sábado, 17 de maio de 2014

Portugal – UE: MUDANÇA




Tiago Mota Saraiva – jornal i, opinião

Não haverá maior hipocrisia que a de um partido favorável a todas as políticas estruturantes desta UE apresentar-se às eleições europeias sob a palavra de ordem da mudança. A mentira eleitoral é a regra de ouro que permite essas políticas. Não perturba os mercados.

Na maioria dos países da UE, dois partidos alternam-se no poder investindo milhões em propaganda para parecerem diferentes. Valorizam-se as zaragatas. As suas certezas não são questionadas. Tudo o que paira fora do seu discurso é ridicularizado de modo que quem não tenha intenção de depositar o seu voto neste agregado sinta que a única forma de protesto é a abstenção.

Mas existe quem defenda políticas diferentes.

A extrema-direita ganha terreno por toda a Europa com a ideia simples de que quem está ao nosso lado está a ocupar o lugar que merecemos, que o nosso vizinho nos está a retirar rendimento, que o imposto que pagamos e nos deixa na miséria está a ser entregue a quem o não merece e que "eles" são corruptos e bandidos. O primarismo permite que a ideia se enraíze e propague fora dos canais convencionais.

À esquerda temos duas ideias distintas. Há os que, ainda que críticos, aceitem jogar o jogo sem lhe alterar as regras, procurando demonstrar a sua eficácia táctica a partir da não hostilização de parte do poder vigente. Trabalha-se religiosamente na crença de um momento redentor. Por fim, à esquerda, temos quem faça um discurso político contrário às regras instaladas. Propõe-se um outro caminho. No plano mediático, tudo o que se descreve desse outro caminho é meticulosamente ridicularizado ou silenciado. Transformam-se mentiras em verdades, opiniões contrárias em certezas.

Este outro caminho é certamente árduo de trilhar e difícil de prever. Decidir que nos mantemos neste rumo é bastante mais previsível mas ninguém acreditará que nos leve a um final feliz. 

Escreve ao sábado

Portugal: João Ferreira diz que Comissão tem a “arrogância do colono”




O eurodeputado comunista João Ferreira afirmou hoje que a Comissão Europeia (CE) se comporta "quase com a arrogância do colono" e acusou o Governo de servir interesses que não os do país, comentando o Conselho de Ministros extraordinário.

"A intenção da CE é, quase com a arrogância do colono que chega à colónia, dizer que ‘você cumpriram o que determinamos nos últimos anos, mas, atenção, este caminho é para continuar nos próximos anos'. Uma decisão que os portugueses têm nas mãos na próxima semana é se querem continuar este caminho. A CE veio lembrar que é para seguir, independentemente do fim do período formal de vigência deste programa", disse, numa ‘arruada’ bastante participada, em Setúbal.

Em comunicado, o comissário europeu para os Assuntos Económicos e Financeiros, Siim Kallas, advertiu Portugal para o facto de não existir "complacência" no ‘pós-troika', tendo que ser mantidas nos próximos meses e anos as políticas orçamentais sólidas e assegurado o compromisso com reformas que estimulem o crescimento.

"Por acaso, é significativo que os documentos tenham sido escritos primeiro em inglês e depois traduzidos para português. Mostra bem que interesses este Governo e esta política estão a servir", declarou João Ferreira sobre a reunião governamental que assinala hoje o fim do programa de assistência económico-financeira, acrescentando que "não é com aqueles que trouxeram" Portugal "ao buraco que se vai sair dele".

Entre apelos ao voto na CDU, "a única força que afirma, sem ambiguidades, a importância de uma profunda e genuína mudança, desejada por cada vez mais portugueses", o cabeça de lista de PCP, "Verdes" e Intervenção Democrática viu o desfile engrossar-se dada a coincidência do encontro anual de "cante alentejano", no largo da Misericórdia.

"Como digo, temos sentido, nos últimos dias, não apenas aqui em Setúbal, mas também no norte do país, a adesão crescente de setores da população às propostas e programas da CDU. Gente cansada com o que tem sido uma alternância, falsas promessas de mudança feitas por gente que quer que fique tudo na mesma. Gente, sobretudo, cansada com o que tem sido uma dança de cadeiras, alternância sem alternativa", afirmou.

João Ferreira respondeu desta forma quando foi questionado sobre o apoio do antigo dirigente social democrata António Capucho ao PS e ao encontro de hoje entre o líder socialista, António José Seguro, e a Associação Renovação Comunista, marcado para o início da tarde.

Lusa, em jornal i – foto Rodrigo Cabrita

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Angola: A Propaganda de Isabel dos Santos, George Soros e Eu




Rafael Marques de Morais – Maka Angola, 7 Maio, 2014

Há já vários meses, a consultoria de imprensa portuguesa da Isabel dos Santos, liderada por Luís Paixão Martins, tem estado a tentar desenvolver uma campanha contra mim. A exposição pública dos negócios da filha do presidente, sobretudo como actos de corrupção do seu pai, não têm sido disputados com provas em contrário.

Tentativa de difamação

Uma antiga associação entre mim e a Fundação Open Society, patrocinada pelo bilionário e filantropo George Soros, tem sido usada, revelando desespero de causa, para atingir-me no terreno da moralidade. Esse ensaio tem sido tentado, sem sucesso, pela propaganda do regime em Angola. Todavia, a perfídia com que tal missão passou a ser assumida por um mercador de comunicação português tem muito que se lhe diga, mais pela sua forma obtusa do que pelo seu conteúdo.

