Afropress
- Editorial
Embora
constituam 50,7% da população brasileira, de acordo com os dados do Censo do
IBGE 2010, os negros correspondem a apenas 18% das elites profissionais do
país. Ou dito de outro modo: a elite branca, herdeira da Casa Grande, responde
por 82% dos acadêmicos, atores, deputados, governadores, médicos, ministros do
Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministros do Supremo Tribunal Federal (STF)
músicos eruditos, presidentes de empresas e senadores.
Essas
foram as categorias adotadas pelo jornal Folha de S. Paulo para fazer
a radiografia mais recente e devastadora da subrepresentação negra (e da
superrepresentação branca), publicada na edição desta segunda-feira (08/09).
Veja matéria em Afropress - http://www.afropress.com/post.asp?id=18259
Em
algumas áreas, como o Judiciário, a presença branca é quase absoluta: 100% dos
ministros do STF são brancos autodeclarados. Entre os executivos das
empresas do Brasil, segundo o ranking Valor 1.000 2014, 95% se autodeclaram
brancos, 5% são pardos. Não há pretos. Tampouco há indígenas.
Mesmo
no mundo político – governadores, deputados e senadores – a supremacia branca
nunca é inferior a 70% (74% no caso dos governadores, 75,3% entre os senadores,
79,9% entre os deputados federais), o que dá uma ideia do tamanho da crise de
representação que, dia sim, outro também, aparece de variáveis formas, em
especial, a partir da explosão das manifestações de junho de 2013.
Eis
aí exposta com todas as tintas, a mãe de todas as crises: a crise de uma
República que já nasceu velha, já nasceu com “donos”, o que corresponde,
portanto, a própria negação da palavra “res publica” – coisa pública.
A
crise da democracia representativa e de governança é mundial, como se sabe, mas
no caso brasileiro apresenta peculiaridades óbvias. Aqui o que chamamos de
República, não se traduz em valores republicanos; e o Estado Democrático de
Direito, mesmo esse que é, inegavelmente, fruto das lutas democráticas contra
uma ditadura militar que durou 21 anos, pode até ser de Direito (afinal, temos
uma ordem jurídica, instituições funcionando, ritos processuais etc.), mas
passa longe de merecer o atributo de democrático, por qualquer critério que se
analise.
Como
é possível chamar de democrático um sistema em que uma elite branca herdeira da
herança do escravismo, mantém-se no controle quase absoluto nos postos de mando
e comando de empresas, do Judiciário, do sistema político, das universidades e
até das artes?
E
o que é pior: por meio de um sistema econômico concentrador de renda
mantém em condições miseráveis de vida a maioria da população; e se
autoprotege por intermédio de um sistema penal que lança em prisões medievais
(o termo foi usado pelo próprio ministro da Justiça), negros, indígenas e
brancos pobres, que constituem cerca de dois terços da população carcerária – a
terceira maior população carcerária do mundo.
Chamem
do que quiserem, mas democracia isso não é. Mesmo pelos critérios ocidentais
surgidos na velha Grécia que definem democracia como governo do povo, para o
povo e pelo povo.
A
República no Brasil já nasce como coisa privada. Sua base social não é outra
senão os fazendeiros escravocratas, que, contrariados e sem poder evitar a
Abolição, mudaram de lado e passaram a apoiá-la. Abolição, registre-se,
incompleta, jamais concluída, e que significou a liberdade formal, mas jamais
se traduziu em direitos para a massa negra jogada na rua da amargura a partir
do 14 de maio. São os "donos" - antes de escravos negros e hoje do
capital - os pais das atuais elites políticas que permanecem onde sempre
estiveram; "o macho adulto branco sempre no comando", como canta
Caetano na música "O estrangeiro".
Não
há dúvida que a contradição fundamental no sistema em que vivemos – o
capitalismo - é de classe: explorados de todas as cores versus exploradores,
invariavelmente da mesma cor dos herdeiros da Casa Grande. Porém, só por
por ignorância ou má fé – ou então pelos manuais de uma esquerda caolha, que
não atualizou suas leituras de Marx -, é possível ignorar que o Brasil
continuará expondo os índices obscenos de desigualdade, enquanto não ajustar
contas com a herança maldita de quase quatro séculos de escravidão.
E
é mais do que óbvio também que isso não acontecerá enquanto o povo brasileiro –
negros, brancos pobres e indígenas – a maioria explorada, não romper com as
amarras seculares que a mantém nessa espécie de cativeiro tardio e assumir uma
posição protagonista no debate público e político.
A
luta contra o racismo e a desigualdade de oportunidades (que do racismo se
origina), é, portanto, parte da luta mais geral por uma República e por uma
democracia verdadeiramente dignas desse nome.
Sem
isso, continuaremos vendo - e sofrendo - os efeitos dessa radiografia perversa
que "mostra o macho adulto branco sempre no comando".
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