José
Mendes – Jornal de Notícias, opinião
Justiça
e Administração Interna são os esteios do Estado de direito. Quando tudo o mais
falha ou funciona mal, ao cidadão comum resta sempre a segurança do valor
matricial da sua condição de membro de uma sociedade organizada. Aqueles que
controlam as fronteiras da terra pátria, que registam quem somos e que atestam
o nosso direito à propriedade privada terão, necessariamente, de estar acima de
quaisquer suspeitas.
O
triste espetáculo dos vistos dourados parece ter posto estas premissas em causa. A Operação
Labirinto é mais um episódio de um Estado que, para além de omnipresente, se
transformou num pântano.
Aquilo
que parecia uma boa ideia acabou por se transformar em (mais um) pesadelo.
Captar investimento através da concessão do título de residente a cidadãos de
países estrangeiros é uma variante das políticas de IDE (Investimento Direto
Estrangeiro) que muitos países adotaram, sobretudo no contexto de abertura e
globalização que se constituiu como paradigma do Mundo moderno. Paulo Portas, o
vice-primeiro-ministro e autor da ideia, teve o seu mérito no lançamento da
iniciativa. Contudo, o problema das grandes oportunidades é a sua
operacionalização. E aí o Governo português falhou em toda a linha.
Não
será novidade para ninguém que o Mundo está cheio de malfeitores e de dinheiro
ilícito. Uns e outros procuram pouso seguro, leia-se enquadramento legal e
administrativo que lhes permita existirem formalmente e sem riscos. Os destinos
habituais destes "clientes" são offshores permissivos ou estados
protodemocráticos que valorizam mais o cifrão do que o princípio. Neste quadro,
o lançamento de um programa de vistos dourados capta de imediato a atenção de
gente pouco recomendável, razão pela qual se impõe a criação de mecanismos de
pré-avaliação, decisão e monitorização à prova de bala.
A
experiência de programas similares em países do mundo desenvolvido varia entre
uma maior permissividade de Espanha ou Grécia e um extremo rigor do Reino Unido
ou dos Estados Unidos. Sabe-se que a concentração de gente e dinheiro problemáticos
no Sul de Espanha, para dar apenas um exemplo, suscita preocupações que
deveriam ter sido consideradas quando se avançou para o programa dos vistos
dourados em Portugal. A
medida não podia ter sido implementada sem que antes fossem operacionalizados
os mecanismos necessários para prevenir um assalto como o que se terá
eventualmente verificado. E jamais poderiam ser atribuídos vistos de residência
com este enquadramento colocando tanto poder nas mãos de um par de pessoas.
Este tipo de decisões são, por natureza, colegiais, justamente para impedir a
instrumentalização de um agente público que se deixe seduzir pelo dinheiro
fácil.
Uma
simples monitorização do programa teria sido indício suficiente de que o mesmo
se havia convertido numa porta aberta para a compra de vistos, sem intuito de
materializar investimento reprodutivo. Com efeito, desde 2012, foram atribuídos
1775 vistos dourados, sobretudo a cidadãos chineses, sendo que apenas 91
corresponderam à transferência de capital e, imagine-se, só três vistos visaram
a criação de emprego. Tudo o resto foi compra de imóveis, ao valor mínimo
(sabe-se agora, frequentemente manipulado) de 500 mil euros. Ora, salvo melhor
opinião, investimento significa a aplicação de capital em meios de produção,
visando o aumento da capacidade produtiva e do emprego. Mas aquilo que
aconteceu com o programa de vistos dourados português foi a troca de uma
transação comercial de consumo por um direito de residência. Com a agravante de
que este direito vendido pelas autoridades portuguesas não é integralmente
nosso, já que habilita os compradores a circular sem restrições no espaço
Schengen.
A
Operação Labirinto, que pôs a descoberto uma alegada rede de interesses e
favores apoiada em figuras cimeiras da administração pública, revela duas
realidades. A primeira é que continuamos a ter políticos trauliteiros e
impreparados, que apostam mais na foto e no soundbite do que no trabalho de
casa que é necessário desenvolver para que o Estado cumpra a sua função de
facilitador, regulador e fiscalizador. A segunda é a certeza (absoluta) de que
continua a existir um Portugal corrupto, onde interesses privados e públicos se
entrecruzam de forma ilegítima em praticamente tudo o que importa neste país.
Um pântano destes começa a pedir uma revolução.
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