Tal tentativa oferece, no entanto, uma oportunidade para revisitar o modo como o regime do presidente Dos Santos não tem olhado a meios para neutralizar o autor. O envolvimento de Soros em Angola é apenas um episódio dessa obsessão oficial, que é o que interessa por ora.

Ademais, em breve, novas revelações de monta sobre a teia de corrupção e negócios da família Dos Santos, particularmente de Isabel dos Santos, deixarão ainda mais fragilizados e vulneráveis, diante da opinião pública, os envolvidos. Certamente aumentarão o seu nível de desespero e o dos seus defensores. Será interessante notar, nessa altura, para além do recurso à violência, bruta ou requintada, que outras estratégias o poder e o dinheiro lhes proporcionarão na sua defesa.

A questão de George Soros é simples. O regime do pai de Isabel dos Santos tem sido o principal beneficiário desse envolvimento. E é justamente por essa ironia fina que vale a pena escrever.

Antes, contudo, é preciso explicar aos leitores o que terá desorientado o relações públicas de Isabel dos Santos. 

Proposta à Forbes

A 11 de Agosto de 2013, Luís Paixão Martins escusou-se a responder às questões colocadas por mim e pela editora Kerry Dolan no âmbito da investigação que realizámos para a revista Forbes sobre Isabel dos Santos. As primeiras perguntas foram enviadas por e-mail em Abril, após anuência da Luís Paixão Martins Comunicações (LPMC).

Num e-mail dirigido a Kerry Dolan, o consultor português apresentou nos seguintes termos a sua condição para responder às perguntas sobre Isabel dos Santos:

“Certamente, caso realmente queira a nossa cooperação para informar os vossos leitores com precisão, uma publicação como a vossa deve trabalhar com um jornalista de negócios, ou um especialista em economia, com experiência de Angola e/ou Portugal; as suas economias, mercados e investimentos; alguém que vos poderia providenciar informação isenta, apolítica e verdadeira. Este não é o caso. Você escolheu trabalhar com um activista político. Você não escolheu trabalhar com alguém independente e com experiência em economia. Tenho o prazer de lhe dar alguns contactos de jornalistas independentes económicos/de negócios que trabalham para publicações reputadas, que se especializam em economia e negócios em Angola, Portugal e países de expressão portuguesa.”

Esta proposta, evidentemente, foi recebida como sendo ofensiva e ridícula. No dia seguinte, tendo sido mais uma vez avisado de que o artigo seria publicado de qualquer modo, Luís Paixão Martins acabou por responder a algumas questões, reafirmando, no entanto, a sua oferta anterior a Kerry Dolan:

“Qualquer jornalista português com experiência em negócios, pode ajudá-la na identificação de fontes. Infelizmente, você escolheu trabalhar com um activista político. Você escolheu não trabalhar com alguém com conhecimentos em economia. Como disse antes, tenho o prazer de lhe dar alguns contactos de jornalistas independentes económicos/de negócios que trabalham para publicações reputadas, que se especializam em economia e negócios em Angola, Portugal e países de expressão portuguesa.”

Sobre a forma como a LPMC pode dispor de jornalistas portugueses para escreverem sobre a sua cliente é algo que apenas diz respeito à comunicação social portuguesa e à opinião pública local.

A investigação foi publicada na edição da Forbes de 3 de Setembro de 2013  e teve perto de 393,000 visualizações online.

Caprichosa, Isabel dos Santos, entretanto, adquiriu os direitos de publicação da Forbes para Portugal e para países africanos de expressão portuguesa. Deste modo, a Forbes reconquistou a sua reputação no universo comandado por Isabel dos Santos.

No entanto, a Forbes publicou mais tarde nova investigação sobre como Isabel dos Santos adquiriu a joalharia suíça De Grisogono e passou a controlar o mercado de diamantes em Angola, por via de uma parceria ilícita com a empresa estatal de comercialização de diamantes, a Sodiam S.A. Tudo isso através dos actos corruptos do pai, o presidente José Eduardo dos Santos. Sem argumentos de defesa capazes de limpar o nome de Isabel dos Santos, foi então engendrada uma conspiração internacional, com George Soros à mistura.

Vamos então ao caso Soros. 

O Encontro

Em 1997, aquando de um jantar em que eu estava presente, juntamente com perto de outros 40 convidados, incluindo personalidades muito importantes da África do Sul, George Soros era o convidado de honra. Após ter feito o seu discurso, Soros disse à audiência, de improviso, “agora chamo o meu amigo Rafael Marques”, afirmando que eu partilharia as minhas ideias sobre Angola e o papel da sociedade civil.

Recusei-me a falar. Não fazia parte do programa e eu não estava preparado. Tinha sido apenas convidado para jantar. Senti-me honrado quando soube que tinha sido colocado na mesa de George Soros. Foi aí que o conheci, e conversámos durante algum tempo, sobre assuntos genéricos.

Pouco depois, George Soros voltou a sentar-se à mesa e, sem desanimar com a minha recusa, disse-me que me tinha oferecido uma grande oportunidade e que cabia a mim, apenas, aceitar ou recusar. Mudei de ideias. Dirigi-me ao palanque e defendi a ideia de que a democracia só funciona quando alicerçada no ensino, a começar pela educação primária, e manifestei o meu desencanto com o modus operandi das organizações internacionais pela superficialidade dos seus programas de apoio à democratização e à luta pelo respeito dos direitos humanos. Insisti na educação.

