Manuel
Maria Carrilho – Diário de Noticias, opinião
A
política parece tornar-se cada vez mais, em cada dia que passa, numa atividade
zombie. O termo vem do folclore do Haiti, onde designava cadáveres animados a
que, através de poderes mágicos, se dava o aspecto de seres vivos, privados
contudo de qualquer autonomia, de qualquer vontade própria.
Vem
isto a propósito do que iremos certamente observar hoje e amanhã na cimeira dos
líderes europeus, reunidos em Bruxelas para escolherem os novos dirigentes
máximos da União Europeia: o presidente que sucederá a Durão Barroso, mas
também o presidente do Conselho Europeu e o alto representante para a Política
Externa da UE, que substituirão Herman van Rompuy e Catherine Ashton. Um trio
que não deixa saudades a ninguém.
Apesar
de ser óbvio que poucos europeus terão votado nas eleições de 25 de maio último
a pensar se o novo presidente da Comissão Europeia seria Jean-Claude Juncker ou
Martin Schulz - e este dado deve fazer-nos pensar -, o facto é que os seus
nomes foram assumidos pelos dois principais grupos de partidos no Parlamento
Europeu (o Partido Popular Europeu e o dos socialistas e seus aliados) como os
seus candidatos ao cargo, o que torna indiscutível que o mais elementar
respeito democrático pelos resultados faça de J.-C. Juncker o próximo
presidente da Comissão Europeia.
O
que acontecerá, de resto, também com o apoio socialista e social-democrata,
cujos líderes se reuniram em Paris no fim de semana passado, para acertar
políticas, estratégias e objectivos. A esperança, agora está em Matteo Renzi ,
primeiro-ministro de Itália, país que assume a presidência europeia a partir de
1 de julho, e que esta semana declarou que "a Europa está paralisada pelo
tédio, submersa em números e sem alma", que ela se encontra numa
encruzilhada: "Não é suficiente termos uma moeda comum, um presidente ou
uma fonte de financiamento comuns. Ou temos um destino e valores comuns, ou
perdemos a ideia de Europa." Veremos logo e amanhã a força e a verdade
destas palavras, quando elas enfrentarem Merkel, os seus aliados e os seus
súbditos.
Porque
com Juncker ou com Schulz, a Europa está de facto sem qualquer estratégia: quer
mais integração, mas não sabe como. Quer mais crescimento, mas não sabe onde ir
buscá-lo. Quer mais legitimidade, mas entrincheira-se nas burocracias mais
desmotivadoras. Quer proteger os seus cidadãos da globalização, mas torna-se
cada vez mais num dos seus mais dóceis instrumentos.
O
último truque para fazer a economia crescer - ou melhor, o PIB, o que não é bem
a mesma coisa - é revelador desta situação: se a economia normal não cresce,
junta-se-lhe a economia paralela, o contrabando, o tráfico de droga e a
prostituição, o que vai acontecer já a partir de setembro. Convenhamos que,
comparada com a esfuziante criatividade de que tem dado provas a indústria
financeira, isto não é nada. Mas sempre são, segundo um estudo de P. Schneider
sobre a matéria, The Shadow Economy in Europe, cerca de dois biliões de euros.
Em Itália a economia paralela vale 21,6% do PIB, em Portugal 19,4%, enquanto na
Bulgária ultrapassa os 30%. Vamos, finalmente, crescer!
Este
expediente mostra como a crise continua, e como ela é bem mais profunda do que
se tem dito e procurado fazer crer. As litanias da "saída da crise"
não passam, na verdade, de tretas rituais de uma terapêutica aos tropeções. No
último número do Le Nouvel Observateur, Marcel Gauchet, num vivo debate com um
singular economista, Frédéric Lordon, dizia-o de um modo tão claro como
dramático, ao afirmar que "o efeito da alternância se esgotou. São todos
igualmente impotentes, não há nada a esperar do pessoal dirigente."
Mas
M. Gauchet , um dos pensadores mais incisivos da Europa de hoje, vai bem mais
longe do que o que poderia parecer uma banal diabolização da classe política. O
que ele diz é que, para o futuro da Europa, mais do que passar o tempo a atirar
a bola e as culpas de um campo para o outro, entre a esquerda e a direita
tradicionais - que, precisamente, fizeram esta Europa -, o que importa é
perceber bem em que é que tem consistido, e continua a consistir, o pantanoso
consenso entre os dois campos, porque é aí que têm nascido os principais
problemas e todos os impasses que hoje enfrentamos.
Ora
é justamente neste ponto que o demissionismo da esquerda mais se tem feito
sentir nas últimas décadas, ao ceder face ao modelo gestionário da direita,
quando devia estar a olhar e a analisar as transformações que têm mudado o
mundo, procurando alternativas ideologicamente inspiradas e diferenciadas para
as acompanhar e lhes dar as mais adequadas respostas possíveis.
Na
verdade, o argumento que durante anos se usou até à exaustão, o da Europa como
escudo contra os "malefícios" da globalização, foi o mais enganador
dos sofismas. Porque a Europa não foi, como argumenta F. Lordon, senão a
concretização regional da globalização, sobretudo naquilo que ambas têm em
comum, e que é a anulação das soberanias nacionais democráticas. E Marcel
Gauchet não discorda, pelo contrário, defendendo que é urgente começar a ver a
Europa por outra perspetiva, como uma espécie de "espelho de
aumentar" de tudo o que há hoje de mais problemático no novo mundo em que
vivemos. É esse, na sua opinião, o imperativo intelectual e político do
momento.
É
difícil, claro, que os zombies que dominam a União Europeia compreendam isto.
Sobretudo porque essa compreensão conduz ao cerne do problema, que é o de uma
União Europeia pós-política, meio despótica e meio iluminista, que não é capaz
de falar senão a linguagem de um economês-financês que provoca a rejeição
generalizada dos seus cidadãos.
Dizia
há dias Joana Amaral Dias que a Europa é antidemocrática. Pode-se dizer isso,
mas é preciso acrescentar pelo menos três coisas: que ela o foi sempre. Que ela
é, por paradoxal que pareça, um produto das nossas democracias. E que, se
calhar, o descobrimos já tarde demais...
Seria
muito interessante saber como pensam os dois candidatos socialistas à função de
primeiro-ministro ultrapassar estes dilemas, em que vive toda a União Europeia
e, em particular, a zona euro. É que se fala muito do que Portugal deve exigir
à Europa, mas muito pouco de que Europa se está, na verdade, a falar.
Não
nos devemos, claro, iludir sobre o peso e margem de manobra de Portugal. Mas em
ambos os casos muita coisa depende da ousadia, da clareza e da eficácia das
ideias que se proponham e defendam. Venham pois os anunciados debates, é deles
que o PS e o País precisam para se revitalizarem - talvez assim nos comecemos a
livrar dos zombies que nos cercam.
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