segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Portugal: É O REGIME QUE ESTÁ EM CAUSA



Tomás Vasques – jornal i, opinião

Independentemente do que se seguir nos próximos dias, quer quanto à solidez dos indícios em investigação, quer quanto a medidas de coação aplicadas, as consequências políticas desta detenção já são irreversíveis

Acontecimentos políticos relevantes deste fim-de-semana, como a eleição de António Costa como secretário-geral do Partido Socialista ou a mais conflituosa convenção do Bloco de Esquerda desde a sua fundação, quase se eclipsaram nas atenções informativas. A mediática detenção do ex-primeiro-ministro José Sócrates, às dez horas da noite, de sexta-feira, no aeroporto, à chegada de Paris, com o sopro ao ouvido a um ou dois canais de televisão, ocupou exaustivamente quase todo o espaço noticioso e de comentário desde sexta-feira à noite.

Não é caso para menos. Não só porque é a primeira vez que, em Portugal, um ex-primeiro-ministro é detido, como também pelas circunstâncias que rodearam a sua detenção e pelo aparato policial com que se efectuaram buscas a sua casa, no centro de Lisboa. Repito o elementar: num Estado de Direito e democrático todos os cidadãos são iguais perante a lei, tal como todos, sobre quem recaem suspeitas ou acusações de crimes, se presumem inocentes até trânsito em julgado de sentença condenatória. Contudo, neste caso, como em muitos outros (e lembro, por todos, o caso Casa Pia, quando um juiz se deslocou ao parlamento, com uma câmara de televisão à ilharga, subindo ambos, juiz e operador de câmara, no mesmo elevador, para ir deter um deputado), as circunstâncias da detenção e as selectivas fugas ao "segredo de justiça" violam desastradamente, para não dizer intencionalmente, aqueles princípios sagrados do direito. Ainda o ex-primeiro--ministro era transportado do aeroporto para o calabouço, onde passou a noite, já um jornal publicava online, detalhadamente, toda a "acusação" de corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal. A "sentença condenatória" chegaria, poucas horas depois: ainda o juiz de instrução, natural de Mação, não tinha ouvido José Sócrates, já um ilustre deputado do PSD, também natural de Mação, acendia a fogueira, ao escrever "Aleluia! A malta de Mação não perdoa".

No momento em que escrevo esta crónica, ainda José Sócrates, o último primeiro-ministro socialista, está a ser ouvido pelo juiz de instrução, depois de passar duas noites no calabouço. Independentemente do que se seguir nos próximos dias, quer quanto à solidez dos indícios em investigação, quer quanto a medidas de coação aplicadas, as consequências políticas desta detenção já são irreversíveis. E poucos ficarão a salvo do olhar desconfiado dos cidadãos, do descrédito da política e dos políticos. As consequências caem, em igual medida, tanto sobre o partido socialista, como sobre os partidos do "arco da governação" que o têm sustentado - o PSD e o CDS. É todo o regime que está em causa: a arquitectura eleitoral, o sentimento de falta de representação, o divórcio entre os partidos e os cidadãos, os interesses dos cidadãos permanentemente espezinhados, a falta de esperança e de desígnios colectivos, o descrédito de instituições democráticas, como a Assembleia da República.

Se em Agosto, depois da queda de Ricardo Salgado, da falência do GES e do de-saparecimento do BES, um dos maiores bancos privados portugueses, se disse que nada, neste país, voltaria a ser como dantes, agora, por maioria de razão, se pode repetir, com maior segurança: depois da detenção de um ex-primeiro-ministro, por suspeita dos crimes de corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal, nunca mais amanhã será como ontem, como escreveu Adelino Maltez.

A reconhecida incapacidade dos partidos - todos os partidos do "arco parlamentar" - em renovar o regime, mantendo-se irredutíveis nas mesmas trincheiras e com o mesmo discurso, transfere para os eleitores essa tarefa. Como aqui já escrevi: as próximas eleições legislativas, daqui a dez meses, serão as mais decisivas eleições desde 1975. Não estará só em causa a escolha de um novo governo mas, sobretudo, estará em causa a cultura política das últimas décadas e o sistema político-partidário que tem sustentado este regime.

Jurista. Escreve à segunda-feira

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