Aposta na Educação

Para minha surpresa, passados dois meses, recebi a visita de Terrice Bassler, especialista em educação da Open Society, vinda de Nova Iorque. A então vice-ministra Francisca do Espírito Santo proporcionou-nos um encontro e organizou uma visita ao Bengo, na qual incluiu altos funcionários do seu ministério.

Durante dois anos, e até este encontro entre mim e Terrice Bassler, a Open Society tinha tentado estabelecer-se em Angola sem sucesso.

Em menos de dois meses, estabeleceu-se um projecto-piloto para a capacitação de professores primários no Bengo e nos arrabaldes dos municípios de Cacuaco e Viana, em Luanda. Com uma dotação inicial de US $250,000, destinados à educação apenas, a organização pediu-me para representá-la interinamente em Angola, durante alguns meses, até à contratação de um director. Acabei por ficar seis anos, renovando o contrato todos os anos.

Durante mais de um ano, o escritório dessa organização multimilionária foi a minha sala de jantar, de modo a minimizar os custos administrativos.  

Até à minha saída, em finais de 2004, em colaboração com o Ministério da Educação, a Open Society capacitou mais de 4,500 professores primários, sobretudo no Bengo, em Luanda e no Kwanza-Sul. Estendeu os seus seminários de formação de formadores às províncias do Uíge, Moxico e outras. A determinada altura, o orçamento para o projecto de educação ascendeu a US $500 mil anuais. Todo o pessoal do projecto de educação provinha do Ministério da Educação, em regime de colaboração. Após o termo das suas funções como coordenadora do projecto de Educação da Open Society, em 2004, Luísa Grilo assumiu as funções de directora nacional do Ensino Geral do Ministério da Educação, cargo que mantém até à data presente.

Prisão 

Após a minha detenção, a 16 de Outubro de 1999, por ter escrito o “Batom da Ditadura”, levantaram-se vozes internamente, ao nível do Ministério da Educação e do MPLA, a exigir o fim do projecto. A iniciativa era apresentada como uma manifestação de lealdade e solidariedade para com o presidente da República, que ordenou a minha detenção por se ter ofendido com o texto que o caracterizava como ditador e corrupto. Outras vozes, no entanto, dignaram-se a defender os méritos do projecto e a separá-lo das minhas opiniões pessoais. O “Batom da Ditadura” tinha sido uma resposta aos insultos do deputado João Melo. Eu promovera uma iniciativa de apelo ao cessar-fogo em Angola a que João Melo chamou de “heresia”.

Tal era a lealdade ao pai de Isabel dos Santos, que os meus captores apontaram-me sete armas, quando abri a porta de casa, incluindo uma pistola pressionada contra a minha têmpora. Fui encarcerado em condições sub-humanas. Foi nessa altura que vivi a realidade dos abusos contra os direitos humanos. Ao invés de fraquejar, indignei-me. Estabeleci um sistema de denúncia dos casos mais graves com os quais ia tomando contacto na cadeia.

Durante a minha detenção, George Soros engajou-se pessoalmente, para além da sua rede de fundações, para conseguir a minha libertação. Soube, mais tarde, que telefonara a dois estadistas africanos, que mantinham boas relações com Angola, para além de outros dignitários. Houve várias estratégias de pressão. Até em Portugal, para além do apoio incondicional de Mário Soares, a própria Assembleia da República abordou o caso, por iniciativa do Bloco de Esquerda.

Internamente, a pressão também era significativa. Na altura, o então presidente da Conferência Episcopal de Angola e São Tomé, o arcebispo D. Zacarias Kamwenho, foi visitar-me à Cadeia de Viana, na companhia de outros bispos. O próprio presidente José Eduardo dos Santos, e este facto é aqui revelado publicamente pela primeira vez, teve a iniciativa de enviar também um emissário seu à cadeia, para saber do meu estado de saúde.

Quando saí do estabelecimento prisional de Viana, tinha dossiês até de casos de escravatura a que estavam sujeitos vários condenados, obrigados a trabalhar nas quintas privadas de certos dirigentes. Denunciei o caso de um jovem que se encontrava em prisão preventiva havia 15 anos. Centenas de presos tiveram de ser libertados por excesso de tempo cumprido em prisão preventiva. Este estabelecimento prisional encerrou para obras pouco tempo depois. Passaram a chamar-me activista dos direitos humanos. Tenho o maior orgulho em defender os direitos dos meus concidadãos, assim como tenho o maior orgulho em expor aqueles que saqueiam o país sob o comando de José Eduardo dos Santos. A corrupção institucionalizada em Angola também configura uma grave violação dos direitos dos cidadãos por privação de direitos económicos e sociais.

Democracia e Direitos Humanos

Os projectos de apoio da Open Society à comunicação social, à democracia e aos direitos humanos acabariam por ter maior visibilidade devido à sua mediatização, apesar de terem sido sempre secundários em relação à educação. Durante os meus anos de liderança, todos os outros projectos juntos nunca tiveram um orçamento superior ao da educação. Logo, o governo foi o maior beneficiário dos financiamentos da Open Society.

