Nuno Ramos de Almeida – jornal i, opinião
A
corrupção em Portugal não acontece porque há alguns vígaros que prevaricam;
existe e prospera porque há gente que se apropriou indevidamente da democracia
e do Estado
Uma
das pessoas mais fantásticas que conheci foi a minha tia-avó. Foi expulsa do
ensino pelo regime salazarista. Trabalhou para a Organização Mundial de Saúde
(OMS) um pouco por todo o mundo. Há duas histórias que ela contava a que vou
fazer apelo nesta crónica. Falam de coisas diferentes, mas podem ter uma
relação mais profunda do que parece à partida.
A
minha tia estudou nos Estados Unidos no tempo do McCartismo. Vivia-se em plena
guerra fria, as autoridades de Washington imaginavam comunistas em cima de todas
as árvores a destruírem o "modo de vida americano". Vários
realizadores, jornalistas, actores, professores e intelectuais foram expulsos
da sua profissão devido a alegadas simpatias pelo comunismo. Na universidade os
alunos temiam ser prejudicados por causa das suas ideias políticas. Numa das
aulas um professor deu aos estudantes um teste para determinar a sua posição no
eixo esquerda-direita. Era uma auto-avaliação, os professores não tinham acesso
a ela. A minha tia e um outro português preencheram descontraidamente e deu
"de extrema-esquerda". Já o americano que estava ao lado, com medo de
represálias, respondeu a tudo "não sei": deu da "direita
liberal".
Segunda
história. Durante o seu trabalho, a minha parente viveu no Irão do xá. Dava
aulas de Enfermagem na universidade e trabalhava para a OMS. Na universidade, a
omnipresente polícia política, Savak, fazia desaparecer qualquer estudante
vagamente opositor. No entanto, a vida económica pretendia reger-se por padrões
do "mercado livre" de uma forma cinicamente transparente. Um dia a
minha tia foi ao banco trocar dólares pela moeda local e a pessoa do guichet
quase se recusou a fazer-lhe o câmbio e apontava reiteradamente para um senhor
que tinha uma mesinha junto ao banco e que fazia as trocas de divisas do
mercado negro. Num regime despótico, desigual e de mercado, como a ditadura do
xá, o mercado negro fazia parte do sistema. Era uma componente importante do
que permitia a manutenção do estado das coisas.
Temos
normalmente a ideia que a corrupção é um desvio do sistema, algo que é um caso
de polícia e não de política. Mas isso é na maioria das vezes falso. Os casos
de corrupção reiterada a que assistimos em Portugal, os das falências
fraudulentas dos bancos, os dos contratos desastrosos que o Estado fez das PPP,
os do tráfico de influências potenciados pela circulação directa dos políticos
entre ministérios e altos cargos nos grupos financeiros, as tramóias nos vistos
gold, a contratação de escritórios que preparam simultaneamente as
privatizações para o Estado e para os tipos que vão comprar as empresas por
tuta-e-meia, não se devem a termos em cada esquina um Vale e Azevedo, mas a
termos um regime de poder político em que um grupo social se apoderou dos bens
públicos e do Estado em seu benefício.
Não
é preciso ser particularmente revolucionário para perceber que a corrupção é um
dado permanente deste regime que expulsou o povo da democracia. Como escrevia o
historiador social-democrata Tony Judt: "A desigualdade é corrosiva.
Apodrece as sociedades a partir de dentro." E isto liga-se à primeira
história. Num país cada vez mais injusto do ponto de vista económico, político,
social, o que se pede não é que se diga "não sei", mas que as pessoas
sejam capazes de mostrar que não querem mais esta situação. Aquilo que sustenta
os corruptos é o nosso silêncio e a nossa incapacidade de imaginar uma solução
radicalmente diferente da rotatividade contentinha que temos vivido nos últimos
40 anos entre os mesmos grupos de interesses.
Editor-executivo - Escreve
à terça-feira
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