Declarações
racistas de Fernando Pessoa reacendem a discussão sobre a relação entre os
artistas e suas obras
Jeferson
Tenório* no Murro das Lamentações - Geledés
Causou
estarrecimento em muita gente a descoberta de um texto racista escrito pelo
poeta Fernando Pessoa (1888 – 1935). A discussão correu as redes sociais depois
que o escritor Antonio Carlos Secchin reproduziu um trecho em sua página no
Facebook. O estarrecimento certamente ficou por conta da contundência das
frases e também porque Fernando Pessoa ocupa um imaginário quase etéreo e
mítico dentro da cultura ocidental contemporânea. Para nós, hoje, é difícil
aceitar que um artista do calibre do poeta português, que simplesmente
reescreveu liricamente a empreitada lusitana, criou complexos heterônimos e se
tornou um dos pilares da literatura e da língua portuguesa, fosse capaz de
escrever palavras tão assombrosas.
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Fernando
Pessoa tinha 28 anos quando escreveu que “a escravatura é lógica e legítima; um
zulu ou um landim não representa coisa alguma de útil neste mundo.” Anos mais
tarde, aos 32 anos, Pessoa escreveu que “a escravidão é
lei da vida, e não há outra lei, porque esta tem que cumprir-se, sem revolta
possível. Uns nascem escravos, e a outros a escravidão é dada.” E ainda próximo
de completar 40 anos as ideias racistas ainda persistiam: “Ninguém ainda provou
que a abolição da escravatura fosse um bem social (…) quem nos diz que a
escravatura não seja uma lei natural da vida das sociedades sãs?”
Não
bastasse isso, ainda encontramos em suas digressões opiniões estarrecedoras
sobre as mulheres: “Em relação ao homem, o espírito feminino é mutilado e
inferior. O verdadeiro pecado original, ingênito nos homens, é nascer de uma
mulher”. Os excertos podem ser conferidos no livro Fernando Pessoa: Uma (Quase)
Biografia, do pesquisador pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho, que procurou
fazer uma pesquisa bastante minuciosa sobre a vida do poeta.
O
argumento mais recorrente quando autores de séculos passados são julgados por
suas posturas preconceituosas e racistas é o de que eles apenas seguiram o
pensamento da época e que, portanto, devemos ser cautelosos ao julgarmos tais
posturas. No entanto, o argumento pode ser contestado quando levamos em
consideração a existência de outros intelectuais contemporâneos a Fernando
Pessoa, como Eça de Queiroz, Machado de Assis, Castro Alves, Joaquim Nabuco,
que se opunham à escravidão. Certamente, a visão anacrônica é importante porque
nos auxilia a compreender os processos ideológicos de uma determinada época. E
talvez aí esteja o nó da questão: o de acreditarmos que compreender é o mesmo
que absolver ou desculpar.
Não
é de hoje que autores assumem posições ideológicas condenáveis. Jorge Luis
Borges (1899 – 1986) apoiava declaradamente a ditadura argentina, Ezra Pound
(1885 – 1972) e Heidegger (1889 – 1976) foram simpatizantes do nazismo.
No Brasil, temos o já famigerado caso de Monteiro Lobato (1882 – 1948) e sua
exaltação à Ku Klux Klan. Embora haja uma diferença bastante acentuada entre
Pessoa e Lobato, já que em Lobato é possível percebermos marcas explícitas de
racismo dentro da própria produção literária, diferentemente de Pessoa em que
suas ideias racistas e misóginas aparecem em textos de opinião.
O
caso de Fernando Pessoa reacende a discussão sobre a relação entre os
escritores e suas obras e nos faz refletir o quanto suas biografias podem nos
influenciar como leitores. Mesmo considerado um grande gênio pela crítica, não
se pode esquecer que Fernando Pessoa é fruto de um país colonialista, ou seja,
ele está inserido na longa tradição lusitana de exploração colonial. Por volta
de 1920, quando Portugal já lamentava sua decadência e as sucessivas perdas das
colônias, Fernando Pessoa começa a produzir a complexa e hermética obra poética
Mensagem, que no fundo é uma exaltação da epopeia portuguesa, a exaltação das
suas conquistas e glórias. Não há como negar que os versos estão imbuídos de um
nacionalismo místico. Fazer uma relação direta entre este sentimento ufanista
do poeta e suas afirmações racistas e misóginas pode soar superficial, mas é
passível de reflexão.É doloroso descobrir que um ícone literário tenha um lado
tão sombrio. Portanto, o nosso desafio como leitores é o de sabermos separar a
obra do autor, pois antes de ser poeta, Fernando é humano com toda a
complexidade e contradição que ele carrega. A indignação e a decepção com
Fernando Pessoa é válida e necessária porque nos aproxima dele e nos afasta
daquela figura mítica e sobrenatural, ao mesmo tempo em que resgata a
humanidade que há em nós ao refutarmos seus textos racistas e misóginos. A
discussão foi posta, mas não percamos de vista a literatura. Guimarães Rosa já
cantava essa pedra: “Às vezes, quase sempre, um livro é maior que a gente.”
Jeferson
Tenório – *Mestre em literaturas luso-africanas pela UFRGS. Escritor, autor do
romance O Beijo na Parede
Veja
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Monteiro Lobato
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