Nuno
Ramos de Almeida – jornal i, opinião
A
democracia em Portugal mede-se pela forma como a polícia trata as pessoas que
não têm poder. O que aconteceu na Cova da Moura é inadmissível
"De
perto ou de longe, qualquer ângulo, qualquer plano eu faço o zoom/
É
a realidade dos guetos que aqui se resume/Na escola não se lê/Não mostra na
TV/Mas só quem não quer é quem não vê" Chullage
Na
semana passada a polícia entrou como muitas vezes na Cova da Moura, como
exército que entra em terra conquistada em zona de inimigos. Detiveram uma
pessoa, bateram em quem estava na rua e dispararam balas de borracha. Fizeram
tudo o que não fariam se estivessem na Avenida de Roma. Os moradores da zona
estão habituados a ser tratados como pessoas de segunda, a quem é possível
espancar sem consequências, mas a brutalidade da acção foi tanta que alguns
elementos da comunidade, nomeadamente da Associação Moinho da Juventude, a
principal associação com trabalho social no bairro, foram à esquadra queixar-se
da violência policial. Chegados lá, foram, segundo testemunhos, cercados,
espancados, torturados e sobre um deles dispararam uma bala de borracha, na
perna, à queima-roupa - a perna ficou com um buraco por onde se via o osso.
A
polícia não comentou o sucedido, mas os trabalhadores da associação foram
acusados de tentar assaltar uma esquadra cheia de polícias de intervenção.
Provavelmente um deles será responsabilizado por ter agredido uma bala de
borracha policial com a perna. Ouvidos um dia depois por um juiz, vão a
julgamento. O magistrado considerou que tanto a versão dos polícias como a dos
detidos eram coerentes e tinham de ser dirimidas em tribunal. Infelizmente ,
isto não vai dar em nada. E
os polícias vão continuar a ter carta branca para tratar qualquer pessoa nos
bairros suburbanos como um saco de pancada.
No
período revolucionário circulava a anedota de que os alentejanos eram os homens
mais altos do mundo: sempre que a GNR atirava para o ar matava dois. Nos dias
de hoje, os alentejanos pobres tornaram-se negros pobres, a quem se pode fazer
tudo sem que a justiça franza o sobrolho.
Em
2012 entrevistei o dirigente do principal sindicato da polícia, Paulo
Rodrigues, que me recordou a sua carreira na polícia e os problemas que se lhe
depararam quando esteve colocado numa esquadra da zona: "Na Damaia, como
era uma esquadra rodeada por bairros sociais com várias comunidades, achava-se
que os polícias tinham de utilizar a repressão para impor a autoridade e que a
população eram só criminosos. A todo o pessoal novo que vinha era incutida esta
ideia. Chegava-se depois à conclusão que muitos dos problemas que existiam se
deviam a essa atitude: a população reagia à presença policial considerando que
não estávamos ali para nos preocuparmos com eles. Sentiam que éramos uma
espécie de força de ocupação. Resultado: tínhamos os polícias contra os
cidadãos daqueles bairros e aqueles contra os polícias."
Nada
mudou. Somos um país desigual, em que o poder dos muito poucos, e o seu
enriquecimento corrupto, se garante dividindo a população. O falhanço desta
sociedade vê-se nos chamados bairros; se em Portugal, o povo está fora da
democracia, nos bairros está fora da sociedade. É gente invisível.
Editor-executivo - Escreve
à quarta-feira
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