque não quer perder tempo com uma minudência que se chama revisão constitucional?

É grave que um primeiro-ministro tenha tentado, pela ação governativa, redesenhar o projeto de Estado plasmado na Constituição. Se a isto acresce um nível de inconsistência como o agora demonstrado, então entramos no plano do descrédito.

Num discurso algo errático, Passos Coelho procurou, na abertura do congresso do seu partido, demonstrar duas teses: a de que o PSD se mantém fiel à social-democracia e a de que o país está muito melhor.

Foi quase penoso assistir a esta espécie de crise de identidade. Dedicar tantos minutos a sublinhar a natureza social-democrata fez lembrar aqueles que sempre nos recordam que são muito sérios e indefectíveis da verdade, parecendo atribuir ao facto um tal caráter de excecionalidade que justifica a menção enfática e repetida. Desconfio destes moralistas.

A narrativa construída ao longo desta semana sobre o pretenso milagre económico que está a acontecer em Portugal foi praticamente esmagada pelo relatório do FMI, que veio recordar as fragilidades dos indicadores macroeconómicos que o Governo anda por aí a espalhar. De facto, até por respeito à inteligência dos portugueses, o primeiro-ministro devia evitar exibir "o orgulho de estar a vencer uma das mais graves crises económicas e sociais do nosso tempo".

Na sua referência a "algumas vozes" que questionam a sustentabilidade das exportações e do défice, o que inclui o FMI e personalidades de vários quadrantes, incluindo o PSD, Passos Coelho lembra aquela mãe que proclamava eufórica que o filho era o único com o passo certo num desfile militar, deixando claro que todos os outros soldados, apesar de afinados no ritmo, marchavam com passo errado.

Ao "orgulho" de Passos Coelho não resisto a contrapor aquele que é o sentimento de tantas e tantas pessoas com que nos cruzamos no dia a dia. O que esses portugueses dizem é que não desejam um país governado por quem pensa que a Constituição deve ser suspensa e que o Tribunal Constitucional é uma força de bloqueio. Não desejam um país governado por quem declarou guerra ao Estado social. Não desejam um país governado por quem acha que tudo o que é público é mau, incluindo os servidores do Estado. Não desejam um país governado por quem trata os reformados e pensionistas como meros números vermelhos, que apenas engrossam a coluna da despesa do Orçamento. Não desejam um país governado por quem pensa que o país pode prescindir da Ciência e do Ensino Superior de qualidade. Não desejam um país governado por quem convida os jovens à emigração.

O primeiro-ministro orgulhoso que estes dias se exibe no Coliseu dos Recreios é uma espécie de negativo dos portugueses desempregados, dos jovens que abandonam o Ensino Superior, dos habitantes do interior que veem os tribunais, as repartições de finanças e as juntas de freguesia fugir para longe, das empresas vítimas da estagnação do consumo interno e do investimento. Estes cidadãos, aqueles que foram esmagados pelos impostos que permitiram pintar de laranja os indicadores macroeconómicos, são apenas danos colaterais.

Passos Coelho lançou, neste discurso, a sua recandidatura a primeiro-ministro nas eleições de 2015, acreditando protagonizar o milagre da salvação nacional. A minha visão é bem diferente. Pareceu-me mais ter cumprido uma estação no seu lento e penoso caminho para o calvário. E, ao contrário do que diz, é possível em Portugal um caminho alternativo a esta procissão de Passos.

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