Miguel
Guedes – Jornal de Notícias, opinião
O
ranking do presidente é claro. Cavaco Silva condecora Teixeira dos Santos no
dia 10 de Junho, secundarizando o primado da política em relação ao poder
financeiro e relegando a cultura para o lugar menor para a qual talvez pense
que deva estar originalmente desenhada. A presença portuguesa nos rankings do
que quer que seja continua a presentear-nos com lugares tão fatais como o
destino. A periferia marítima e ocidental à escala europeia nunca foi
trabalhada como uma vantagem competitiva pelos nossos responsáveis políticos,
os mesmos que não conseguem fazer de um país tão pequeno em tamanho um grande e
simétrico país em dimensão (basta ver a forma como as assimetrias regionais são
"combatidas" com o reforço do centralismo pelas mais recentes decisões
políticas e económicas). Os rankings são, por sistema, o reforço da nota, a
conclusão em números ou a síntese que não desmente. A nós, muito por culpa de
quem colocou Portugal com pulseira electrónica controlada pelo carcereiro,
venha a cauda da Europa e o meio do Mundo, a permanência na liga de honra da
porta dos fundos onde, quase invariavelmente, revezamos os piores lugares pelos
lugares piores.
Olhemos
uma honrosa excepção, quase inexplicável face aos nossos brandos costumes. Há
dias, o "Washington Post" explicava em forma de título: "Porque
dificilmente alguém morre de overdose em Portugal". Confere-se o ranking
do Centro Europeu de Monitorização das Drogas e da Toxicodependência e somos
vice-reis na tabela com baixíssima média de mortes provocada por overdose de
drogas entre os 15 e os 64 anos. O caminho para os bons números fez-se pela
coragem de tomar decisões políticas que foram, durante anos, duramente
criticadas por diversos países e organismos defensores acérrimos do
proibicionismo. Não sendo a coragem um valor em si, já a vantagem de ter voz
própria e de experimentar fazer diferente é uma virtude e (re)compensa.
Em
Portugal, a descriminalização do consumo de todas as drogas (em 2011) fez a
diferença, permitindo recentrar a questão das drogas mais perigosas e aditivas
no campo da saúde pública e da resposta integrada de valências médicas e
sociais. O número de mortes diminuiu, o consumo de heroína e cocaína acompanhou
a tendência, a prevalência do uso de drogas em jovens adultos e os casos de
sida na população consumidora diminuíram. Ainda que a descriminalização não
tenha sido a varinha mágica que tudo transforma, caiu por terra a ideia de que
menor repressão e punição poderiam desencadear um fenómeno imparável de
crescimento e uma espiral de consumo. Até o aumento da utilização de canábis
vem comprovar a tese de que a espiral não existe quando as pessoas são tratadas
com respostas adequadas e com profissionais à altura. A não ser que se invente
uma nova teoria, a da espiral descendente, na qual os consumidores
"hard" suavizariam os seus consumos optando pela canábis. A opção
pela coragem venceu e João Goulão, o director-geral do Serviço de Intervenção
nos Comportamentos Aditivos e das Dependências (SICAD), agora com mandato para
cinco anos depois de dois anos a título provisório, é um dos principais
responsáveis.
Como
no momento de resistência - aquando da destruição do Instituto da Droga e da
Toxicodependência (IDT), em 2012, que parecia ser o algoz do que de bom havia
sido feito nas políticas de toxicodependência em Portugal - cabe a João Goulão
dar novos e decisivos passos, nomeadamente, abrindo a porta à legalização da
canábis (tratando diferentemente o que é diverso e promovendo a diferenciação
de tratamento entre a canábis "natural" e "sintética") e reiterando
a sua vontade de avançar com as históricas salas de chuto, acompanhadas por
profissionais de saúde, apoio social, higiene e segurança, reduzindo riscos e
erradicando os piores consumos e utilizações. É necessária companhia,
obviamente. A ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, recentemente
defensora da legalização, foi pronta e publicamente "repreendida" por
Pedro Passos Coelho. Hoje e como sempre, falta coragem política para defender
opções que não aquelas que sejam impostas e importadas, ainda que se revelem
danosas, ultrapassadas e falidas. Tal como reagiu com a troika, eis como reage
às novas políticas de combate à ferida societária da toxicodependência: falta
ao primeiro-ministro uma overdose de Portugal.
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