Rui Peralta, Luanda
I - Entre os anos 1000 e 1500,
três grandes blocos integravam o sistema mundo: a China, a India e o
Medio Oriente (que compreendia o Egipto, a Grécia e os territórios que
constituem hoje a Síria, o Líbano, Israel, Jordânia, Iraque, Irão e Turquia).
As "rotas da seda" (como são conhecidos estes intercâmbios)
atravessavam a região meridional da Eurásia, a Ásia Central (do mar Cáspio à
China) e pelo Sul a estepe cazaque (actual Cazaquistão e parte da China) e a
Mongólia. A esta intensidade de intercâmbios juntar-se-ia a Europa, um pouco
mais tarde, afirmando-se como um quarto bloco em muito rápido crescimento
contrastando com a estagnação relativa do Médio Oriente, factor que levou á
decadência destes intercâmbios, o que teve duas consequências: a) o
Medio-Oriente passou a ser considerado, pelos Europeus, como região de passagem
e não como um objectivo; b) A China e a India deixaram de considerar o Ocidente
como mercado de interesse, privilegiando o Oriente e constituindo periferias na
Península Coreana, Japão, Indochina e Sudeste asiático.
Os dois polos Orientais (China e
India) não reatam os intercâmbios com o Médio Oriente e alheiam-se da Europa e
esta, por sua vez (com a França à cabeça), busca a sua penetração no Medio
Oriente através das cruzadas (1100-1500), defrontando-se com Bizâncio e com o
Califado árabe-persa. Derrotados, os europeus são expulsos da região e
obrigados a contorná-la, mas as cruzadas são um factor importante e de peso na
decadência do Medio Oriente, acabando por facilitar a transferência de poderes
para as tribos turcomanas, que destroem Bizâncio e o Califado, substituindo-os
(1400-1450) pelo Império Otomano. Tiveram, as cruzadas, ainda um efeito
positivo para as cidades italianas que com o enriquecimento obtido pela sua função
de intermediários, acabam por dominar o comércio marítimo mediterrânico.
II - A Eurásia toma um papel
determinante entre 1250 e 1500 (preenchendo o vazio deixado pelo Médio Oriente)
e a sua crescente importância marginaliza as rotas da seda - que ligavam
o Médio Oriente à China e à India - em benefício de uma rota directa à
China através da Eurásia dominada pelo Império Mongol (rota de Marco Polo). A
nova dinâmica euroasiática conduz à intensificação dos conflitos entre os
russos (habitantes dos bosques) e os turco-mongóis (vindos das estepes)
para controlo da região. Destes conflitos advém a formação do Estado russo,
liberto do jugo mongol.
Os russos expandiram-se
rapidamente através da Sibéria, conquistam as estepes do sul até aos mares
Negro, Cáspio e Aral, chegando ao Cáucaso, dai enveredando para a Transcaucásia
e Ásia Meridional. Nessa fase a Eurásia é a ponte entre a Europa e a China,
função que termina em 1500, quando a Europa inicia a rota do Atlântico. Os
russos respondem á marginalização da Eurásia de uma forma original: o monge
Philopheus proclamou a Terceira Roma em Moscovo, no ano de 1517, ou seja, pouco
depois da abertura da via marítima europeia para a Ásia, desempenhar um papel
exclusivo na História da região, substituindo Bizâncio ao proclamar-se como
"centro espiritual" da Igreja Ortodoxa (este papel messiânico
alternativo foi, séculos depois, reivindicado pelo Estado Soviético,
considerado "farol da humanidade").
A Rússia foi, assim, construída
numa síntese eficaz que alternava entre o encerramento em si própria e a
abertura ao Ocidente. Este processo construtivo auto centrado evitou que a
Rússia se tornasse periférica (tanto em relação à China como da Europa)
mantendo, simultaneamente as suas periferias intactas e "russificadas".
Neste sentido a construção do Estado russo é comparável á dos USA, dois espaços
que se organizam como continentes e que obedeciam a um poder político único
(opção trilhada pela China de Mao). Esta comparação dos processos de criação do Estado
(a solução auto centrada) não deve, no entanto, conduzir á especulação
ideológica acerca dos resultados obtidos por ambos os Estados (Rússia e USA),
devido a três factores principais: a) os USA não tinham uma herança feudal; b)
os USA, "isolados" a norte do Novo Mundo, estavam afastados das
querelas europeias; c) os USA, no continente americano, apenas tiveram um
adversário, o México, débil, rapidamente tornado em presa fácil e perdendo para
o seu vizinho do norte metade do território.
A Rússia, por sua vez, tinha uma forte
herança feudal (que a acompanhou até ao século XX), não escapou - nem evitou -
aos conflitos europeus e teve que defrontar fortes adversários, sendo evadida
pela França napoleónica, sofreu a afronta da Crimeia e as invasões de 1914 e
1941. Desde a sua fundação como Estado, a Rússia, opta por cruzar a sua
História com a da Europa, nunca se encerrando na Eurásia (o que seria fatal
para o seu desenvolvimento) e pretendendo ser tão moderna (europeia) quanto
possível. Aliás não foi por acaso que a águia bicéfala - símbolo do império
russo czarista - tinha uma das suas cabeças viradas para o Ocidente e que a
URSS optasse pelo marxismo como ideologia...
III - Aos olhos da Europa a Rússia
foi a sua antítese ideológica. A ideologia europeia fundamentava-se no binómio
"liberdade europeia / despotismo oriental" e as suas origens remontam
a Aristóteles, que caracterizava o despotismo (o poder dos senhores) como uma
forma de governo assente nas relações de servidão e própria do Oriente.
