A
Islândia enfrentou sua crise econômica de maneira soberana: juntou governo e
habitantes, dispensando as interferências do sistema bancário internacional.
José
Carlos Peliano* - Carta Maior
A
Islândia ficou por baixo aos olhos do mundo anos atrás e hoje se vê vitoriosa,
acima de qualquer suspeita. Olha de cima os estarrecidos doutores economistas
que a condenaram e desprezaram, mas que ainda viajam para cá e para lá
carregando seus protocolos e ensinamentos ortodoxos ultrapassados de
austeridade econômica para outros países.
Minha
avó ensinava na cozinha a quem quisesse fazer boas comidas, particularmente
bolos saborosos, fofos e de aparência inigualável, que nós crianças tanto
queríamos, controlando com maestria os ingredientes. Desde o manuseio da massa,
ao fermento adequado, à quantidade de ovos, à boa manteiga, ao cheiro ideal.
Vovó
fazia o que hoje os economistas ortodoxos e austeros desconhecem por completo.
Usava ela o conhecimento adquirido mexendo as panelas, sabia a dosagem certa, o
tempo necessário e o melhor ponto. Mas fazia mais.
Ela
já havia incorporado a arte de fazer bem o que era para dar bom resultado.
Lembro-me hoje do filme mexicano Como água para chocolate que mostrava o ato de
cozinhar bem com o sentimento de amor. Para cada tipo de comida o enredo
sugeria amor, conhecimento, paciência e timing.
Tudo
o que vovó já fazia e tudo o que os economistas ortodoxos e austeros e a Troika
não fazem. Nem pensar. Claro que não é de se esperar amor nunca de um FMI,
Comunidade Europeia (CE) ou Banco Central Europeu (BCE). Nem do Banco Mundial e
correlatos. Mas conhecimento, paciência e timing seria o óbvio. E ululante
segundo o velho Nélson Rodrigues!
Em
lugar de amor, no entanto, cabe outra palavra poderosa mas nunca usada,
solidariedade. Adicionar às cartilhas dessas instituições multilaterais pelo
menos um pouco que resta de humanidade entre seus diretores presidentes e
conselhos diretivos. Afinal elas pretendem ajudar os países e não afundar suas
economias.
Em
benefício dos bancos e dos banqueiros. O que seriam eles não fôssemos todos nós
que depositamos nas instituições bancárias nosso dinheiro? Em troca desse
sistema, no entanto, eles nos devolvem juros altos e condições draconianas de
pagamento. E isto quando conseguimos empréstimos.
Pior,
jogam com nosso dinheiro no mercado nos mais variados e arriscados expedientes
e papéis, como os sub-primes no caso dos Estados Unidos, redundando na crise de
2008. E os governos até hoje acabam por socorre-los, a maioria esmagadora, com
a desculpa de salvar as economias e os empregos, e quem paga? Nós os contribuintes.
Mas
há pelo menos uma exceção, uma singular e preciosa exceção: a Islândia. País
que é uma ilha, uma ilha que é um País, de tamanho próximo ao estado de
Pernambuco e com população de pouco mais de 300 mil habitantes, enfrentou sua
crise econômica de maneira soberana, altiva, juntos governo e habitantes,
dispensando solenemente os palpites e interferências do sistema bancário
internacional incluindo os caciques FMI, BCE e CE.
Exatamente
para evitar comentários do tipo, ah!, mas a Islândia é pequena e pôde se dar ao
luxo de fazer isto, é que cabe a observação: entre as espécies a dor de barriga
é a mesma num elefante ou num gato, independentemente do tamanho do coitado.
Assim como a austeridade ou a burrice nos ortodoxos.
A
Islândia perdeu cerca de 8% de sua riqueza e um volume de emprego de 12%,
magnitudes inéditas para o País, dois anos após a crise bancária de 2008.
Rejeitou as medidas de austeridade aconselhadas na época pela Troika, em
especial a CE, além de não socorrer seus bancos envolvidos no jogo financeiro,
deixando-os ir à falência. Governo e população decidiram não tirar do bolso
para o bolso dos banqueiros,
De
2011 em diante a Islândia revigorou sua economia principalmente a partir da
indústria de alumínio, das exportações de pesca e do turismo. Hoje a ilha está
muito bem obrigado, com desemprego entre 3% e 4% e um crescimento do PIB da
ordem de 3,3%.
Ao
contrário dos ensinamentos ortodoxos, a ilha continua mantendo controle de
capitais desde 2008 limitando a circulação livre de dinheiro. A trava equivale
ainda hoje a metade do valor do PIB. Não há espaço adicional para os jogos e
expedientes financeiros de risco, somente para manter a circulação da moeda e
financiar as atividades produtivas.
O
próprio Presidente da ilha, Olafur Grimson, argumenta que a recuperação
econômica de seu País se deveu ter dispensado as sugestões dos organismos
multilaterais, a CE em especial, e ter contado com o apoio da população no
exercício vigoroso da democracia.
Tanto
o Presidente quanto minha avó souberam mais que a Troika administrar com
eficiência nas suas especialidades o exercício de seus conhecimentos e
habilidades. Cada qual combinou os devidos ingredientes econômicos, sociais e
políticos de um lado e culinários de outro para chegarem juntos ambos a
resultados auspiciosos.
O
primeiro escutou seu povo e dele ouviu seus clamores, a segunda escutou seus
comensais e deles ouviu suas preferências e desejos. Uma questão de humildade,
despojamento e sabedoria. Saber ouvir e saber operar junto. Por trás de tudo,
humanidade, maneiras de lidar com relações humanas.
Se
o Presidente ou minha avó estivessem entre os economistas da Troika certamente
fariam exatamente o oposto que é feito hoje na Zona do Euro. Em particular com
a Grécia, Portugal, Espanha e Itália. Pelo menos os dois têm históricos de
sucesso, coisa que os outros não lograram.
Senão,
como é que o receituário de austeridade e ortodoxia ainda não deu resultado até
agora em nenhum desses países? Ao contrário, os países sofrem há tempos com
desemprego, quedas no PIB, reduções de vendas e produção sem que os ajustes
fiscais draconianos pretendidos pela Troika tenham dado os resultados
preconizados.
Que
o Brasil se espelhe na Islândia e mostre sua capacidade de reagir sem
sacrifícios desnecessários e injustos. Basta deixar a cartilha da Troika
seguida pela Fazenda e ir no rumo da Islândia. Um acordo entre governo,
empresas e população pode levar a economia de volta ao crescimento com justiça
social.
Como
já dito por outros diversas vezes, não se trata de simples ajuste da caixa do
governo, mas de acerto entre governo, empresas e população. A Troika quer
salvar os bancos, não os países. Com certeza o Presidente da Islândia ou minha
avó, assim como as demais vovós de nossos leitores, fariam muito e bem melhor.
Pelo menos com mais solidariedade e menos arrogância.
*Colaborador
da Carta Maior
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