Cleber
César Buzatto, Licenciado em Filosofia e Secretário Executivo do Conselho
Indigenista Missionário - Cimimi - em Pravda.ru
O
sub-procurador da República, Dr. Eugênio Aragão, ao participar da audiência da
Comissão Especial da Câmara dos Deputados que trata acerca da Proposta de
Emenda Constitucional 215/00, no último dia 11 de junho, questionou o paradigma
demarcatório de terras indígenas, vigente no Brasil, e defendeu a tese segundo
a qual "o modelo atual, a toda evidência, está apresentando sinais claros
de esgotamento".
Defendeu
a referida tese com o argumento de que "mesmo quando o Poder Executivo,
depois de longuíssimas tramitações, consegue promover a demarcação de uma área
indígena, a reação imediata é a judicialização do respectivo ato
administrativo, o que leva a um impasse em que não se vai nem pra frente nem
pra trás".
Um
argumento evidentemente falacioso, haja vista a existência de diversos
procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas paralisados sem
que exista qualquer impedimento judicial para tanto.
Ou
seja, o motivo da paralisação, no caso, é político e causado pela opção
governamental e pela "pressão" de atores políticos e econômicos bem
conhecidos de todos, dentre os quais os representantes do latifúndio, a bancada
ruralista, para quem Aragão discursava.Para além da falácia, no entanto, o
sub-procurador avançou na argumentação, por um caminho que, julgamos,
malicioso, desrespeitoso e ultra ideológico. Segundo ele o genocídio
contemporâneo dos povos indígenas tem sua raiz motivacional no direito
fundamental dos povos às suas terras tradicionais, conforme assegurado pelo
texto constitucional de 1988. Isso porque, segundo ele, fazendo eco aos
argumentos ruralistas "o processo concebido na Constituição, no artigo
231, é um processo unilateral. É um processo em que a administração pública,
ex-ofício, identifica e demarca as áreas, olhando sobretudo apenas em uma
direção, a direção do bem estar do indígena.
O
problema é que ao longo dos anos foi-se percebendo que essa visão unilateral,
de só se olhar para a população indígena, esquecendo as circunstâncias,
levaram, na verdade, eu posso dizer com a maior tranquilidade, a uma política
genocida. Porque na medida em que a gente olha só para um lado do problema,
todos os outros que estão excluídos da atenção do poder público produzem
ressentimento. E o ressentimento acaba levando à estigmatização e a
estigmatização, por sua vez, acaba levando ao genocídio".
Ora,
além de incompatível com o arcabouço jurídico que envolve o procedimento de
demarcação, uma vez que o elemento do contraditório é amplamente respeitado,
tanto no campo administrativo, quanto no campo do Poder Judiciário, o argumento
defendido pelo Dr. Eugênio, ideológica e maliciosamente, esconde os verdadeiros
sujeitos político-econômicos responsáveis pelo atual quadro de genocídio dos
povos indígenas no país.
Como
fica evidente no argumento, Aragão admite a existência de genocídio de povos
indígenas no país, mas, além de esconder os sujeitos responsáveis pelo
genocídio, o mesmo, desrespeitosamente, o legitima uma vez que seria, como que
natural, que o "ressentimento" produzido pelo arguido unilateralismo
produzisse a "estigmatização" e que, consequentemente, levasse ao
genocídio. O argumento em questão causa-nos, como não poderia deixar
de ser, profunda indignação, e se enquadra na típica estratégia da
culpabilização da vítima. Segundo ele, os povos indígenas seriam vítimas do
genocídio porque ousaram lutar e conseguiram assegurar o reconhecimento do
direito às suas terras tradicionais no texto Constitucional do Estado
brasileiro.
O
que defendemos é exatamente o contrário da opinião do sub-procurador. É a
efetivação do direito fundamental às suas terras tradicionais que suplantará o
quadro de genocídio de povos indígenas no Brasil. O genocídio de povos
indígenas no Brasil precede o texto Constitucional vigente em nosso país.
O
genocídio de povos indígenas não se justifica e não se legitima sob qualquer
hipótese. O genocídio de povos indígenas no Brasil é efetivado por sujeitos
político-econômicos bem conhecidos, tais como, dentre outros, latifundiários,
usineiros, empreiteiras, mineradoras. Em cada região e período histórico de
nosso país, atuaram e atuam com avareza na perspectiva de se apossar e explorar
as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos.
Os
povos indígenas têm o direito à vida e o direito à vida precede o direito de
propriedade. Os não-índios, ocupantes de terras indígenas, além de receberem
pelas benfeitorias construídas sobre essas terras, têm direito à justa
indenização dos títulos de propriedade de boa fé, por parte dos entes federados
responsáveis pela sua emissão. Além disso, a legislação vigente no Brasil
estabelece ainda o direito ao devido reassentamento aos ocupantes.
O
reassentamento, por sua vez, deve ser feito com a desapropriação dos
latifúndios, que, infelizmente, se perpetuam em favor de poucos e devido aos
genocídios provocados, aos privilégios históricos e à super-representação do
setor no Congresso Nacional e noutros espaços de poder do Estado
brasileiro. Ao atacar o direito fundamental dos povos indígenas às
suas terras tradicionais com os argumentos acima destacados, ataca-se também o
direito dos não-indígenas ao devido reassentamento.
Dessa
maneira, faz-se a dupla defesa do latifúndio e da concentração fundiária cada
vez maior em nosso país, objetivo central da estratégia ruralista ao defender a
aprovação da PEC 215/00. Talvez seja este o motivo pelo qual Aragão, em momento
algum de sua explanação, tenha feito referência à nota técnica produzida pela
6ª. Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, órgão
setorial da Procuradoria Geral da República que trata de temáticas indígenas. A
nota explicita a inconstitucionalidade da referida Proposta de Emenda
Constitucional.
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