As conferências tinham sempre a cobertura em directo da Rádio Ecclésia, o que permitia contribuir para o alargamento do espaço de debates públicos sobre temas candentes da sociedade. O Semanário Angolense, sob direcção de Graça Campos, publicava sempre suplementos com os contributos e resultados das conferências. Também publicou, em suplemento, os relatórios sobre a violação dos direitos humanos em Cabinda. Os dirigentes do MPLA participavam desses encontros.  

George Soros e o Pai de Isabel dos Santos

Quando a equipa de comunicação de Isabel dos Santos procura associar-me a George Soros de forma negativa, escamoteia factos relevantes da relação entre o próprio regime e Soros.

Essa relação começou com uma grande estratégia arquitectada e liderada por Carlos Feijó, então consultor do presidente do Conselho de Administração da Sonangol, Manuel Vicente, e do próprio presidente da República.

A estratégia de Carlos Feijó aconselhava o presidente a optar por uma política de aproximação a George Soros, como forma efectiva de me neutralizar. Supunha-se que, sem a cobertura institucional e financeira da Open Society, eu deixaria de ser uma preocupação para o presidente.

O presidente aprendera uma lição. A brutalidade da minha detenção e o meu julgamento acabaram por fortalecer as minhas convicções, causando mais danos à sua imagem, quer no país, quer no exterior.

De acordo com a linha de pensamento de Feijó, eu passaria a ser apenas vítima da frieza dos interesses económicos de Soros e não da astúcia do regime. A iniciativa incluía o meu isolamento de potenciais focos de apoio ou de relacionamento com o exterior, como embaixadas ocidentais e ONGs internacionais com quem eu mantinha boas relações. Nessa altura, um embaixador português foi ao extremo de convocar uma conhecida e influente figura do MPLA com quem eu mantinha grande proximidade. O embaixador português solicitou-lhe que pusesse fim à relação de amizade comigo, caso contrário deixaria de receber convites das embaixadas ocidentais, teria problemas com vistos e passaria a ser ostracizado pela comunidade internacional. As “sanções”, afinal, eram combinadas. Também era essencial o isolamento interno: reduzir o visado à condição de miserável, sem meios de subsistência, constituía um anexo da estratégia.

Dos Santos aprovou a estratégia.

Manuel Vicente e o então ministro das Finanças, José Pedro de Morais, passaram a ser os executores da política de aproximação a George Soros, aos quais se juntou o embaixador nas Nações Unidas, Ismael Martins.

Dos contactos iniciais mantidos com essas entidades, George Soros informou-me pessoalmente por telefone. Sem rodeios, disse-me também que pediam a minha demissão para facilitar a expansão da Open Society em Angola, e para o desenvolvimento de projectos conjuntos de transparência e direitos humanos. Numa dessas conversas, os indivíduos que faziam a escuta telefónica desligaram seis vezes a chamada, após algumas interferências verbais na conversa. Soros parodiava com a situação e insistia em ligar novamente.

Entretanto, o vice-presidente da Open Society, Stewart Paperin, já tinha visitado Angola duas vezes, para encontros com o governo, sem que eu tivesse tido conhecimento. Desses encontros resultaram a elaboração de um memorando de entendimento entre a Fundação George Soros, a Sonangol e o Governo de Angola.

O memorando previa assistência técnica e financeira da Open Society ao governo e à Sonangol para a implementação de reformas acordadas. Essencial, como sempre para o governo: os entendimentos incluíam iniciativas destinadas a melhorar a imagem do governo e da Sonangol no exterior, para promover um maior acesso aos mercados internacionais de capital, etc.

Fonte da presidência da República informou a Rádio Voz da América (VOA) acerca da minha demissão da Open Society, justificando-a como parte dos entendimentos celebrados com Soros. Tomei conhecimento danotícia da VOA , em Washington, onde chegara um dia antes para uma palestra.

Fui a Nova Iorque falar directamente com Soros, que me convidou para ir tomar o pequeno-almoço consigo no seu apartamento. Estava presente Stewart Paperin. Soros foi muito claro sobre tudo o que tinha sido negociado e ofereceu-me US $500,000 para que a estratégia de isolamento do governo não me deixasse na penúria. Recusei prontamente. Fi-lo da mesma forma que recusei também a oferta da assessoria jurídica de José Eduardo dos Santos para que não houvesse julgamento, em 2000, juntamente com a suposta felicidade e riqueza que eu encontraria no exterior do país. 

Expliquei a Soros que o governo não honraria a sua palavra. Ele disse-me que era um risco que valia a pena correr.

Stewart Paperin interveio, chamando-me o “mau da fita” e considerando-me um empecilho ao crescimento e à expansão da Open Society em Angola. A partir dali, percebi que não havia mais nada para discutir. Soros repreendeu o seu vice-presidente por esta intervenção, desculpou-se e terminámos o pequeno-almoço.

Como se esperava, não houve assinatura do memorando de entendimento. Todavia, os homens do presidente tinham outra carta na manga. Dos Santos receberia George Soros como seu convidado especial no Congresso do MPLA, realizado de 6 a 9 de Dezembro de 2003. Manuel Vicente tinha o jacto executivo da Sonangol pronto para transportar o bilionário da Cidade do Cabo até Luanda.

Entre as várias tentativas para demovê-lo da ideia, dois altos dirigentes do MPLA e o actual presidente da UNITA, Isaías Samakuva, paralelamente, intervieram junto de Soros para abortar a sua iminente visita a Angola. Era também do interesse de sectores influentes do MPLA e da oposição o papel catalisador da Open Society junto da sociedade civil, na promoção de espaços de debate para a realização da democracia participativa.

