quinta-feira, 26 de junho de 2014

ZOMBIES



Manuel Maria Carrilho – Diário de Noticias, opinião

A política parece tornar-se cada vez mais, em cada dia que passa, numa atividade zombie. O termo vem do folclore do Haiti, onde designava cadáveres animados a que, através de poderes mágicos, se dava o aspecto de seres vivos, privados contudo de qualquer autonomia, de qualquer vontade própria.

Vem isto a propósito do que iremos certamente observar hoje e amanhã na cimeira dos líderes europeus, reunidos em Bruxelas para escolherem os novos dirigentes máximos da União Europeia: o presidente que sucederá a Durão Barroso, mas também o presidente do Conselho Europeu e o alto representante para a Política Externa da UE, que substituirão Herman van Rompuy e Catherine Ashton. Um trio que não deixa saudades a ninguém.

Apesar de ser óbvio que poucos europeus terão votado nas eleições de 25 de maio último a pensar se o novo presidente da Comissão Europeia seria Jean-Claude Juncker ou Martin Schulz - e este dado deve fazer-nos pensar -, o facto é que os seus nomes foram assumidos pelos dois principais grupos de partidos no Parlamento Europeu (o Partido Popular Europeu e o dos socialistas e seus aliados) como os seus candidatos ao cargo, o que torna indiscutível que o mais elementar respeito democrático pelos resultados faça de J.-C. Juncker o próximo presidente da Comissão Europeia.

O que acontecerá, de resto, também com o apoio socialista e social-democrata, cujos líderes se reuniram em Paris no fim de semana passado, para acertar políticas, estratégias e objectivos. A esperança, agora está em Matteo Renzi, primeiro-ministro de Itália, país que assume a presidência europeia a partir de 1 de julho, e que esta semana declarou que "a Europa está paralisada pelo tédio, submersa em números e sem alma", que ela se encontra numa encruzilhada: "Não é suficiente termos uma moeda comum, um presidente ou uma fonte de financiamento comuns. Ou temos um destino e valores comuns, ou perdemos a ideia de Europa." Veremos logo e amanhã a força e a verdade destas palavras, quando elas enfrentarem Merkel, os seus aliados e os seus súbditos.

Porque com Juncker ou com Schulz, a Europa está de facto sem qualquer estratégia: quer mais integração, mas não sabe como. Quer mais crescimento, mas não sabe onde ir buscá-lo. Quer mais legitimidade, mas entrincheira-se nas burocracias mais desmotivadoras. Quer proteger os seus cidadãos da globalização, mas torna-se cada vez mais num dos seus mais dóceis instrumentos.

O último truque para fazer a economia crescer - ou melhor, o PIB, o que não é bem a mesma coisa - é revelador desta situação: se a economia normal não cresce, junta-se-lhe a economia paralela, o contrabando, o tráfico de droga e a prostituição, o que vai acontecer já a partir de setembro. Convenhamos que, comparada com a esfuziante criatividade de que tem dado provas a indústria financeira, isto não é nada. Mas sempre são, segundo um estudo de P. Schneider sobre a matéria, The Shadow Economy in Europe, cerca de dois biliões de euros. Em Itália a economia paralela vale 21,6% do PIB, em Portugal 19,4%, enquanto na Bulgária ultrapassa os 30%. Vamos, finalmente, crescer!

Este expediente mostra como a crise continua, e como ela é bem mais profunda do que se tem dito e procurado fazer crer. As litanias da "saída da crise" não passam, na verdade, de tretas rituais de uma terapêutica aos tropeções. No último número do Le Nouvel Observateur, Marcel Gauchet, num vivo debate com um singular economista, Frédéric Lordon, dizia-o de um modo tão claro como dramático, ao afirmar que "o efeito da alternância se esgotou. São todos igualmente impotentes, não há nada a esperar do pessoal dirigente."

Mas M. Gauchet , um dos pensadores mais incisivos da Europa de hoje, vai bem mais longe do que o que poderia parecer uma banal diabolização da classe política. O que ele diz é que, para o futuro da Europa, mais do que passar o tempo a atirar a bola e as culpas de um campo para o outro, entre a esquerda e a direita tradicionais - que, precisamente, fizeram esta Europa -, o que importa é perceber bem em que é que tem consistido, e continua a consistir, o pantanoso consenso entre os dois campos, porque é aí que têm nascido os principais problemas e todos os impasses que hoje enfrentamos.

Ora é justamente neste ponto que o demissionismo da esquerda mais se tem feito sentir nas últimas décadas, ao ceder face ao modelo gestionário da direita, quando devia estar a olhar e a analisar as transformações que têm mudado o mundo, procurando alternativas ideologicamente inspiradas e diferenciadas para as acompanhar e lhes dar as mais adequadas respostas possíveis.

Na verdade, o argumento que durante anos se usou até à exaustão, o da Europa como escudo contra os "malefícios" da globalização, foi o mais enganador dos sofismas. Porque a Europa não foi, como argumenta F. Lordon, senão a concretização regional da globalização, sobretudo naquilo que ambas têm em comum, e que é a anulação das soberanias nacionais democráticas. E Marcel Gauchet não discorda, pelo contrário, defendendo que é urgente começar a ver a Europa por outra perspetiva, como uma espécie de "espelho de aumentar" de tudo o que há hoje de mais problemático no novo mundo em que vivemos. É esse, na sua opinião, o imperativo intelectual e político do momento.

É difícil, claro, que os zombies que dominam a União Europeia compreendam isto. Sobretudo porque essa compreensão conduz ao cerne do problema, que é o de uma União Europeia pós-política, meio despótica e meio iluminista, que não é capaz de falar senão a linguagem de um economês-financês que provoca a rejeição generalizada dos seus cidadãos.

Dizia há dias Joana Amaral Dias que a Europa é antidemocrática. Pode-se dizer isso, mas é preciso acrescentar pelo menos três coisas: que ela o foi sempre. Que ela é, por paradoxal que pareça, um produto das nossas democracias. E que, se calhar, o descobrimos já tarde demais...

Seria muito interessante saber como pensam os dois candidatos socialistas à função de primeiro-ministro ultrapassar estes dilemas, em que vive toda a União Europeia e, em particular, a zona euro. É que se fala muito do que Portugal deve exigir à Europa, mas muito pouco de que Europa se está, na verdade, a falar.

Não nos devemos, claro, iludir sobre o peso e margem de manobra de Portugal. Mas em ambos os casos muita coisa depende da ousadia, da clareza e da eficácia das ideias que se proponham e defendam. Venham pois os anunciados debates, é deles que o PS e o País precisam para se revitalizarem - talvez assim nos comecemos a livrar dos zombies que nos cercam.

Sem comentários:

Mais lidas da semana