JOSÉ PACHECO PEREIRA – Público,
opinião
Com
ideias simplistas e erradas, e toneladas de pseudo-ideologia no lugar da
ignorância, vamos pagar muito caro, estamos a pagar muito caro.
A
bancarrota de Sócrates, que existiu mesmo, with a little help from my
friend Passos Coelho, foi o equivalente a deitar Portugal por uma ravina
abaixo, o “ajustamento” de Passos é o equivalente a atirar Portugal para um
pântano de areias movediças. Os dois são momentos complementares da mesma crise
social, cultural, económica e política que assola o país desde 2008, e que é,
em parte, um reflexo de uma crise europeia mais vasta. Em parte, mas não só.
Há
componentes nacionais que nos caíram em má sorte, e que têm a ver com uma
conjugação muito especial de incompetência, ideias erradas, superstições e
dolo. No dia em que se fizer uma verdadeira história destes últimos seis anos,
só colocar o que cada um dos protagonistas pensava, disse ou fez numa sequência
cronológica correcta mostrará como se foram destruindo todas as oportunidades,
afunilando o caminho e tentando secar com zelo todas as alternativas. O
problema é que essa tarefa de criar o deserto à volta teve eficácia, porque a
política da terra queimada tem efeitos destrutivos e diminui de facto as opções
dos que a ela sobrevivem.
Tenho
insistido nesta questão da cronologia rigorosa, até porque ela nos ensina
muitas coisas sobre como é que evoluiu o processo nestes seis anos de lixo e,
por isso, altera a nossa percepção sobre as relações de causa e efeito. Não é
uma tarefa que possa ser feita apenas puxando pela memória, porque a poluição
do que aconteceu por interpretações políticas a posteriori é grande.
Mas, se colocarmos toda uma série de perguntas e formos atrás ver as respostas,
ficamos muitas vezes surpreendidos pela capacidade que tem o discurso do poder,
em conjunto com a perda de memória que os mediatrazem à sociedade, para
“moldar” o passado às conveniências do presente.
Quando
é que a crise financeira dos activos tóxicos e do Lehman Brothers se tornou
numa crise das dívidas soberanas? E porquê? Que papel teve a decisão puramente
política da Alemanha, diante de uma Europa enfraquecida e tonta, na abertura da
frente das dívidas soberanas, as mesmas que tinha ajudado a agravar com as
decisões keynesianas da resposta inicial à crise financeira? Todo. Podia não
ter havido crise das dívidas soberanas, mesmo com as dívidas em crise profunda.
A crise das dívidas soberanas foi uma opção política alemã e teve um papel
fundamental em “soltar” a Alemanha do directório com a França e deixá-la
isolada no mando da Europa. A crise económica, de 2008 em diante, foi um
instrumento fundamental no plano político para acabar com a União Europeia como
a conhecíamos e dar origem a uma “união” de hegemonia alemã.
Que
papel teve a chanceler alemã em apontar a Grécia como “culpada”, abrindo
caminho para a categoria maldita dos PIG, e colocando-se no centro de uma política
claramente punitiva que, entre outras coisas, destruiu o pouco que sobrava da
política de coesão, a favor de uma projecção europeia das políticas do
Bundesbank? Todo. Há quanto tempo se sabia que as contas gregas eram
falsificadas e que a entrada do dracma no euro tinha sido prematura? Só em
2011? Deixem-me rir.
Quando
é que Portugal passou a PIG e deixou de ter a protecção alemã para as suas
dificuldades económicas? Depois do chumbo do PEC IV e não antes. Aliás, o PEC
IV foi um plano alemão de austeridade negociado com o Governo Sócrates e o seu
chumbo provocou a ira de Merkel, cuja primeira intervenção depois da queda do
plano na Assembleia foi uma bofetada pública furiosa em Passos Coelho. Portugal
entrou então na categoria dos PIG e muito do que hoje a propaganda do PSD e do
CDS diz sobre como Portugal estava nas ruas da amargura do prestígio europeu
refere-se ao pós-PEC IV e não antes. A crise dos juros acompanhou este processo
de crise governativa, com a queda do Governo Sócrates e a preparação do
memorando em simultâneo.