A viagem de Soros acabou mesmo por não se realizar. No entanto, o presidente da sua fundação, Aryeh Neier, visitou Luanda para falar apenas com a sociedade civil, prestar-me solidariedade e reafirmar a minha manutenção no cargo.

A partir dessa data, a estratégia passou a ser sub-reptícia e executada pelo escritório regional, Open Society Initiative for Southern Africa (OSISA), baseado na África do Sul.

Em Maio de 2004, a Open Society patrocinou o colóquio “Angola na Encruzilhada do Futuro”, que teve lugar em Lisboa, em Maio de 2004, na Fundação Mário Soares, e onde o MPLA se fez representar. O secretário para os Assuntos Políticos e Eleitorais do Bureau Político do MPLA, o deputado João Martins, também foi prelector.

Obviamente, o presidente do MPLA, José Eduardo dos Santos, autorizara esta participação. A estratégia tinha sido revisitada.

Passado um mês, em Junho de 2004, solicitei a minha demissão. Recusei a proposta de acomodação no conselho de administração da OSISA, bem como uma bolsa de estudos que incluía a manutenção do meu salário e outras alternativas. Acreditei que, com a vitória da estratégia presidencial, poderia finalmente dedicar-me a outras tarefas. Pediram-me para ficar mais seis meses , de modo a assegurar a transição.

Nessa altura, estava empenhado no projecto de monitoria da violação dos direitos humanos na região diamantífera das Lundas. A OSISA cancelou o projecto abruptamente como forma de impedir a produção do relatório e sobrecarregar-me financeiramente com os compromissos então assumidos. “Lundas: As Pedras da Morte”, que escrevi em co-autoria com o advogado português Rui Falcão de Campos, acabou por ser lançado em Angola, Portugal e nos Estados Unidos. Não lamentei o facto de ter gasto, do meu próprio bolso, cerca de US $30,000 para honrar os compromissos então assumidos. Angola é o meu país.

Incluí a Open Society nos agradecimentos da obra. Em Fevereiro de 2005, cheguei a Washington, para o lançamento do relatório no Woodrow Wilson Center, sem dinheiro para pagar o hotel. Exasperada, a então vice-presidente da Open Society Institute, em Washington, Deborah Harding, decidiu apoiar-me pessoalmente e providenciou a minha acomodação em casa de uma sua amiga, no coração de Georgetown. Desde então, uma mão-cheia de amigos têm feito toda a diferença.

Depois desse acto de sabotagem, nunca mais tive qualquer tipo de contacto institucional com a rede de fundações de George Soros ou o seu patrono.

A Influência do Petróleo e a Propaganda sem Gás

Em 2009, durante as minhas investigações, percebi melhor a manutenção da relação de Soros com o poder angolano. Soros tornara-se no principal acionista da Cobalt International, uma empresa petrolífera americana basicamente criada com investimentos da Sonangol.

A Cobalt associou-se a duas empresas-fantasma angolanas, a Nazaki Oil and Gas e a Alper Oil, na prospecção dos blocos 9 e 21, de forma corrupta. A primeira é propriedade do triunvirato Manuel Vicente e os generais Manuel Hélder Vieira Dias Kopelipa e Leopoldino Fragoso do Nascimento – o testa-de-ferro do pai de Isabel dos Santos. A segunda tem como último beneficiário Manuel Vicente.

O general Leopoldino Fragoso do Nascimento, que foi o chefe de comunicações do presidente, afirma-se hoje publicamente, no seu website, como o criador da UNITEL.

Luís Paixão Martins cai no seu próprio embuste ao procurar fazer conjecturas sobre a suposta participação de Soros no negócio da UNITEL, através da Portugal Telecom. Na fértil imaginação da assessoria de imprensa de Isabel dos Santos, Soros conspira comigo para tentar impedir a venda das acções que a Portugal Telecom (PT) detém na UNITEL. Isabel dos Santos quer a PT fora do negócio. Isabel dos Santos usou a mesma estratégia para afastar o empresário Américo Amorim da parceria que detinham na cimenteira angolana Nova Cimangola, em 2010.  A voracidade da filha do presidente estende-se também à participação societária de 25 porcento que Américo Amorim detém no Banco BIC, de direito angolano, comofoi anunciado há dias pela imprensa portuguesa. A filha de José Eduardo dos Santos tem igual capital no referido banco e quer as quotas de Amorim. Serão também conspirações de Soros e Rafael Marques?

Em 2009, publiquei uma investigação detalhada sobre os negócios do triunvirato, intitulada “Presidência da República: O Epicentro da Corrupção em Angola” 

Aí revelei o cruzamento de negócios de George Soros com o poder angolano.

Este artigo deu origem a uma investigação nos Estados Unidos contra a Cobalt, por suspeita de corrupção de dirigentes angolanos. George Soros acabou por vender as suas acções desta empresa em Junho de 2010, tendo desfeito com celeridade a sua associação à nomenclatura angolana por via de tal negócio.Vendeu por US $31 milhões as acções que tinha comprado por US $81 milhões. 

