Francisco Louça – Público, opinião
A
minha amiga Isabel do Carmo, hoje dirigente do Livre-Tempo de Arriscar, explicou
a sua proposta política num interessante artigo no PÚBLICO.
Constatando
a degradação social multiplicada pela austeridade, ela apresenta um prognóstico
e uma estratégia: “Perante esta situação, o Partido Socialista ou se volta para
a esquerda, ou sofrerá o destino dos partidos socialistas da Grécia, da França
e da Espanha. E quanto àqueles que ficam à sua esquerda e com quem é possível e
necessário que dance o tango, temos que arriscar.” O prognóstico é ousado,
porque na verdade o PS sempre se “voltou” para a direita e, apesar disso ou por
causa disso, tem mantido a sua influência. Os factos têm mostrado que, enquanto
a alternância for vista pelos eleitores como a única solução, o PS continuará
protegido e não “sofre destino” nenhum que não seja perpetuar as políticas que
nos submetem.
Mas,
se o prognóstico parece extremo, é o conteúdo da proposta que me surpreende,
porque “arriscar” para “dançar o tango” tem uma longa história em Portugal e
não é uma ideia nova (já muito boa gente dançou o tango com o PS e a expressão
foi repescada há três anos por Sócrates … para anunciar um acordo com Passos
Coelho). No entanto, Isabel do Carmo adapta a “dança” para responder a este
sarilho que é Portugal em 2015, e com dois argumentos que exigem reflexão.
O
primeiro é que é agora mesmo possível arriscar e “dançar o tango”. Esboça para
isso a sua toada programática: “há no entanto linhas vermelhas que não podem
ser ultrapassadas – não aceitar mais a austeridade, ou seja a pobreza (…).
Defender em concreto o contrato social, os mecanismos reguladores e
compensadores das desigualdades – ensino e saúde públicos, segurança social.”
E, para reforçar essas “linhas vermelhas”, socorre-se da autoridade do
Congresso Democrático das Alternativas (CDA), que tem apresentado um guião para
uma alternativa de esquerda desde 2012.
Os
mais atentos notarão, no entanto, que as propostas do CDA não fazem parte das
“linhas vermelhas” deste artigo. Onde
tudo no CDA era concreto (“anulação do Tratado Orçamental”,
“reestruturação da divida pública e bancária”, “controlo público da banca” e
recusa da NATO) aparecem agora umas “linhas vermelhas” poéticas, como o refrão
“não aceitar mais a austeridade”. Porventura pela antecipação das exigências do
compromisso desejado, este “tango” parece ser um desígnio pago com o
desvanecimento da marca essencial de uma resposta à emergência.
Admito
que haja quem pense que pode defender os “mecanismos reguladores e
compensadores das desigualdades – ensino e saúde públicos, segurança social”
sem reestruturar a dívida ou sem sair do colete de forças do Tratado
Orçamental. Mas tem de o provar, ou seja, tem de mostrar como é que o
secretário de Estado vai pagar o Serviço Nacional de Saúde e a segurança
social, se ao mesmo tempo estiver a cumprir a renda da dívida e a obedecer ao
Tratado.
A
Isabel sabe, melhor do que ninguém, que é ou um ou outro, e que por isso, no
“tango” de que Portugal precisa, a música tem que ser a libertação da dívida, o
que exige a renúncia ao Tratado Orçamental e o controlo da banca. Não há volta
a dar, a questão das questões é que quem se apresenta para governar tem mesmo
de tornar pública a sua proposta sobre a reestruturação da dívida, detalhada
até ao cêntimo. Se esse objectivo for abandonado, só sobrará a austeridade.
Para “não aceitar mais a austeridade” é preciso um guião de medidas imediatas e
bem preparadas – que os eleitores devem conhecer, medir e votar.
Fico
portanto sem saber o que querem dizer aquelas “linhas vermelhas”, pois, se são
um roteiro para governar, só poderiam ser concretas e teriam que responder:
então onde está o dinheiro? Perdoar-me-ão que não me entusiasme com quem acha
que não deve dizer aos eleitores o que fará se for eleito, como o PS e outros
têm feito. O silêncio ou as declarações vagas estão destinadas a não arriscar
mesmo nada e a fazer menos ainda.
Mas
é o segundo argumento de Isabel do Carmo que mais me preocupa. Escreve ela:
“Reduzir o objectivo a uma secretaria de Estado é o mesmo do que deixar a
esperança pendurada à porta, como se fosse uma segunda pele. No entanto, pode
haver outra razão para que se arrisque vitórias e derrotas, rótulos e
classificações. Essa razão é ética: não podemos deixar correr este filme como
simples observadores.”
A
evocação da ética é surpreendente. Não vejo para que sirva, senão para uma
fundamentação imperativa da proposta política e mesmo para interditar o debate
sobre essa proposta. Quer ela dizer que os outros intervenientes políticos
“deixam correr este filme como simples observadores”? Seria absurdo pensar
isso. O PSD e o PP não são “simples observadores”, fazem pela sua vida. O PS
também não, vai à luta pelo governo. A esquerda também não, combate pelas
propostas que entende serem a chave para uma mudança no país (as propostas do
CDA, já agora). Em que é que a ética de “não deixar correr este filme”
fundamenta especificamente aquela proposta de que Isabel do Carmo é portadora?
Em nada.
Ora,
se quer antes dizer que a ética ilumina a sua resposta contra as outras,
propondo-nos, em nome dela, “dançar o tango” com o PS para a tal secretaria de
Estado e o mais que nos explicou, então o problema agrava-se ainda, porque,
simplesmente, nenhuma ética pode ser a forma de legitimação de uma política. A
ética identifica valores que me orientam a mim e a ti e são portanto essenciais
para as minhas escolhas e as tuas; mas nem eu nem tu podemos usar o imperativo
ético das nossas consciências como a determinação de uma política específica
que se aplica a todos e que por isso deve ser decidida por todos – incluindo os
que não reconhecem a minha ética –, porque a política é a acção colectiva e
portanto respeita éticas várias sem lhes impor nenhum absoluto.
A
política é de uma ordem diferente da da ética e tem uma legitimação distinta:
uma é o modo de deliberação de todo um povo na sua diversidade, outra é o modo
de enunciação de uma particularidade, mesmo que respeite à forma como vejo os
outros. Uma é acção, outra é posição; uma reside na escolha colectiva, outra
mora na escolha individual; a política é relativa e para todos, a ética é
absoluta e para mim. A política não é uma moral com a espada do poder, tal como
a moral pode inspirar o político mas não justifica a decisão política.
Por
isso, se a política fosse determinada pela ética do Manuel ou pela da Maria,
seria totalitária, porque submeteria o outro. Na verdade, a laicização da
política impõe a explicitação democrática de todas as suas escolhas, não
reconhecendo qualquer fundamentação autoritária transcendental, seja religiosa,
seja ética.
Há
portanto, no argumento da última instância (no fim das contas, a minha política
é determinada por este alto valor ético, a tua não), um perigo evidente, que é
colocar-se no lugar onde não pode ser discutido, por se clamar superior a todos
os outros e, então, inexpugnável.
Invocar
a ética para defender uma escolha de tática política contra as alternativas é
uma expressão de desistência do debate útil. E esse debate é sempre necessário,
mais ainda quando se trata de escolher o que pode ser e o que deve fazer o
próximo governo de Portugal, dos secretários de Estado aos ministros e, já
agora, ao povo.
Sem comentários:
Enviar um comentário