terça-feira, 15 de julho de 2014

PALESTINA, DIGNIDADE REBELDE




Fotógrafa-ativista francesa cobriu vinte anos de conflito sem imagens pirotécnicas de fumaça e explosões. Ela retrata vida e quotidiano dos que resistem sob ocupação

Imagens: Joss Dray - Texto: Françoise Feugas - Tradução: Antonio Martins e Inês Castilho – Outras Palavras

Gaza está outra vez sob bombardeio. Mas a imagem que recebemos novamente hoje – de uma população civil sitiada, aterrorizada, à mercê das violentas ofensivas militares israelenses – não é a que encontramos nos arquivos de Joss Dray, fotógrafa e militante da causa palestina desde os anos 1980. Suas fotos afirmam, ao contrário, a humanidade de um povo em resistência, “legítimo em sua terra”.

Inúmeras imagens circulam agora na internet, reproduzindo à exaustão as nuvens de fumaça que se elevam por trás das casas da cidade. Gaza de longe – como em janeiro de 2009, quando os israelenses e fotógrafos do mundo inteiro iam à fronteira, observar o espetáculo que produziam, ao cair, os mísseis da operação “Chumbo Endurecido”.

Seria inútil procurar este tipo de imagem entre as fotos de Joss Dray sobre a Palestina. Desde o início da primeira Intifada (dezembro de 1987), a militante que ela sempre foi quis enxergar e apresentar o povo palestino “de seu interior”. “Não sou fotógrafa de guerra”, diz ela como preâmbulo. “Tenho necessidade de encontrar as pessoas, sua humanidade, seu jeito de viver, sua cultura”.

Como Joss chegou à Palestina? Ela militava contra a guerra no Vietnã e, em posição terceiro-mundista, contra o imperialismo e a colonização. “Era natural que viesse à Palestina, era lógico”. A fotografia foi, antes de tudo, uma forma de testemunhar as lutas dos anos 1970 em que ela se envolveu.

Um dia, em 1983, Joss telefona ao jornal palestino Al Yom Assabe’, que acabara de ser criado em Paris. Engaja-se imediatamente como fotógrafa e editora de imagens. É a época da guerra do Líbano, mas ela não é enviada em reportagem. “Não faltam fotos de agência. Não vamos te enviar para lá. Vire-se”, dizem-lhe no jornal quando, em 1987, no momento da comemoração dos quarenta anos do Estado de Israel e do aniversário da Declaração de Balfour, ela decide que é tempo de ir à Palestina.

Um povo em sua terra

Ela parte só, levando na mente a imagem gloriosa dos fedayin. Mas não é o que encontra por lá. Chega a um país que não parece estar em guerra, onde se circula com relativa facilidade. “Chegava-se ao aeroporto de Telaviv e se entrava em Jerusalém sem problemas. O espaço entre Israel e a Cisjordânia estava completamente aberto”.

Perturbada pela distância entre a imagem idealizada dos combatentes, que ela guardava, e a realidade, Joss descobre “um povo completamente legítimo em sua terra, que vive numa espécie de quietude, de doçura, apesar da ocupação”. “Eram meados de junho. Volto em outubro e percebo uma tensão crescente. Não compreendo bem o que se passa, ainda. Ao regressar a Paris, percebo: é a primeira Intifada”.

Ser fotógrafa é encontrar-se “no interior” com as pessoas, numa relação muito estreita, para enxergar o que elas veem e olhá-las verdadeiramente. “Durante a primeira Intifada, havia às vezes duzentos fotógrafos. Mas estavam todos por trás do exército israelense. Eu era uma das raras do outro lado. Não havia viajado para ‘testemunhar’ a situação, mas para narrar a resistência do povo palestino.”

Joss Dray fotografa o ambiente quase eufórico dos primeiros tempos da Intifada, o levante de toda a Palestina no campo, nas cidades e vilarejos. Fotos de mulheres que partem com alegria para a manifestação de sexta-feira. “Então, o exército israelense passa a atirar sobre todos, ao azar, e todo o mundo começa a recolher pedras. Você vê a passagem desta fase alegre ao sofrimento. Cada morto é filho de todo mundo. Por exemplo, fotografo um homem assassinado, vindo de um vilarejo para manifestar-se em Ramallah. Descobre-se de imediato quem é ele, viaja-se ao local, organizam-se as homenagens, volta-se quarenta dias depois. São um só: toda a cidade de Ramallah, todos os vilarejos”. Suas primeiras fotos boas são feitas lá. Ela considera que só então torna-se fotógrafa.