Como
é que foi possível ao PS e ao PSD terem aprovado o memorando de entendimento em
Maio de 2011 e fazerem as promessas eleitorais que fizeram nas eleições de
Junho? Sim, porque o memorando é anterior às eleições e não posterior. E se o
PSD sabia muito bem o que tinha assinado em Maio, como é que não o
“compreendeu” em Junho de forma a evitar as promessas taxativas que fez em
campanha eleitoral? Mais: como é que, se projectarmos para trás, o que hoje PSD
e CDS dizem da bancarrota de 2011 e do significado do memorando foi possível
conduzir umas eleições pós-memorando com aquela linguagem? Mais: como foi
possível anunciar, também à luz do discurso dos dias de hoje, como medida única
de austeridade, o corte “apenas naquele ano” de metade do subsídio de Natal, a
medida que bastava? E onde estão os resultados das múltiplas promessas, algumas
já vindas dos governos Sócrates, feitas para “adoçar” o corte, o chamado
Programa de Emergência Social, que implicava um programa nacional de microcrédito, um
mercado social de arrendamento, um programa nacional de literacia financeira, o
reforço de escolas em bairros problemáticos, um banco de medicamentos e um
banco farmacêutico, os tele-alarmes, um programa Rampa, o descanso do
cuidador, um banco ideias, etc., etc., etc., etc.? Se nestes anos
coleccionarmos os títulos pomposos de programas sobre programas, anunciados com
espavento e depois os espremermos, quase nada sobra.
Aliás,
ler os jornais de há pouco mais de dois, três anos, seria ridículo se não fosse
muito sério. Podia fazer todo este artigo e ainda ocupar uma parte importante
deste jornal só com os títulos pomposos de programas sobre programas, todos
impantes nas suas maiúsculas, e nos quais, nem que seja durante uns meses, se
gastou tempo e dinheiro e se colocaram pessoas, sem resultados práticos. Não é
originalidade deste Governo, mas pelo contrário uma prática bem sólida do
desperdício governamental, as chamadas “gorduras do Estado”. Mas era suposto
este fazer diferente. Aliás, não é por acaso que pelo menos na construção de
portais, páginas da Rede e outros serviços, muitos deles que duram muito pouco
e ficam indisponíveis, se alimentou um conjunto de pseudo-empresas encostadas
às “jotas”, que se movem nestes meandros ministeriais como peixe na água.
E
estamos apenas em 2011, antes do grande susto orçamental que veio com a
incapacidade do divino Gaspar de controlar o Orçamento e que levou ao “enorme
aumento de impostos” e ao contínuo assalto a salários, pensões e reformas. Ou
seja, este Governo não chegou ao poder para aplicar a austeridade
pós-memorando, e assim “salvar o país”, mas sim para fazer uma política menos
dura do que a dos últimos meses de Sócrates e só descobriu a “realidade”, como
eles gostam de lhe chamar, depois. Maldita cronologia!
Alguém
pensa que este modelo atamancado em 2011-2, assente acima de tudo no
“gigantesco aumento de impostos”, pode subsistir sem esses impostos? A herança
de Sócrates foi um Tesouro vazio que dava para três meses, a herança de Passos
Coelho é um “ajustamento” que só tem efeitos porque depende de um enorme
assalto fiscal. Não existe “ajustamento” à Passos Coelho sem impostos
elevadíssimos, centrados no trabalho e no consumo. Sem esses impostos tudo vem
abaixo como um castelo de cartas, porque nenhuma transformação estrutural foi
feita nem na economia portuguesa, nem no Estado. E as que foram feitas na
sociedade, principalmente o empobrecimento selectivo da classe média, são todas
inibitórias de qualquer genuíno crescimento.
O
país foi gerido como o jogo de SimCity – primeiro gastou-se de mais, depois
empobreceu-se de mais. Primeiro, o mayor virtual encheu a cidade de
quartéis de bombeiros e esquadras da polícia, parques e circos ambulantes, com
os índices de popularidade a aumentar. Depois veio a bancarrota e o novo mayor inverteu
a receita, desatou a aumentar os impostos, cortou os serviços públicos. A
cidade do SimCity começou a cair aos bocados, os incêndios a aumentarem, o
crime alastrando, as pessoas a emigrarem. Não são duas políticas distintas, são
duas faces da mesma política, uma o espelho da outra, ambas com efeitos
perversos desastrosos para o país.
Pensam
que houve muito mais sofisticação do que a que é preciso para “jogar” SimCity?
Não, foi mesmo assim, com ideias simplistas e erradas, e toneladas de
pseudo-ideologia no lugar da ignorância. Vamos pagar muito caro, estamos a
pagar muito caro. Querem morrer rapidamente ou ficar muito feridos, caindo por
uma ribanceira ou enterrando-se num pantanal?
1 comentário:
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