sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Portugal: AS EPIDEMIAS DE HOJE E AS LUTAS DE SEMPRE




Querendo desculpar-se pela Legionella, encontrou o parasita Paulo nos enfermeiros e suas reivindicações a desculpa fácil, apoiado, mais uma vez, pelo jornalismo sensacionalista.

Tiago Pinheiro* - Esquerda

Os momentos de tragédia mudam o mundo. Interrompem um conformismo que a sociedade procura; as epidemias, grandes guerras, desgraças inegáveis, produzem a necessidade de evoluir, adaptar ou simplesmente fazer diferente. O mundo reorganiza-se, escolhe os mais fortes, baralha a sua configuração, ainda que teimosamente inclinado para o mesmo lado.

O Portugal de hoje é um Portugal resistente, produto da sobrevivência à Peste Bubónica e resultado futuro da sobrevivência à Legionella. Resta saber se resistirá a todas as epidemias que o consomem, silenciosamente, sem os alaridos de uma comunicação social de berros pouco informados e de verdades convenientes. Alastra a precariedade, a emigração de uma geração inteira, a destruição da proteção social, a pobreza e a completa obliteração do poder de compra, e avança, galopante a corrupção e o desespero pela ausência de qualquer aspiração a uma vida digna.

Todas as epidemias têm a sua génese num vírus ou numa bactéria, inicialmente inócua. A sua evolução leva-a a adquirir resistências e a sua resiliência leva à sua multiplicação. Mas é sobretudo a negligência em solucionar os problemas quando em pequena escala, ou a conivência que permite que um incómodo se transforme numa desgraça.

Em Portugal alastra a epidemia, quase pandemizante, de políticos irresponsáveis, incompetentes, lapidados com mesquinhez pura, moldados com arrogância e com um faro apuradíssimo para interesses pessoais. Esta bactéria outrora inocente, sobreviveu, ano após ano e consome hoje a democracia, produzindo a epidemia mais nociva: Paulo Macedo e seus comparsas.

Como todas as epidemias fulminantes, outras surgem aproveitando a fraqueza de todo um povo. Legionella não mais é do que a infeção oportunista de um sistema de saúde decrépito, abandonado à sua sorte, movido apenas pelos milagres diários dos seus profissionais.

É a epidemia de Paulo Macedo que conduz à escassez de meios e profissionais, que conduz a unidades hospitalares onde o espaço para os utentes torna espaçosa qualquer carruagem do Metro de Lisboa em hora de ponta. É a epidemia Paulo Macedo que conduziu há mais significativa e descarada delapidação do SNS e dos seus recursos humanos, à contratação low-cost e às condições que nos colocam a ombrear com países terceiro mundistas.

É a epidemia Paulo Macedo que nos faz temer o Ébola, afinal todos sabemos que este parasita fragilizou de tal forma o SNS que só nos resta a prece divina e as indicações entusiastas de comentadores e jornalistas que não distinguem constipação de diarreia.

A epidemia torna-se particularmente agressiva com os enfermeiros. Sem carreira, sem instrumentos de regulação coletiva de trabalho, ou sequer aspiração ao trabalho digno, reconhecido e valorizado, podemos presumir que residem aqui contornos de sadismo nesta mutação virulenta. Querendo desculpar-se pela Legionella, encontrou o parasita Paulo nos enfermeiros e suas reivindicações a desculpa fácil, apoiado, mais uma vez, pelo jornalismo sensacionalista que de saúde percebeu recentemente que diarreia implica o risco de sujar a roupa interior.

O ataque feroz e desmedido aos enfermeiros significa vários aspetos, qual deles o mais assustador: significa antes de mais desconhecer a capacidade dos enfermeiros em cuidar em situações adversas, superando-se e atuando com excelência, caso contrário já os hospitais seriam antros de Clostridium, MRSA, Acinectobacter e Pseudomonas (e que confusão se estabelece agora na cabeça jornalística dos que insinuaram que Legionella é uma bactéria que dorme à noite). Significa igualmente que o Ministro reconhece, ao aumentar o número de enfermeiros mínimos, que não há profissionais suficientes para prestar cuidados necessários, tal como significa que afinal há dinheiro para suportar tal número.

Significa que após uma governação de malvadez perante uma classe, sobrecarregando horários, chicoteando a dignidade, perpetuando ataques ferozes públicos, o ministro recorda a importância dos Enfermeiros. Desenganem-se os que pensam que durará; afinal a epidemia Paulo Macedo a pouca mais olha que aos seus interesses, e a Legionella, incómodo visitante de ocasião, será mais uma batalha vencida, pelos heróis silenciosos de hoje que amanha voltarão a ser esquecidos, de certo.

A imbecilidade não é o silêncio mas as constantes explicações desajustadas, daqueles que sacodem todas as gotículas do seu capote. A Legionella de hoje foi a Gripe A de ontem, e o qualquer outra coisa de amanhã, mero alarmismo.

Aos enfermeiros cabe a responsabilidade de ser o antibiótico para tal infeção. A luta pelos seus direitos é a luta pela garantia de um SNS melhor, eficaz e eficiente. Resta, no entanto, a dúvida, sobre a força remanescente de uma classe martirizada, enfraquecida, em desesperante necessidade de cuidar de si mesma com a ferocidade e coragem com que trata dos seus utentes.

Culpa desta Legionella, é desta epidemia que devora hospitais, obrigando enfermeiros a cuidarem de 20 ou 30 doentes, que empilha pessoas em cubículos que esquecem a sua dignidade, que não permite que hajam enfermeiros que possam fazer mais do que dispender alguns minutos com cada utente, cronometrados pelos restantes milhares, todos a sofrer, a necessitar de um injetável, a necessitar de alívio nas horas finais, a necessitar de uma mera palavra de conforma, em suma de cuidados de enfermagem humanos globais.

Esta epidemia consome a alma de todos os que amam cuidar, envenenando a opinião de uma sociedade já demasiado desesperada para ter opinião própria. A luta mostra que a epidemia afinal tem debilidades, que não evoluiu para controlar uma classe unida, procurando cobardemente inibir o que a pode exterminar. Mas certo será que não desistimos, com dignidade e em torno de objetivos justos.

Texto elaborado em parceria com o Ex.mo Sr. Enfermeiro Rui Carlos Bastos Santos


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