Aristóteles considera que o despotismo é legítimo, uma vez que predomina nos
povos "naturalmente servis" do Oriente, súbditos que aceitam o poder
das suas senhorias sem se lamentarem.
Este pressuposto de Aristóteles
atravessou toda a teoria politica ocidental até aos nossos dias, passando por
Tomás de Aquino, Maquiavel, Bodin, Montesquieu e Hegel. Nos séculos XVI e XVII
Moscovo foi considerado o exemplo da monarquia despótica, oposta ao modelo de
monarquia régia que afirmou os Estados europeus. Com Pedro o Grande e
depois com Catarina, a Rússia aproxima-se da Europa, mas não ao ponto desta a
tirar da "lista" dos estados despóticos. Durante as guerras
napoleónicas a Rússia participa de pleno direito no concerto das nações
europeias (ao ponto do seu exército entrar em Paris) mas nem mesmo assim a
Europa colocou reservas, considerando a Rússia um parceiro passivo que entrou
tarde no convívio das nações europeias. Na época os escritores políticos
europeus que apoiavam a Rússia eram da escola da contrarrevolução, para quem o
binómio liberdade / despotismo era já despropositado, propondo no seu lugar o
binómio "legitimidade / revolução", criticando a Revolução francesa,
gente para quem Napoleão era o anticristo e o czar Alexandre um
"salvador místico".
No século XX a revolução russa
reformulou o binómio liberdade / despotismo. A teoria da natureza servil dos
povos do Oriente é abandonada e o seu lugar ocupado por pressupostos
mais elaborados e análises mais coerentes. Factores como a necessidade de regulamentar a irrigação das grandes planícies asiáticas, ou
como Bizâncio influenciou a formação do Estado russo trouxeram á ideologia
ocidental outra compreensão da Rússia e do Oriente. O termo despotismo é
abandonado e em seu lugar foram considerados conceitos como os de autocracia,
totalitarismo ou regime burocrático. No entanto o modelo bipolar Ocidente /
Oriente permanece nos binómios reformulados: mundo livre / comunismo ou
liberdade Ocidental / autocracia Oriental.
IV - Em Agosto de 1991 Boris
Ieltsin subiu a um tanque para proclamar o fim da URSS que tombava por efeito
das suas contradições internas e das intensas dinâmicas externas da época. As
reformas de Gorbatchev desencadearam uma série de mecanismos que acentuaram a decadência
do socialismo real, desnecessário para os novos processos de reprodução de
capital, que dispensavam os modelos de competitividade implementados na II
Guerra. A economia da URSS foi transformada num monte de escombros, sujeita a
um controlo estatal destroçado, em avançado estado de desintegração.
O vazio deixado pelo colapso do
controlo estatal foi ocupado pelo mercado informal, por ladrões e
contrabandistas. Três anos depois a economia russa encontrava-se num caos
absoluto. As fábricas fechavam por falta de matérias-primas ou de produtos
intermediários, de componentes, de mercado, de capital ou de todos estes
factores e elementos em
conjunto. A extracção petrolífera diminuiu por falhas no
fornecimento de produtos essenciais na actividade e a agricultura foi negligenciada,
votada ao abandono. O sector mineiro estava paralisado devido às constantes
greves dos mineiros que revindicavam melhores condições de trabalho e de
segurança das minas (factor completamente negligenciado pelas novas
autoridades, o que transformava as minas em enormes túmulos), pelo fim dos
atrasos constantes nos pagamentos de salários e prémios e melhores salários.
A produção e os rendimentos eram
inferiores aos de 1991 e a inflação consumia pensões e salários. O desemprego
aumentava de forma incontrolável, a precariedade do trabalho era norma e os
russos tinham menos que comer, vestir e um nível de consumo muito inferior ao
de 1987 - ano em que
Gorbatchev iniciou as reformas - e a 1985, ano em que Gorbatchev
chegou ao poder. As empresas privadas foram vendidas por valores irrisórios, o
exército estava em desintegração e o material bélico e equipamento militar era
inserido no mercado informal. A corrupção contaminou todo o tecido social e foi
responsável por cerca de 100 milhões de USD transferidos para contas
bancárias no exterior do país, entre 1990 e 1995, privando a economia russa de
moeda corrente.
Traficantes, proxenetas e
prostitutas louras passeavam-se em carros desportivos, marcavam presença em
restaurantes luxuosos, trajando fatos Armani, com contas bancárias em Viena de
Áustria, apartamentos em Manhattan e bons amigos no Kremlin (muitos deles - e
delas - íntimos amigos de Ieltsin. Por todo o país "homens de
negócios" fazem tráfico de matérias-primas roubadas, desviados para
exportações privadas e os gestores roubavam as empresas onde trabalhavam,
transferindo a propriedade das mesmas para o seu nome. Outros colaboravam com
estrangeiros, importando bens de consumo, contrabandeando e exportado armas.
Milhares compram e vendem sem pagar impostos. As jovens empresas privadas
sofrem a concorrência desleal de empresas ineficientes, suportadas por
funcionários públicos corruptos e pelas mafias locais.
Esta foi a Rússia que o Ocidente
considerou - pela segunda vez na História (a primeira vez foi a Revolução
liberal de Fevereiro de 1917) - como "amiga", sendo Ieltsin visto
pelo Ocidente como um "bêbado simpático"…E o Ocidente regozijou-se ao
ver Ieltsin, ridículo, a dançar "rock n'roll" nos comícios eleitorais...
Continua
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