A forma como se tenta usar a minha relação com George Soros fez-me lembrar uma entrevista na rádio Luanda Antena Comercial (LAC), há muitos anos atrás. O José Rodrigues tentou “grelhar-me”, no programa “Café da Manhã”, sobre como a minha relação de amizade com Mário Soares como um acto de lesa-pátria. Respondi que, se tal fosse o caso, então maior crime estavam a cometer os assessores do presidente e outros dirigentes que tinham os seus filhos a estudar no colégio privado da família Soares em Lisboa. Fez-se logo um intervalo, para que eu não mais tocasse no assunto. Na realidade, nada mais tinha a dizer, porque nunca revelaria a identidade dessas figuras: que dessem a melhor educação possível aos seus filhos.

Há, contudo, uma explicação para esta campanha promovida contra a minha pessoa pela assessoria de Isabel dos Santos. A mediocridade do presidente e da elite que o adula só se pode afirmar como o que há de melhor em Angola por meio da negação e anulação da consciência individual e da dignidade do outro – aquele que se nega a fazer parte do esquema ou é excluído.

Sempre acompanhei as estratégias intramuros contra mim e contra o meu trabalho. Percebi a paranóia que provoco no seio do regime, ao ponto de merecer a mobilização de tantos recursos contra aquilo que faço e que continuarei a fazer.

Actualmente, a vigilância, o controlo e a observação visual da minha pessoa, dentro e fora do Angola, foi elevada ao nível máximo. O regime persegue uma ideia que julga estar a ser polida na minha consciência.

Isabel dos Santos desconhece, todavia, aquilo em que está a meter-se, e não tardará a perceber que a sua assessoria de comunicação está, na realidade, a expô-la a ventos fortes.

Angola - Censo: HOMENS COM DUAS MULHERES...




Cartoon de Casimiro Pedro em Jornal de Angola

ANGOLA, CENSO 2014



Eugénio Costa Almeida* - Pululu

Hoje, sexta-feira, 16 de Maio de 2014, e desde as 00 horas ter-se-á iniciado, oficialmente, o primeiro Censo Geral da População e da Habitação de Angola do pós-independência. Até 31 de Maio, cerca de 91 mil recenseadores vão estar nas ruas angolanas.

Isto, claro, se alguns dos recenseadores e seus supervisores não faltarem; recorde-se o que se passou, ontem em Viana nos centros das Escolas 5030, na Sanzala, e 964, no Grafanil-Robaldina, ambos em Viana, que ameaçaram não abrir os Centros, se não lhes pagarem o que lhes devem, até às 6 horas de hoje. Ficou a promessa de liquidação...

Para quem precisar de mais informações sobre o Censo e como tirar dúvidas, queiram contactar o telefone 114.

Só é pena não haver, também, uma "sondagem" oficial aos angolanos que ainda estão fora do País e são milhares; até porque nem todos estão registados nos respectivos consulados, em parte devido a grandes distâncias e ao - quase insanável - conflito trabalho/horas de expediente!

*Eugénio Costa Almeida* – Pululu - Página de um lusofónico angolano-português, licenciado e mestre em Relações Internacionais e Doutorado em Ciências Sociais - ramo Relações Internacionais -; nele poderão aceder a ensaios académicos e artigos de opinião, relacionados com a actividade académica, social e associativa.

Brasil: ENTREVISTA A IHU ONLINE



Ricardo Antunes – Revista Rubra

“O governo Lula foi uma surpresa muito bem-sucedida para os grandes capitais”

IHU On-Line – Passados quase três mandatos do governo do PT, que em 2014 completa 12 anos ininterruptos, que balanço é possível de ser feito com relação ao mundo do trabalho?

Ricardo Antunes – O balanço, no seu conjunto, é negativo. Naturalmente, sabemos que durante esse período foram criados inúmeros empregos, e, sob este ponto de vista, comparado ao governo Fernando Henrique Cardoso, não há dúvida de que os governos Lula e Dilma foram superiores ao anterior. Digo que no conjunto é negativo, porque o Brasil não sofreu mudanças estruturais no que concerne ao trabalho. Por exemplo, aumentaram os empregos formais, o que também é positivo, mas há uma enorme rotatividade da força de trabalho no país, aumentou intensamente o trabalho no setor de serviços, dando nascimento a um novo proletariado precarizado. Trata-se de um emprego em que a precarização é a constante.

A formalização, quando existe, também é quebrada pela rotatividade ampliada. Reconheço que o governo Lula tomou algumas medidas que diminuíram o impacto da formalidade, mas é importante lembrar também que, no final do primeiro mandato, ele foi o responsável por um projeto de reforma trabalhista, no âmbito sindical, especialmente, que criava uma brecha para que o negociado se sobrepusesse ao legislado. Portanto, fazendo um olhar de conjunto, podemos dizer que o governo Lula foi menos nefasto que o governo de Fernando Henrique Cardoso.

Porém, o que se espera de um governo com acento de esquerda é que ele enfrente a questão da superexploração do trabalho. O vilipêndio, as mortes no trabalho, os sofrimentos, as terceirizações, as precarizações, as rotatividades ampliadas, o emprego supérfluo, isso não foi contentado.

Ao contrário do período anterior, em que houve a prevalência de uma economia oscilando entre um pequeno crescimento e a recessão, no governo Lula houve um crescimento econômico, e esse crescimento da economia gerou muitos empregos como estamos vendo até hoje — ainda que a situação econômica atual seja de muito mais turbulência que a do início do governo PT. Esta situação não me permite dizer que foi um governo que trouxe mudanças significativas. Ele aumentou o emprego porque houve crescimento econômico.

