sábado, 22 de novembro de 2014

Portugal: EMBALOS SEMÂNTICOS



Mariana Mortágua – Expresso, opinião

A partir do momento em que se tornou pública a necessidade de uma intervenção estatal no BES, o Governo, na voz de Maria Luís Albuquerque (MLA), apressou-se a construir duas teorias. A primeira: "aconteça o que acontecer, não haverá prejuízos para os contribuintes" (MLA, 8 Out, AR). A segunda: "O Governo teve conhecimento da decisão da resolução do BES na tarde do dia 1 de agosto (MLA, 8 Out, AR), logo, a responsabilidade da mesma cabe ao Banco de Portugal.

Ambas as hipóteses são arriscadas, e altamente irrealistas, mas ambas são cruciais para a estratégia escolhida pelo Governo: conseguir fazer passar pela goela dos portugueses mais um resgate à banca, apesar do sabor ainda amargo do BPN. A partir deste momento, a discussão deixou de ser, como deveria, sobre as escolhas políticas do Governo, para se tornar num infinito duelo semântico, em que a ministra nos vai embalando, com os seus sucessivos avanços e recuos, jogos de palavras e omissões estratégicas, habilmente utilizados para que seja sempre possível faltar à verdade sem, formalmente, mentir.  

É mesmo possível que o governo não tivesse sabido ou interferido na decisão de intervencionar o banco?

Na pior das hipóteses, no dia 22 julho o Banco de Portugal ficou a saber que os prejuízos do BES eram muito superiores ao esperado e que, a não ser que conseguisse uma recapitalização de emergência, o banco estaria insolvente. No dia 29 o regulador colocava publicamente a hipótese de uma recapitalização pública, e no dia 30, Vitor Bento, administrador do BES, pede uma reunião à ministra das finanças.  

Quando, no dia 8 Outubro, perguntada sobre o conteúdo dessa reunião, se não era óbvio que tinham sido discutidas possíveis soluções públicas para o cada vez maior elefante na sala, a ministra responde: "A pedido da administração do então BES recebi o Dr. Vítor Bento (...) À pergunta se rejeitámos a proposta de Vítor Bento eu queria esclarecer que o Dr. Vítor Bento não fez nenhuma proposta nem participou na resolução. E note, senhora deputada, a autoridade que toma a decisão é o BdP e é o Bdp que toma essa decisão. (...) O conteúdo da reunião (...) foi explicar qual foi a alteração do enquadramento legal da intervenção em instituições financeiras, que distingue as intervenções que foram feitas antes de julho 2013 e todas aquelas que venham a ser feitas depois de julho de 2013."

Esta semana, confrontada com a mesma pergunta, a resposta foi: "o que o Dr. Vitor Bento perguntou era se seria possível o Estado intervir, por exemplo, na mesma modalidade do Banif (...) Essa modalidade nesses exatos termos já não existia como tal".

É um facto, a reunião serviu para a ministra explicar ao administrador do BES uma alteração do enquadramento legal da intervenção em instituições financeiras, mas isso só foi necessário porque antes existiu uma abordagem de Vitor Bento para sondar a possibilidade uma ajuda do Estado.

Aliás, já no dia 18 de julho, sabemos agora, numa reunião do Comité de Estabilidade, o Governador do Banco de Portugal tinha proposto a Maria Luís Albuquerque a criação de um grupo de trabalho para estudar possibilidades de recapitalização pública no BES.

Mais, a prova que a hipótese estava a ser estudada é o pedido urgente do regulador, negociado com o Governo, para que a lei que enquadra as intervenções públicas na banca pudesse ser alterada. Coisa que se veio a realizar, em segredo, num Conselho de Ministros apressado, no dia 31 de julho, com promulgação no dia seguinte pelo Presidente da República.

E a verdade é que a hipótese estudada implicava a utilização de 3900 milhões de dinheiro do Estado, emprestado pela Troika, e pago pelos impostos e sacrifícios dos contribuintes. Implicava, para além disso, decidir quais eram os ativos 'bons', que ficavam no Novo Banco, e os 'maus', que passavam para o mau. Ora, entre esses ativos estavam obrigações que o BES tinha emitido ao abrigo de uma garantia do Estado, no valor de 3500 milhões de euros, e que corriam o risco de não ser devolvidos (caso transitassem para o banco mau).

A decisão formal até pode ter pertencido ao Banco de Portugal, no dia 1 de Agosto, mas é sequer razoável ponderar que o Governo de Portugal não tenha uma palavra a dizer sobre a intervenção que está a ser preparada no maior banco privado português e que envolve, direta ou indiretamente, 7400 milhões de euros públicos? Não só é impensável como, além de tudo, seria irresponsável.

É lógico que a operação era (e é) arriscada, e que a dúvida se prende com o valor dos prejuízos e não com a sua possível existência. Mesmo que o Novo Banco fosse vendido pelos 4900 milhões de euros que nele foram injetados, existiria sempre o risco de litigâncias contra o Estado por parte dos acionistas e investidores. Mas bastava que não fosse, e essa era sempre a hipótese mais provável, para a Caixa Geral de Depósitos, banco público, incorrer num prejuízo. Mais, se o valor de venda fosse manifestamente inferior aos 4900 milhões, então é claro, como foi entretanto afirmado por banqueiros privados, que a banca não iria suportar os prejuízos. Se o Estado obrigar os bancos a pagar, corre o risco de que estes também apresentem problemas de capital. Se não o fizer, terá de assumir a perda. Em qualquer dos casos não receberá o empréstimo no prazo garantido (2 anos).

Aconteça o que acontecer, e esperemos que seja o melhor cenário possível, não é verdade, como afirmou a ministra, que "não haverá prejuízos para os contribuintes". Essa é uma garantia que ninguém pode, nem deve, dar.

Um banco privado faliu. É óbvio que esse facto exige uma intervenção do Estado e, infelizmente, é óbvio que esta solução envolve prejuízos. Ao negar o óbvio, a Ministra das Finanças enreda o debate público num permanente exercício de contraditório, num constante embalo de semântica, em que as forma como os atos são explicados conta sempre mais que os atos em si. Ao fazê-lo impede a discussão pública sobre a decisão tomada, e uma avaliação séria sobre os seus defeitos, virtudes e  alternativas.

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