Querendo
desculpar-se pela Legionella, encontrou o parasita Paulo nos enfermeiros e suas
reivindicações a desculpa fácil, apoiado, mais uma vez, pelo jornalismo
sensacionalista.
Tiago Pinheiro* -
Esquerda
Os
momentos de tragédia mudam o mundo. Interrompem um conformismo que a sociedade
procura; as epidemias, grandes guerras, desgraças inegáveis, produzem a
necessidade de evoluir, adaptar ou simplesmente fazer diferente. O mundo
reorganiza-se, escolhe os mais fortes, baralha a sua configuração, ainda que
teimosamente inclinado para o mesmo lado.
O
Portugal de hoje é um Portugal resistente, produto da sobrevivência à Peste
Bubónica e resultado futuro da sobrevivência à Legionella. Resta saber se
resistirá a todas as epidemias que o consomem, silenciosamente, sem os alaridos
de uma comunicação social de berros pouco informados e de verdades
convenientes. Alastra a precariedade, a emigração de uma geração inteira, a
destruição da proteção social, a pobreza e a completa obliteração do poder de
compra, e avança, galopante a corrupção e o desespero pela ausência de qualquer
aspiração a uma vida digna.
Todas
as epidemias têm a sua génese num vírus ou numa bactéria, inicialmente inócua.
A sua evolução leva-a a adquirir resistências e a sua resiliência leva à sua
multiplicação. Mas é sobretudo a negligência em solucionar os problemas quando
em pequena escala, ou a conivência que permite que um incómodo se transforme
numa desgraça.
Em
Portugal alastra a epidemia, quase pandemizante, de políticos irresponsáveis,
incompetentes, lapidados com mesquinhez pura, moldados com arrogância e com um
faro apuradíssimo para interesses pessoais. Esta bactéria outrora inocente,
sobreviveu, ano após ano e consome hoje a democracia, produzindo a epidemia
mais nociva: Paulo Macedo e seus comparsas.
Como
todas as epidemias fulminantes, outras surgem aproveitando a fraqueza de todo
um povo. Legionella não mais é do que a infeção oportunista de um sistema de
saúde decrépito, abandonado à sua sorte, movido apenas pelos milagres diários
dos seus profissionais.
É
a epidemia de Paulo Macedo que conduz à escassez de meios e profissionais, que
conduz a unidades hospitalares onde o espaço para os utentes torna espaçosa
qualquer carruagem do Metro de Lisboa em hora de ponta. É a epidemia Paulo
Macedo que conduziu há mais significativa e descarada delapidação do SNS e dos
seus recursos humanos, à contratação low-cost e às condições que nos
colocam a ombrear com países terceiro mundistas.
É
a epidemia Paulo Macedo que nos faz temer o Ébola, afinal todos sabemos que
este parasita fragilizou de tal forma o SNS que só nos resta a prece divina e
as indicações entusiastas de comentadores e jornalistas que não distinguem
constipação de diarreia.
A
epidemia torna-se particularmente agressiva com os enfermeiros. Sem carreira,
sem instrumentos de regulação coletiva de trabalho, ou sequer aspiração ao
trabalho digno, reconhecido e valorizado, podemos presumir que residem aqui
contornos de sadismo nesta mutação virulenta. Querendo desculpar-se pela
Legionella, encontrou o parasita Paulo nos enfermeiros e suas reivindicações a
desculpa fácil, apoiado, mais uma vez, pelo jornalismo sensacionalista que de
saúde percebeu recentemente que diarreia implica o risco de sujar a roupa
interior.
O
ataque feroz e desmedido aos enfermeiros significa vários aspetos, qual deles o
mais assustador: significa antes de mais desconhecer a capacidade dos
enfermeiros em cuidar em situações adversas, superando-se e atuando com
excelência, caso contrário já os hospitais seriam antros de Clostridium, MRSA,
Acinectobacter e Pseudomonas (e que confusão se estabelece agora na cabeça
jornalística dos que insinuaram que Legionella é uma bactéria que dorme à
noite). Significa igualmente que o Ministro reconhece, ao aumentar o número de
enfermeiros mínimos, que não há profissionais suficientes para prestar cuidados
necessários, tal como significa que afinal há dinheiro para suportar tal
número.
Significa
que após uma governação de malvadez perante uma classe, sobrecarregando
horários, chicoteando a dignidade, perpetuando ataques ferozes públicos, o
ministro recorda a importância dos Enfermeiros. Desenganem-se os que pensam que
durará; afinal a epidemia Paulo Macedo a pouca mais olha que aos seus
interesses, e a Legionella, incómodo visitante de ocasião, será mais uma batalha
vencida, pelos heróis silenciosos de hoje que amanha voltarão a ser esquecidos,
de certo.
A
imbecilidade não é o silêncio mas as constantes explicações desajustadas,
daqueles que sacodem todas as gotículas do seu capote. A Legionella de hoje foi
a Gripe A de ontem, e o qualquer outra coisa de amanhã, mero alarmismo.
Aos
enfermeiros cabe a responsabilidade de ser o antibiótico para tal infeção. A
luta pelos seus direitos é a luta pela garantia de um SNS melhor, eficaz e
eficiente. Resta, no entanto, a dúvida, sobre a força remanescente de uma
classe martirizada, enfraquecida, em desesperante necessidade de cuidar de si
mesma com a ferocidade e coragem com que trata dos seus utentes.
Culpa
desta Legionella, é desta epidemia que devora hospitais, obrigando enfermeiros
a cuidarem de 20 ou 30 doentes, que empilha pessoas em cubículos que esquecem a
sua dignidade, que não permite que hajam enfermeiros que possam fazer mais do
que dispender alguns minutos com cada utente, cronometrados pelos restantes
milhares, todos a sofrer, a necessitar de um injetável, a necessitar de alívio
nas horas finais, a necessitar de uma mera palavra de conforma, em suma de
cuidados de enfermagem humanos globais.
Esta
epidemia consome a alma de todos os que amam cuidar, envenenando a opinião de
uma sociedade já demasiado desesperada para ter opinião própria. A luta mostra
que a epidemia afinal tem debilidades, que não evoluiu para controlar uma
classe unida, procurando cobardemente inibir o que a pode exterminar. Mas certo
será que não desistimos, com dignidade e em torno de objetivos justos.
Texto
elaborado em parceria com o Ex.mo Sr. Enfermeiro Rui Carlos Bastos Santos
*Sobre
Tiago Pinheiro
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