É imprescindível lembrar que, ao mesmo tempo que houve uma valorização pequena, mas real, do salário mínimo — pois o salário mínimo no Brasil (pouco mais de US 300) é risível para quem ocupa uma das dez maiores economias do mundo —, os grandes capitais ganharam muito dinheiro com os governos Lula e Dilma. O triste e recente episódio do enriquecimento de inúmeros setores envolvidos na Copa da Fifa e o monumental descontentamento popular da juventude, deste novo precariado não industrial mas de serviços, desta juventude que pega trem, ônibus e sai da periferia para trabalhar na cidade, demonstra contrariedade a esse processo, o que, por certo, não permite que meu balanço seja positivo.

IHU On-Line – Considerando-se que Lula vem do movimento operário, esperava-se dele iniciativas mais ousadas?

Ricardo Antunes – Se olharmos para o passado de Lula, anos 1970 e 1980, esperávamos atividades um pouco mais corajosas. Lula foi eleito, em 2002, com uma votação expressiva e teria condições, em tese, de tomar medidas mais fortes em defesa do trabalho e de mudanças estruturais. O Brasil se mantém como um país marcado pela insegurança e pela superexploração do trabalho. Apesar de a China e outros países da Ásia, a Zona Franca da América Central — Haiti, República Dominicana — e cidades do México terem níveis de superexploração mais intensos que os nossos, isso não elimina o fato de que temos intensa exploração do trabalho.

Isto o governo Lula não enfrentou, e não o fez em razão dos grandes capitais, do agronegócio, da produção de commodities; mais ainda, o ex-presidente não só abriu o nosso país a uma transnacionalização da economia, como pegou o empresariado pela mão — as empreiteiras, por exemplo — e transnacionalizou, permitindo que essas grandes empresas possam fazer outros trabalhos na América Latina, na África e em outros continentes. Isto é, o governo Lula foi uma surpresa muito bem-sucedida para os grandes capitais. Por isso, vários dos setores querem a volta dele, e não é por acaso que Delfim Neto vive elogiando o governo.

Quando o Lula e o PT ganharam as eleições em 2002, sabíamos que nem o Lula nem o PT eram os mesmos e, tampouco, o Brasil era o mesmo. Eles já tinham padecido de um trágico processo de desertificação neoliberal, que nos atingiu na década de 1990. Inicialmente com Collor e depois com Fernando Henrique Cardoso.

IHU On-Line – Onde houve avanços e quais pontos da agenda do trabalho permaneceram como estavam, ou pior, recuaram?

Ricardo Antunes – A melhora se deu fundamentalmente no emprego, que decorre do crescimento da economia e da relativa contenção do processo de informalização do trabalho. Mas há coisas negativas. Aumentou enormemente o processo de cooptação das entidades sindicais pelo governo Lula e depois houve mudanças com a Dilma, porque ela não tem um centésimo da experiência sindical do Lula — este foi o grande líder sindical do século XX no Brasil, e que sabia negociar com os sindicatos como ninguém.

Em seu governo, criou-se uma espécie de sindicalismo negocial de Estado, em que esta cooptação, esta servidão voluntária não foi por acaso. Lula expandiu uma medida tomada por Getúlio Vargas no final dos anos 1930, estendendo às centrais sindicais o recolhimento de imposto sindical, o que faz com que algumas centrais sindicais ganhem muito dinheiro do Estado, ao qual a Central Única dos Trabalhadores – CUT sempre disse ser contra, mas aceita, recebe e utiliza tais recursos.

Esse é um ponto muito nefasto do sindicalismo, quer de base, quer das centrais sem autonomia política, sindical e financeira, pois cria um sindicalismo negocial que depende do Estado, e se amanhã muda o governo, essa medida cai, o sindicalismo chapa branca vai ficar sem recursos.

Esse foi um ponto muito negativo, sem falar dos aspectos mais gerais, por suposto, que são decisivos. Lula preservou o superávit primário que marca a política econômica neoliberal, abriu a produção dos transgênicos, incentivou a produção de commodities; houve uma espécie de regressão do Brasil à produção da nova divisão internacional do trabalho, em que aceitamos e nos sujeitamos à produção de commodities, minérios, etanol e soja.

Evidentemente, as rebeliões de junho mostraram que a “res pública” no Brasil tornou-se uma “res privada”. Há uma diferença: o tucanato realiza a privatização selvagem; o PT realiza a privatização branda. Por exemplo, a Petrobras e sua crise com o pré-sal, os aeroportos. O tom é diferente, mas no substantivo ambos os governos privatizam. Essa é a triste realidade e conta como déficit do governo do PT.

IHU On-Line – O PT surge no movimento sindical. Nesse sentido, de que maneira esses 12 anos de Lula e Dilma reorganizaram a forma de atuação dos sindicatos? Os movimentos perderam força de oposição ou seguem firmes na defesa aos trabalhadores?

