quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Portugal: SOB CHANTAGEM DA FINANÇA



Jorge Bateira – jornal i, opinião

As implicações da fórmula jurídica utilizada para lidar com a falência do BES mal começaram a manifestar-se. É bem possível que a desconfiança dos depositantes tenha crescido nos últimos dias e já esteja a pôr à prova a fleuma do governador do Banco de Portugal (BP) e da sua chefia em Frankfurt. Porém, a procissão ainda vai no adro, como sugerem as notícias que vamos recebendo sobre o Montepio e, pasme-se, sobre a integração do BES Angola no balanço do Novo Banco. Pelos vistos, as perdas causadas pelo regabofe financeiro de Luanda terão de ser "resolvidas" pelo banco que devia ter ficado apenas com a parte boa do BES. Carlos Costa vai ter de explicar melhor os seus critérios, a menos que se trate de uma decisão tomada por um primeiro-ministro a banhos na praia da Manta Rota.

Seja como for, a questão central é esta: será mesmo verdade que as perdas do sistema financeiro (do BES e de outros bancos, veremos) vão ser pagas integralmente pelo próprio sistema financeiro? Pela letra da lei que dá cobertura à intervenção do BP, a resposta é afirmativa. E se os bancos não estiverem em condições de solvabilidade para entregarem ao Fundo de Resolução as correspondentes contribuições extraordinárias, quem paga? Como o caso do Montepio sugere, é bem possível que várias instituições financeiras não tenham condições para reforçar o Fundo de Resolução em montantes significativos. Dado que este é gerido pelo Banco de Portugal, até há quem diga que a dívida acabará por ficar a cargo do governo português, no quadro do empréstimo contraído junto das instituições da troika, ficando os bancos a pagá-la, suavemente, ao longo de muitos anos. Note-se que, num contexto de normalidade, o esquema de resolução até poderia funcionar e pouparia os contribuintes. Porém, o que estamos a viver é tudo menos normal. A deflação ameaça estender-se ao conjunto da UE, o que só agrava o crédito malparado de famílias e empresas e torna a dívida pública (ainda mais) insustentável, pelo que não parece que a finança tenha condições para se salvar a si mesma. Essa é a tarefa de um banco central.

Dado que a união bancária está a dar os primeiros passos, muito lentamente por imposição da Alemanha, ainda não existe um fundo de resolução de escala europeia para acudir aos bancos portugueses, ou outros. Assim, encaminhamo-nos para uma situação em que o Banco Central Europeu (BCE), uma vez mais, falha num papel que é próprio de qualquer banco central, o de garante da estabilidade do sistema financeiro. Note-se que os empréstimos do BCE aos bancos, seja através da sede em Frankfurt, seja pela sucursal em Lisboa, não envolvem qualquer risco para os contribuintes. É preciso não esquecer que, ao creditar uma conta de um banco em dificuldades, como ocorreu recentemente com um empréstimo de emergência ao BES, o banco central está a exercer a sua competência básica de prestamista de último recurso; não está a endividar o Estado. Aliás, nenhum banco central vai à falência, ao contrário do que sugerem alguns "analistas", talvez mentalmente colonizados pela retórica do ordoliberalismo alemão. Como também não há bancarrota para um Estado que disponha de soberania monetária, pois, de uma forma ou de outra de acordo com o quadro jurídico em vigor, o banco central financia o Tesouro a uma taxa de juro quase nula. Pode acontecer que, em certas condições macroeconómicas, o financiamento monetário ao Estado não seja desejável, mas a verdade é que ele garante a reciclagem de qualquer dívida em moeda soberana no momento do seu vencimento.

Pelo contrário, dentro do euro, o Estado português está sob permanente chantagem dos operadores financeiros que, com o maior descaramento, indicam aos governos eleitos as políticas, o modelo de sociedade e até a Constituição que lhes agrada. Os europeístas da esquerda que defendem o euro, na prática, aceitam a ditadura da finança sobre o povo (ver Michael Pettis, "The war between workers and bankers"). Não foi por acaso que a extrema-direita deu um grande salto nas eleições para o Parlamento Europeu. O que mais será preciso para que a sociedade portuguesa abra os olhos?

Economista, co-autor do blogue Ladrões de Bicicletas

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