José Mendes –
Jornal de Notícias, opinião
"Pode o PS
estar descansado, não iremos perder tempo agora com esse debate". Quem o
diz é Pedro Passos Coelho, primeiro-ministro e líder do PSD, no discurso de
abertura do Congresso do seu partido, referindo-se à revisão da Constituição.
Para o português
comum, esta afirmação é, no mínimo, incompreensível. Como pode um primeiro
ministro ter enviado para o Parlamento um par de orçamentos do Estado
polvilhados de normas inconstitucionais, quase todas destinadas a penalizar
especificamente os portugueses servidores do Estado e os portugueses
pensionistas, e agora deixar cair a sua argumentação porque não quer perder
tempo com uma minudência que se chama revisão constitucional?
É grave que um
primeiro-ministro tenha tentado, pela ação governativa, redesenhar o projeto de
Estado plasmado na Constituição. Se a isto acresce um nível de inconsistência
como o agora demonstrado, então entramos no plano do descrédito.
Num discurso algo
errático, Passos Coelho procurou, na abertura do congresso do seu partido,
demonstrar duas teses: a de que o PSD se mantém fiel à social-democracia e a de
que o país está muito melhor.
Foi quase penoso
assistir a esta espécie de crise de identidade. Dedicar tantos minutos a
sublinhar a natureza social-democrata fez lembrar aqueles que sempre nos
recordam que são muito sérios e indefectíveis da verdade, parecendo atribuir ao
facto um tal caráter de excecionalidade que justifica a menção enfática e
repetida. Desconfio destes moralistas.
A narrativa
construída ao longo desta semana sobre o pretenso milagre económico que está a
acontecer em Portugal foi praticamente esmagada pelo relatório do FMI, que veio
recordar as fragilidades dos indicadores macroeconómicos que o Governo anda por
aí a espalhar. De facto, até por respeito à inteligência dos portugueses, o
primeiro-ministro devia evitar exibir "o orgulho de estar a vencer uma das
mais graves crises económicas e sociais do nosso tempo".
Na sua referência a
"algumas vozes" que questionam a sustentabilidade das exportações e
do défice, o que inclui o FMI e personalidades de vários quadrantes, incluindo
o PSD, Passos Coelho lembra aquela mãe que proclamava eufórica que o filho era
o único com o passo certo num desfile militar, deixando claro que todos os
outros soldados, apesar de afinados no ritmo, marchavam com passo errado.
Ao
"orgulho" de Passos Coelho não resisto a contrapor aquele que é o
sentimento de tantas e tantas pessoas com que nos cruzamos no dia a dia. O que
esses portugueses dizem é que não desejam um país governado por quem pensa que
a Constituição deve ser suspensa e que o Tribunal Constitucional é uma força de
bloqueio. Não desejam um país governado por quem declarou guerra ao Estado
social. Não desejam um país governado por quem acha que tudo o que é público é
mau, incluindo os servidores do Estado. Não desejam um país governado por quem
trata os reformados e pensionistas como meros números vermelhos, que apenas
engrossam a coluna da despesa do Orçamento. Não desejam um país governado por
quem pensa que o país pode prescindir da Ciência e do Ensino Superior de
qualidade. Não desejam um país governado por quem convida os jovens à
emigração.
O primeiro-ministro
orgulhoso que estes dias se exibe no Coliseu dos Recreios é uma espécie de
negativo dos portugueses desempregados, dos jovens que abandonam o Ensino
Superior, dos habitantes do interior que veem os tribunais, as repartições de
finanças e as juntas de freguesia fugir para longe, das empresas vítimas da
estagnação do consumo interno e do investimento. Estes cidadãos, aqueles que
foram esmagados pelos impostos que permitiram pintar de laranja os indicadores
macroeconómicos, são apenas danos colaterais.
Passos Coelho
lançou, neste discurso, a sua recandidatura a primeiro-ministro nas eleições de
2015, acreditando protagonizar o milagre da salvação nacional. A minha visão é
bem diferente. Pareceu-me mais ter cumprido uma estação no seu lento e penoso
caminho para o calvário. E, ao contrário do que diz, é possível em Portugal um
caminho alternativo a esta procissão de Passos.
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