Resistir é Existir

A resistência está em todos os lugares, especialmente na sombra, no coração das famílias que ela retrata. “Os meninos vinham beijar sua mãe, à noite, e partiam novamente para se esconder nas montanhas de madrugada. Eu fotografo a mãe que sofre, que teme por seu filho, e também fotografo suas irmãs. Esse povo palestino em toda a sua dimensão cultural, humana. Sua beleza”, acrescenta.

Era, naquele tempo, “um povo sobrefotografado”. “A dança das pedras”1, muito fotogênica, estava em todos os jornais. Mas não dava a verdadeira dimensão do que representou esse levante. Fotografavam-se “os keffiehs e algumas bandeiras, mas não se contava o significado de agitar uma bandeira: um crime, pelo qual arriscava-se à prisão. Por isso, eles ficavam escondidos nas casas; não saiam senão para as manifestações. Tenho uma série muito divertida, na qual as mulheres, em grupo, tiram de trás de si uma bandeira e a desdobram para mim… Havia até mesmo bandeiras que as crianças faziam com papelão, enfiadas num pedaço de pau e desenhadas com lápis coloridos.”

Joss Dray parou entre 1991 e 1993. “A Intifada se desgastava, minhas fotos também. Houve um vácuo.” Ela voltaria após os Acordos de Oslo, em 1994, para ver a chegada de policiais palestinos que vinham de Shatila, do Líbano, da Tunísia, e eram acolhidos pela população.

Gaza se transformava. Construíram-se grandes hotéis, as calçadas foram repintadas… “Achei aquilo um pouco triste, mas pensei que era preciso, de qualquer maneira, mostrar.” Pouco a pouco, a separação foi se instalando: grades, fronteiras, as passagens tornaram-se cada vez mais estreitas, violentas e marcadas. “Ninguém mais fotografava realmente, fiquei um pouco solitária.”

A segunda Intifada

Nos campos de refugiados no Líbano, Joss fotograva o empobrecimento terrível, a reclusão e o abandono. Depois, vem a segunda Intifada, que começa em setembro de 2002. Ela terá de se resignar a tornar-se fotógrafa de guerra? A solução escolhida é continuar a testemunhar a experiência de vida dos palestinos, “em sua dignidade e com o sentimento de estar em coerência consigo mesma. Tudo o que até então estivera bem, apesar especialmente dos Acordos de Oslo – que serviram acima de tudo para desumanizar a visão sobre o outro. Inclusive o olhar dos palestinos sobre os israelenses.”

A separação entre palestinos e israelenses torna-se total. Como agir? Ela escolhe trabalhar com as missões civis para a proteção do povo palestino, conduzindo pessoas, procurando enxergar a Palestina com os olhos delas. “Evidentemente, era uma Intifada armada. Porém, continuei a fotografar os que resistiam de outros modos, em ações militantes. Em Jenin, por exemplo, revi as fotos que havia feito durante a primeira Intifada. Tentei mostrar a força de resistência incalculável de um povo que luta contra o esquecimento, além da destruição da sociedade, das pessoas, que mantinham a mesma vontade de expressar sua dignidade e energia.”

– E hoje, como ela enxerga o prosseguimento de seu trabalho? Se retornasse a Gaza ou aos campos, o que Joss faria?

Gaza, a maior ferida

“Meu filho diz: ‘cresci com duas imagens da Palestina: a cicatriz e o orgulho’. A cicatriz é a foto de uma jovem mulher com um olho ferido, exposta no Instituto do Mundo Árabe, em Paris. O orgulho é a foto – muito publicada – de uma manifestação de crianças, uma delas vestida de paletó”. Com este filho, produtor de cinema, ela tem hoje o projeto de fazer um webdocumentário para apresentar uma geografia da Palestina bem mais vasta (porque mental) que o território confinado em que os palestinos estão hoje aprisionados. “Gostaria, é claro, de utilizar meus arquivos, mas também de filmar, para que nos digam o que é, hoje, fazer parte do povo palestino”. A primeira viagem que ela fará, assim que possa, será para encontrar os refugiados palestinos da Síria no Líbano.

“Dizia-se, de Gaza, que lá as pessoas sempre se levantavam, em primeiro lugar e sobretudo, por serem as que mais sofrem. É la que continuam a sofrer, e o trabalho a partir de meus arquivos remete novamente à sua história – a dos refugiados e a das feridas de hoje”.

1 Jean-Claude Coutausse, La danse des pierres, edições Denoël, 1990.

Na foto: “A cicatriz”

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