Ricardo Antunes – Primeiramente, gostaria de repetir que o governo Lula conseguiu um complexo processo de cooptação das centrais sindicais, especialmente a CUT, e também, em um primeiro momento, a Força Sindical; no entanto, agora com a Dilma, ensaia movimentos de contestação. Há um problema mais de fundo, que é uma mudança profunda no mundo do trabalho, uma nova morfologia do trabalho, uma classe trabalhadora mais jovem em muitos setores, há um novo proletariado no campo dos serviços que se expande sem parar. Este novo proletariado mais jovem está muito mais à margem da representação sindical. Por exemplo, enquanto há sindicatos fortes, como dos metalúrgicos e dos bancários, não há essa força nos call centers, no telemarketing, nos setores de fast food e supermercados, entre outros. Isto cria uma dificuldade muito grande, que é um certo descolamento entre o sindicalismo de uma era na qual imperava o operariado herdeiro da fase taylorista-fordista para um outro proletariado que não se vê representado na estrutura dura da forma de organização sindical. Isto ocorre, inclusive, porque muitos destes serviços são terceirizados e quase a totalidade destes trabalhadores está fora dos marcos da representação sindical. É um problema complexo que os sindicatos vão ter que enfrentar, mas não só no Brasil, é um fenômeno que marca o sindicalismo dessa virada do século XX para o XXI em escala global.

IHU On-Line – Na opinião do senhor, quem ocupa esse espaço forte de mobilização e pressão social que antes era exercido pelos sindicatos?

Ricardo Antunes – São duas alternativas. A primeira vem de um vazio (lembre-se de que pesquisas apontaram que mais de 70% dos jovens que participaram dos levantes do Brasil eram de estudantes que trabalham, trabalhadores e jovens que estudam) de representação, e a rua, como praça pública, tornou-se o espaço cotidiano da revolta. O segundo espaço que se ampliou foi ante a ausência de sindicatos e o nascimento de movimentos sociais, que, de certo modo, são muito mais livres do que a estrutura sindical atrelada ao Estado. Nos anos 1990 e 2000 surgiu uma miríade de movimentos dos sem-teto, barrageiros, pessoas da periferia, que têm representado a organização não propriamente no espaço de trabalho, mas dos assalariados. A atuação desses cidadãos oscila entre o vácuo, a praça pública e os movimentos sociais, o que mostrou a explosão belíssima dos movimentos sociais do ano passado e que vão voltar agora — porque não pararam de vez — por ocasião da Copa do Mundo.  

IHU On-Line – Qual o grande desafio do mundo do trabalho no século XXI?

Ricardo Antunes – O mundo do trabalho é uma espécie de anatomia da sociedade. O trabalho que estrutura o capital, ou seja, aquele que é desenvolvido para estruturar tal sistema, desestrutura a humanidade, o social do trabalho. Portanto, o trabalho, se quiser reestruturar a vida humana — tendo um ponto de partida para que nós possamos ter um tempo livre dotado de sentido, com fruição, tudo aquilo que é desejável e necessário para além do trabalho —, precisa destruir o capital. Esta é a chave. É por isso que há rebeliões do trabalho em Portugal, na Grécia, na Espanha, no Leste Europeu e nos países asiáticos. Há importantes greves do setor automobilístico na Índia, há greves diariamente na China. Li, recentemente, na imprensa que a China pretende devolver milhões de trabalhadores ao campo, mas eles não têm o que fazer no campo. Como um jovem que saiu do campo e foi viver nas cidades chinesas vai aceitar voltar para o campo? Tudo isso faz parte do primeiro desafio.

O segundo desafio é que o capitalismo fez com que a precarização, pela via da informalidade e da terceirização, que são fenômenos aproximados, mas não idênticos, se tornasse a regra e não a exceção. É preciso, aqui e agora, impedir esta regra, evitando que a terceirização se amplie, e mais, lutar pelo fim dela. Nenhum trabalhador em uma escola ou universidade pública, por exemplo, prefere ver o outro trabalhador com mais direitos. Temos que impedir que a terceirização, a precariedade e a informalização sejam a regra. Isso implica a reorganização dos trabalhadores, para os quais os sindicatos não são carta fora do baralho.

Do século XIX para o XX, o mundo do capitalismo mudou profundamente. Nasceu e se desenvolveu a grande indústria, que já era visível na segunda metade do século XIX, e que se expandiu no século XX com o taylorismo  e o fordismo  de grande intensidade. Aquele antigo sindicato do século XIX, herdeiro de um trabalhador dos ofícios, das manufaturas, se mostrou incapacitado, e surgiu o sindicalismo de massa. Nós transitamos do século XX para o XXI, em que esta indústria taylorista-fordista, que se mantém em vários setores, não é mais a tendência dominante, pois o que é dominante atualmente são as empresas flexibilizadas e liofilizadas, que nasceram com o toyotismo  no Japão e a chamada acumulação flexível.

Este tipo de empresa, que se expandiu pelo Ocidente, estruturada nas cadeias produtivas globais, sofreu um processo de desterritorialização e fragmentação, em que uma empresa com mais de 20 mil trabalhadores está divida em centenas de unidades esparramadas pelo mundo. Isso cria a necessidade de um novo sindicalismo mais aparentado com os movimentos sociais, que seja consentâneo com a nova morfologia do trabalho no século XXI. Não é possível que a humanidade social que trabalha veja a destruição de seus direitos, construídos ao longo de séculos, e se renda. Ainda bem que estamos vendo que a temperatura das manifestações sociais no mundo inteiro está aumentando continuamente.

*Professor titular de sociologia na Unicamp. É autor de “Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil” e “Os Sentidos do Trabalho”.

(Publicado originalmente na IHU On-Line)

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