Evo
Morales, prosperidade e diversidade
Uma
década de presidência do líder indígena melhorou a renda e a autoestima da
Bolívia
Jonathan
Watts, em La Paz - The Observer, em Carta Capital
As
ruas de La Paz estavam forradas de dinheiro no domingo 24, quando a Bolíviacomemorava sua crescente afluência e o
orgulho indígena com uma orgia de consumo nas festas
anuais de Alasitas.
A
extravagância ritual com miniaturas e imitações foi mais colorida e criativa do
que nunca neste ano, impulsionada pela década de crescimento econômico e a
incorporação das superstições aimará, antes rejeitadas, pela corrente
dominante.
No
mercado da Plaza Murillo, as “cholitas” com chapéus-coco e xales tradicionais
anunciavam grossas pilhas de dinheiro falso expostas sobre as mesas: 500 mil
dólares por 5 bolivianos (0,72 dólar) ou uma pilha de 100 milhões de dólares
por 25 bolivianos (3,62). Na primeira hora de vendas, trilhões mudaram de mãos.
Meras notas de 100 dólares eram pisoteadas no chão.
Multidões
de consumidores compravam carros de brinquedo, pequenos caixotes de cerveja de
plástico, sacos com bens domésticos, todos minuciosamente copiados de marcas
existentes, modelos de terrenos e malas em tamanho bolso recheadas de
notebooks, passaportes e cartões de crédito, tudo de papel.
Cada
compra representa um desejo. Quem quer se casar compra uma galinha ou um galo
de plástico, símbolos de uma noiva ou um noivo. Os estudantes pagam por
pequenas reproduções de diplomas e licenças profissionais de importantes
universidades. Os doentes e suas famílias adquirem cópias em escala reduzida de
atestados de saúde de hospitais respeitados.
“Comprei
todas as coisas que queria neste ano”, disse Milenka Calderón, que
carregava uma sacola cheia de dinheiro de brinquedo, um saco de comida e uma
boneca bebê, esta na esperança de sua filha recém-casada engravidar logo. “Se
você tiver fé, a coisa se realiza.” No ano passado, conta, pegou uma casa de
brinquedo e depois comprou uma de verdade.
Segundo
o costume local, cada item tem de ser abençoado por um sacerdote indígena
kallawaya com incenso e pós, em um santuário improvisado ao deus da boa
fortuna, Ekoko. Mediante pagamento de uma taxa, dezenas praticaram o
ritual.
Para
não ficar de fora, a Igreja Católica oferece bênçãos. Muitos nesse país
espiritualmente eclético fizeram fila para seus sacos de dinheiro e bens falsos
serem aspergidos com água-benta na catedral, ou para tocar seus brinquedos
plásticos nas estátuas de santos.
Quem
buscasse exclusividade espiritual ficaria desapontado. Assim como a Bolívia, o
festival é muito um caso de arriscar para ver. Desde que a sorte venha, ninguém
se preocupa muito com que forma ela tome. Os vendedores também oferecem gatos
japoneses “manuki-neko”, com as patinhas erguidas para dar sorte, e macacos de
cerâmica, animal deste ano no zodíaco chinês, que trazem barris cheios de
joias.
A
festa, que ocorre nas cidades de todo o país durante duas semanas, a
partir de 24 de janeiro, é diversão bem-humorada. As famílias vêm comprar, os
adultos jantam nas barracas nas ruas, enquanto seus filhos brincam. Os
festeiros entregam montes de dinheiro a estranhos, em sinal de boa
vontade.
A
Alasitas também reflete os muitos desafios sociais e econômicos que
transformaram a Bolívia na década, desde a ascensão de Evo Morales, primeiro
presidente indígena do país, que usou a renda do boom de
matérias-primas para aumentar os padrões de vida dos conterrâneos e reduzir a
desigualdade.
A
festa teve origem nas crenças dos indígenas aimará, e por muito tempo ficou
relegada à periferia da cultura boliviana. As miniaturas só eram disponíveis no
Parque de los Monos. Morales colocou a festa no centro da vida nacional, ao
permitir a instalação de barracas na Plaza Murillo, diante do Congresso e do
palácio presidencial. Hoje, sua popularidade estende-se muito além da população
aimará.
“Há
mais fé hoje”, disse Juan Carlos Ballón, um pajé ou xamã. “Antes, quando a
Bolívia era um Estado católico, todas as nossas crenças eram escondidas. Hoje
temos uma nação plurinacional e todas as crenças são respeitadas, por isso
podemos praticar abertamente. É um bom tempo para nós.”
A Bolívia, antes um dos países mais pobres da América Latina, desfruta, segundo Ballón, da maior prosperidade de
sua vida. Os artigos à venda na festa demonstram esse sucesso e refletem as
expectativas de uma população que se habituou com um crescimento médio de 5,1%
nos últimos dez anos.
Em
vez de sacos de cereais em miniatura, os populares compram imitações mais
luxuosas. Além de casas de brinquedo, adquirem prédios de apartamentos de
plástico ou madeira, com plantas arquitetônicas e minidocumentos de
propriedade.
“Eu
comprei só uma casa hoje, mas no ano que vem talvez compre um condomínio”,
brincou Merçelas Gómez, moradora local, enquanto comia um tradicional Plato
Paceño com seu marido.
Com
a queda dos preços globais das matérias-primas, a Bolívia precisará de mais do
que sorte para manter seu crescimento por mais 12 meses. Por enquanto, ao
menos, o país está em um clima festivo e generoso. Quando eu saía da praça, uma
mulher colocou três notas de 100 dólares em minhas mãos. “Tome, para dar
sorte!”, disse.
*Reportagem
publicada originalmente na edição 886 de CartaCapital, com o título
"Prosperidade e diversidade"
-
Título PG
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